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segunda-feira, 7 de abril de 2025

Os direitos que fazem mover a cidadania no quadro do desenvolvimento humano.

 


Partindo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pedra angular do mundo pós-Segunda Guerra Mundial, padrão referencial para todos os povos e nações, Francisco Bethencourt elabora um admirável ensaio onde irá pôr em ecrã gigante as diferentes peças do motor em que arrancou o funcionamento das liberdades, direitos e garantias que são a matriz das democracias – Fundação Francisco Manuel dos Santos, maio de 2003.

Em jeito de preâmbulo, dirá que o debate sobre os Direitos Humanos e a sua história pode ser abordado em torno de quatro perguntas: existia uma base anterior universal de respeito por estes direitos?, que contexto histórico permitiu a emergência do conceito de tais direitos?, e como é que eles têm sido contestados ou utilizados pelos diversos poderes mundiais? e, por último, como são eles apropriados, defendidos e alargados?

Entrando na problemática da cidadania e direitos cívicos, recorda-nos que esta noção aparece ligada ao reconhecimento de pertença a uma comunidade urbana, era uma noção predominantemente local. Para apreciar a sua evolução, é de pôr o acento tónico no sistema político europeu do século XIX, como da colonização se passou para a condenação da escravatura, como se foi gradualmente caminhando para o direito à liberdade de opinião, de expressão e de associação. Em sequência, vai pôr em revista o tema da colonização, os valores imperiais preponderantes, e observa que o colonialismo teve um enorme impacto em direitos básicos que não estavam formalizados ao nível internacional, mas que eram compreendidos e praticados. “A crescente mercantilização do ser humano, enquanto objeto do sistema de plantação criado no Atlântico, é um dos resultados da colonização. As consequências da expansão europeia são visíveis nas teorias das raças e na divisão internacional do trabalho, que deixaram traços até aos dias de hoje, com enorme impacto nos direitos civis.”

São essas as visões sociais que porá em análise, destacando a escravidão. “A abolição da escravatura pode ser considerada o primeiro grande desafio de construção de direitos humanos ao nível do globo. O abolicionismo colocou a noção de dignidade humana no centro do debate político, noção que permitiu dar voz ao descontentamento de camadas sociais oprimidas em todo o mundo, tendo alimentado poderosas revoltas na China e no Sudeste Asiático, bem como os movimentos anticoloniais que se sucederam na Ásia e em África ao longo dos séculos XIX e XX.” Da escravidão passamos para a barbárie, recorde-se que as potências colonizadoras conferiam-se ao direito de se autoproclamarem civilizadoras de outros povos. Quem fala em barbárie fala em doutrinas raciais, discriminação com base em supremacia do branco, de determinado credo religioso, de supostos atributos culturais étnicos, daí haver um compêndio de raças humanas que tinha no seu topo uma unidade social de cariz étnico que podia marginalizar, perseguir e até mesmo exterminar minorias racializadas, o autor recorda que continua a haver grupos de excluídos, particularmente na Ásia e África.

Continuam a pesar as divisões no género, o peso preponderante vai para as mulheres, sujeitas a subordinação ao homem, até salário inferior ao do homem, tudo produto de uma milenária divisão homem/mulher; no quadro democrático tem havido uma evolução para o direito ao voto feminino, ganharam direito as minorias de comportamento sexual alternativo.

Os Direitos Humanos deram um salto com o processo da descolonização, que tem conhecido várias etapas desde as independências no Novo Mundo e da Revolução Americana, a fragmentação do império otomano, o ciclo de independências na Europa durante e a seguir à Primeira Guerra Mundial, o colapso dos impérios europeus e japonês na sequência da Segunda Guerra Mundial e a desagregação do Império Soviético. “Estes processos de descolonização permitiram a criação de mais de cem novos países, que passaram a fazer parte das Nações Unidas, respondendo ao princípio de autodeterminação dos povos.” É neste contexto que se pode e deve apreciar os efeitos da desintegração da União Soviética e a invasão da Ucrânia pela Federação Russa e acontecimentos asiáticos como o Tibete que proclamou a independência em 1911, mas acabou por ser anexado em 1950 pela China.

Há ainda outros três domínios dos Direitos Humanos abordados pelo autor: as migrações internacionais, os direitos económicos e sociais e os direitos ambientais. As migrações podem reportar-nos à imigração e ao quadro ideológico da contestação da imigração poder pôr em causa valores soberanos e culturas nacionais, de um modo geral uma bandeira contestatária de ultranacionalistas e apoiantes do racismo. Como observa o autor, “a livre circulação de pessoas no mundo é um ideal que está longe de ser partilhado por um grande número de pessoas dos países desenvolvidos. Contudo, o bloqueio à imigração conhece limites, pois, se existe necessidade económica, o movimento de pessoas não tende a diminuir. O respeito pelos Direitos Humanos é confrontado pelo tráfico de migrantes, pelas máfias locais de exploração de trabalho clandestino e por políticas de Estado que se tornam cada vez mais perversas.

O largo espetro de direitos económicos e sociais prende-se com a intervenção do Estado, sensível aos direitos sindicais, da alimentação ou habitação, de cuidados médicos e assistenciais, à livre escolha de emprego, na repressão das violências, a começar pela doméstica, bem como o respeito pelo direito de decisão individual e controlo do próprio corpo. Temos, enfim, os direitos ambientais, já que nas últimas décadas se agravaram as formas de poluição acompanhadas de alterações climáticas e contaminações da natureza. “A perceção de uma natureza em alto risco, com danos já irreparáveis, é agora aceite pela maior parte da população depois de uma guerra ideológica suscitada pelos interesses económicos estabelecidos, baseados num modelo de desenvolvimento, de exaustão e contaminação dos recursos.” E recorda-se que este direito ao ambiente tem vindo a ser impulsionado depois da década de 1970. Este direito “resulta de uma nova sensibilidade face à destruição da natureza que coloca em risco a espécie humana. O modelo de desenvolvimento extrativista – que transforma a natureza num mero recurso para a produção e o consumo maciço, com uma manipulação química que altera o metabolismo dos animais – reduz de forma radical a diversidade biológica, destrói os ecossistemas e torna o planeta inabitável. Estes direitos visam criar um novo modelo de desenvolvimento sustentado, que recuse a energia dos combustíveis fósseis, bem como a contaminação dos mares e das águas, do solo e do subsolo, ou seja, de toda a cadeia alimentar.”

Como mensagem final, Francisco Bethencourt observa que “É o caráter interligado e aberto dos diferentes direitos que vai certamente prevalecer no futuro, como suporte das mudanças necessárias para a redução das desigualdades e a afirmação da justiça social no seio de cada sociedade e entre sociedades.”

De leitura mais do que obrigatória. 


                                                                        Mário Beja Santos




sábado, 22 de março de 2025

Carta de Bruxelas.





                                                                A terra sobre os olhos



O historiador da arte Bernard Berenson nasceu Bernhard Valvrojenski, em Butrimonys, na Lituânia, numa família judia; tendo-se convertido ao cristianismo, foi episcopaliano quando a família emigrou Boston em 1875, e, em seguida, católico, quando já vivia em Itália, para onde se mudou depois de ter viajado na Europa em 1887, após a licenciatura. Berenson nunca deixou de se confrontar com a questão judaica; numa entrada do diário, de 2 de Setembro de 1953, deixou uma observação esperançosa. Via no poder nacional e no valor militar nele fundado uma carta de alforria, o caminho para a igualdade.

«Não serem objecto de desprezo» é do que os judeus precisam. Certamente, nenhum outro «povo» – quero dizer um grupo cuja coesão foi mantida por hábitos, usos, costumes, tradições, rituais – nenhum outro povo que chegou até aos nossos dias com uma história ininterrupta de uns bons três mil anos serviu tão bem a humanidade. Aos cristãos e aos maometanos deu-lhes a sua religião, nunca deixou de contribuir para o pensamento e a literatura, e, nos últimos 150 anos, nenhum outro povo esteve presente de modo tão criativo e tão fecundo em todos os aspectos da actividade humana, até na militar quando lhes foi permitido.  Que a maior parte dos não judeus sinta desprezo por eles, porém, não só os torna ressentidamente infelizes e servilmente ansiosos por serem bons burgueses, acatando as regras da média em todos os países, mas leva-os também a desprezarem-se a si mesmos até ao ponto de se suicidarem, como foi o caso de Weininger. A solução pode estar num Estado plus – um plus muito grande – a glória militar, o único valor que todos nós reconhecemos como supremo. Se os judeus criassem um Estado militar poderoso, desapareceria o desprezo de que são alvo.»

É uma concepção de uma época, de duas épocas atrás. Dos tempos em que os judeus ficavam à porta da sociedade, partilhando com outros grupos marginais e marginalizados a mesma condição de inferioridade. Apesar da emancipação civil e política, o ferrete das origens não desaprecia. Berenson vê no poder, entendendo que é antes de mais o poder de responder taco a taco, de armas na mão, armas iguais às dos agressores, a possibilidade de os judeus se constituírem como um povo em pé de igualdade com os outros povos. A derrota do nacional-socialismo seria o fim da discriminação; a fundação do Estado de Israel, soberano entre soberanos, a ratificação última da igualdade. E, no entanto, o nazismo não foi o derradeiro capítulo de uma história contínua, milenar de perseguição. Foi algo de novo. E essa novidade permaneceu. Na concepção nacional-socialista, a dualidade ariano-judeu constitui uma oposição insanável, que está para lá de todo e qualquer conflito político, são dois tipos absolutos e de igual poder. Para que um viva, o outro tem de morrer. Assim, o judeu foi guindado a uma posição insigne, negativamente insigne. Se no pós-guerra, um pós-guerra que começa uma década depois do fim das hostilidades (recorde-se as dificuldades de Isaac Schneersohn  para erigir um memorial do genocídio; inaugurado apenas em 1956, foi até ao início da década de 60 o único do mundo num espaço público), o judeu não é exactamente igual, isso deve-se ainda a ter sido alvo de todo o género de exacções e violências. O apoio da União Soviética a vários países do Médio Oriente assinalou o início do divórcio da opinião pública, por via esquerdina, é certo, mas não só por aí, relativamente a Israel. Paradoxalmente, foi ao mesmo tempo o início da entronização do estatuto que o nazismo atribuíra aos judeus. Os inimigos figadais de ontem geraram ambos o mesmo fruto e, nesta coincidentia oppositorum diabólica, os judeus tornaram-se a encarnação do mal absoluto e universal no mundo. O poder, em que tantos depositaram as esperanças da igualdade, revelou-se, numa desfiguração retroactiva, o elemento que apunha o selo definitivo no novo estado de coisas. Em grande medida, o 7 de Outubro de 2023 consumou o que veio à luz com o nacional-socialismo – foi a sua vitória. Por mais que custe dizê-lo. As meias tintas que vigoraram depois de 45 (mas também a Shoah, entendida quase sempre à luz da continuidade história) ficaram para trás, caracterizam uma época – hoje vista como indecisa pelo novo sentido que um novo acontecimento lhe impôs – que acabou por não ser um crédito adiantado, antes foi o início de uma dívida cuja cobrança coube por fim ao 7 de Outubro de 2023 e às suas repercussões. Pelo poder, a igualdade almejada retirou-se do mundo, e deixou cadáveres como a maré vazia deixa destroços numa praia. Cadáveres absolutos e universais de uma nova época.

 

                                                    João Tiago Proença


sábado, 7 de dezembro de 2024

Carta de Bruxelas.

 



             Para assinalar um ano e dois meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023

 

Agora que as Nações Unidas se unem contra o mal absoluto, que vêem em Israel, a ponto de esgotarem as palavras – depois de genocídio, limpeza étnica, holocausto, apocalipse, o que sobra?  Agora que todas as inversões morais se tornaram possíveis, acusando-se Israel de destruir escolas e hospitais; agora que as imagens da destruição de Gaza passam ininterruptamente em tantos ecrãs, a título ilustrativo do conflito; agora que a compaixão é insidiosamente elevada a princípio único humano; agora que a condenação do Estado dos judeus se tornou sinónima da execração do gozo no sofrimento dos outros, a perversidade diabólica inerente ao sionismo, talvez não seja inútil lembrar palavras, a que, noutras circunstâncias, o pudor imporia o recato das horas solitárias, as palavras ditas em 1927 por Edmond Fleg –  Je suis juif, parce qu’en tous lieux où pleure une souffrance, le Juif pleure.

 

                                                                João Tiago Proença




quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Carta de Bruxelas.



 

             Para assinalar 10 meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023



Em 22 de Março de 1938, Franklin Roosevelt lança da sua casa em Warm Springs, Geórgia, o projecto de uma Conferência Internacional para os Refugiados.  Ao mesmo tempo, instrui Cordell Hull, ministro dos Negócios Estrangeiros, para comunicar aos embaixadores americanos que as quotas de imigração para os EUA não serão aumentadas. Estava dado o mote. Tratava-se apenas de uma cortina de fumo para salvar as aparências. Num momento em que se pretendia salvar 650 000 judeus do Reich, da Áustria e dos Sudetas, os ingleses fazem saber ao embaixador americano, Joseph Kennedy, que as palavras «judeu» e «Palestina» não deverão nunca ser usadas nas sessões da conferência. A Suíça recusa que a conferência se realize no seu território. A França propõe então Évian-les-Bains, do outro lado do lago Léman. As actas mostram toda a má fé das nações e o abandono a que são votados os judeus. Em Berlim, ninguém se engana sobre o resultado, a imprensa titula: «Judeus à venda – mesmo a preços baixos ninguém os quer». Ninguém os quis. Particularmente instrutiva é uma observação do representante da Austrália : «O meu país não conhece nenhuma situação de racismo, não queremos que isso comece.»  Como ontem, hoje: sem judeus o mundo não conheceria o mal. 


                                                            João Tiago Proença





domingo, 7 de julho de 2024

Para assinalar nove meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023.

 


Os pogroms de 1819 foram o primeiro caso de violência anti-semita em larga escala na Alemanha e na Europa, depois da emancipação, preparada pelas Luzes e executada, em larga medida, por acção napoleónica. Data precisamente desse ano o grito hep-hep, acompanhado frequentemente de «espanquem os judeus até à morte» [schlagt die Juden tot]. A origem do grito está envolta em obscuridade e levou a que se aventassem hipóteses fantasiosas. Tendo aparecido no primeiro pogrom e difundindo-se a partir dele, concitou grande atenção, chegando a ser interpretado como uma espécie de santo-e-senha dos perseguidores cuja decifração permitiria compreender os acontecimentos. A solução mais acreditada consistia em ver no grito o acrónimo de Hierosolyma est perdita, um putativo canto ou grito de guerra dos cruzados no cerco de Jerusalém, ou até das legiões romanas no cerco da cidade mais de 1000 anos antes.  Uma tal teoria não tinha nenhuma sustentação – aliás, em estampas da época, a expressão aparece grafada Hepp, o que invalida desde logo uma tal conjectura. A hipótese mais verosímil atribui-lhe a origem num chamamento para reunir o gado, que terá sido adoptado nas arruaças anti-semitas. O grito generalizou-se a partir dos primeiros motins, que, durante esse ano, se alastraram a toda Alemanha, com especial virulência em Frankfurt, Hamburgo, Heidelberg, Leipzig, Dresden e Darmstadt, repercutindo-se inclusive na Dinamarca e na Polónia. A expressão manteve-se ao longo do século XIX e gravou-se na memória das comunidades perseguidas. Depois de 1945, não consta que tenha sido novamente ouvida.

Tudo leva a crer, no entanto, que já há um candidato para desempenhar o mesmo papel: you can’t hide. E não são só palavras


                                                    João Tiago Proença


quinta-feira, 16 de maio de 2024

No tempo em que se acreditava nas raças superiores e inferiores…







 


 

Quando o livro As Raças Humanas, de Louis Figuier, foi editado em Lisboa, em 1881, já tinha conhecido quatro edições em França. É obra profusamente ilustrada, com elevada qualidade gráfica, o tema das raças estava no auge, as doutrinas evolucionistas, o pensamento filosófico positivista, os ideais republicanos laicos tinham entrado em colisão, daí a pergunta o que é o homem, de onde vem, se tinha ou não o papel de centro único da criação, como se tinham processado ao longo da História as migrações dos povos, etc. Figuier concluirá que a ciência não pode explicar a diferença existente entre os principais tipos da espécie humana, dirá mesmo que os homens são todos irmãos pelo sangue, que as diferentes raças eram derivadas de uma espécie única pelas modificações que o clima imprimiu no tipo positivo, competia à antropologia classificar as raças e Figuier acha que tal classificação se baseia na cor da pele, é uma apreciação de um valor secundário mas com ele pode formar-se um quadro exato e metódico dos povos habitantes da Terra. E dá um sentido à sua análise com apreciações que são hoje completamente dadas como erróneas: as medidas antropométricas constituíam a chave esclarecedora para distinguir o que essencialmente diferencia a raça branca da raça amarela, a raça amarela da raça parda, a raça parda da raça vermelha e a raça vermelha da raça negra.

E vamos viajar a partir da raça branca, um tal ramo europeu onde destacam as famílias teutónica, latina, eslava (do Norte do Sul), fino-húngara, grega; passa-se para o ramo aramaico e o leitor permitir-me-á que avance para a raça negra. Escreve Figuier: “A raça negra distingue-se pelos seus cabelos pouco compridos e lanosos, pelo nariz achatado, pela maxila saliente, pelos lábios grossos, pelas pernas arqueadas, pela cor preta ou cinzenta carregada. Estes povos vivem nas regiões centrais e meridionais da África, nas partes meridionais da Ásia e da Oceânia.

Os habitantes da Guiné e do Congo são muito pretos, mas os Cafres são apenas cinzentos-escuros e parecem-se com os Abissínios. Os Hotentotes e os Bosquímanos são amarelados comos os chineses, posto que tenham as feições e a fisionomia dos negros.” Figuier enuncia os Cafres e os Hotentotes e assim chegamos aos negros:

“Os negros ocupam uma grande parte da África Central e Meridional, a Senegâmbia, a Guiné, uma parte do Sudão Ocidental, a Costa do Congo, assim como a extensa região que ainda há pouco quase completamente desconhecida entre a Costa do Congo a Oeste e a Este da Costa de Moçambique e do Zanzibar, são os lugares habitados pelos negros propriamente ditos.

A Guiné e o Congo são as terras clássicas dos negros. É ali que vivem os representantes desta raça com as feições mais características e repelentes. Julga-se que a invasão na África dos povos asiáticos e europeus, tendo-se sempre feitos pelo istmo do Suez e pelo Mar Vermelho, os negros foram empurrados para o Oeste do continente africano. Os habitantes da Guiné e do Congo serão, pois, os descendentes e os representantes contemporâneos dos negros primitivos.

(…) A fisionomia do negro é de tal modo característica que é impossível o não reconhecer à primeira vista, mesmo quando o indivíduo tivesse a pele branca. Os seus lábios proeminentes, a fronte curta, os dedos salientes, os cabelos lanosos, a pouca barba, o nariz largo e achatado, o queixo retraído, os olhos redondos dão-lhe um aspeto particular entre todas as demais raças humanas. Muitos têm as pernas arqueadas, quase todos pouca barriga de perna, os joelhos flexionados, o corpo inclinado e o andar preguiçoso. Podemos acrescentar que nesta raça o tronco tem menos largura que nas outras raças, que os braços são proporcionalmente um pouco mais compridos, que as pernas têm uma curvatura assaz sensível e que a barriga das pernas é um pouco achatada. A cavidade óssea da bacia é muito mais estreita no negro do que no europeu, mas é mais larga no sentido do osso sacro, o que torna para as negras fáceis os partos. Segundo medidas exatas, a bacia superior é 1/4 mais larga no europeu do que no negro. Também as coxas dos negros diferem das dos brancos: no primeiro são sensivelmente achatadas. O pé participa desta fieldade das formas. O vício de conformação que entre nós isenta do serviço militar, o pé chato, não só para o negro não é uma deformação, mas é também um caráter constante.

(…) A cor da pele tira à fisionomia do negro toda a beleza. O que dá graça à cara do europeu é cada parte do rosto ter o seu colorido próprio. As maçãs do rosto, o nariz, a fronte, o queixo, têm, no branco, tons particulares. Na fisionomia do negro tudo é negro. As sobrancelhas, negras como o rosto, perdem-se na cor geral. Apenas há um tom diferente na linha de contacto dos lábios. A pele dos negros é muito porosa e tanto que os poros se apresentam de modo visível. Nem todos os negros têm a pele dura, pelo contrário, pelo contrário, alguns têm-na macia e acetinada. O que há de desagradável na pele do negro é o cheiro nauseabundo que exala suando. Estas emanações são tão difíceis de suportar como as que são exaladas de certos animais.

A natureza apropria o negro às regiões em que vive. Em geral, o seu temperamento é linfático. O seu andar vagaroso, a sua preguiça invencível, impacientam o europeu, que não pode compreender tanta indolência. Os negros são menos sensíveis que os europeus à influência de excitantes. A aguardente, a mais forte, o rum, a pimenta, os mais irritantes condimentos francamente excitam a inércia do seu palato.”

Chegámos agora à contundente questão da inteligência e da inferioridade racial. Socorrendo-se de argumentos antropomórficos hoje dados como anacrónicos, Figuier refere o ângulo facial, a fronte muito inclinada para trás, as maxilas muito proeminentes e classifica: “Aproximava-se do macaco, cujo ângulo facial, nos macacos antropomorfos, tais como o orangotango e o gorila, é de 50º. Esta fraqueza relativa de inteligência que nos é revelada pela pequenez do ângulo facial dos negros vai ser confirmada por nós, examinando-lhe o cérebro. (…) A inferioridade intelectual do negro é evidente na sua fisionomia sem expressão nem mobilidade. O negro é uma criança e como uma criança é impressionável, inquieto, sensível ao bom tratamento suscetível de dedicações, mas, em certos casos, sabendo também odiar e vingar-se. Os povos da raça negra que existem no interior de África, os estados de liberdade mostram-nos pelos seus hábitos e pelo estado do seu espírito que não podem passar de além da vida de tribo. Além disso, em muitas colónias custa tanto tirar bom resultado da educação dos negros, a tutela dos europeus é-lhe de tal modo indispensável para lhe manter os benefícios da civilização, que a inferioridade da sua inteligência, comparada com a do resto da humanidade, é um facto incontestável.”

Instituiu-se assim a inferioridade do negro, a plena dependência do civilizado, a fatalidade da sua anatomia, a sua indolência masculina pondo a mulher a trabalhar como escrava, as suas crendices em divindade secundárias, a crença no poder do acaso. E, de repente, Figuier descobre que os negros possuem muitas vezes uma extraordinária memória, uma extrema facilidade para aprender as línguas, o seu enorme talento nas imitações. Os negros, enfatiza Figuier, são rebeldes às artes plásticas, mas são muito sensíveis à música e à poesia. E conclui dizendo que a família negra tem menos inteligência que qualquer outra família humana e que é preciso dar muito tempo aos negros libertos para viverem numa igualdade com outras raças.

Era esta a doutrina que alimentava o pensamento colonialista e que efetivamente só se começou a desmoronar no fim da Segunda Guerra Mundial. O racismo mudou de figura, está associado a uma religião eleita, a certos fundamentalismos monoteístas, à emergência do nacionalismo de base racial e ao terror das migrações que assolam a Europa e a América do Norte; mas não sejamos ingénuos, os chineses não querem contaminações com outros grupos populacionais… O racismo diminuiu, tem uma face muito obscura, mas está muito longe de se ter extinguido.

 

                                                                    Mário Beja Santos

 


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Gisberta Salce Júnior.

 



Há exactamente 18 anos, num dia 22 de Fevereiro, morria Gisberta Salce Júnior no Porto. Causa da morte: afogamento. Causa da causa: sete dias (sete!) a levar pancada de um grupo de 14 rapazes adolescentes, que a deixaram inconsciente e, temendo tê-la matado, resolveram atirá-la para um poço.  

Causa da causa da causa: transfobia. Causas da causa da causa da causa: invisibilidade social das pessoas transgénero e hostilidade generalizada para com elas, bem como o facto de que os 14 adolescentes, nascidos em contextos de violência e negligência, estavam entregues a uma instituição de acolhimento cuja ideia de integração social consistia em ensinar um ofício e o temor a Deus, bem como em, aos fins-de-semana, deixar jovens com tal passado à sua sorte, livres para cirandar e asneirar pela cidade. O local onde encontraram e mataram Gisberta ficava a 40 minutos a pé da instituição que os (des)acolhia. 

Gisberta nasceu no Brasil e emigrou aos 18 anos, fugida de uma vaga de assassinatos transfóbicos. Viveu no Porto os últimos 20 dos seus 46 anos de vida. Nos últimos 10, com SIDA. Fez de Marilyn Monroe em espectáculos transformistas na noite portuense, prostituiu-se para ganhar a vida. Foi sem-abrigo nos seus últimos anos. Esse foi o estado em que 3 dos 14 adolescentes a encontraram e, apiedando-se dela inicialmente, lhe deram de comer, conversaram com ela, voltaram várias vezes. Até que falaram dela aos outros 11 e tudo descambou. 

O horror da morte de Gisberta levou Pedro Abrunhosa e Maria Bethânia a cantá-la, originou peças de teatro e uma curta-metragem premiada (em breve, também o fabuloso livro de Afonso Reis Cabral sobre o tema será vertido em filme). Os crimes transfóbicos passaram a ter penas pesadas, nasceram o Centro Gis e a Marcha do Orgulho LGBTI+ do Porto para dar apoio e visibilidade às pessoas transgénero. 

Outra prova de que Gisberta não morreu em muitos corações é que em breve haverá uma Rua Gisberta Salce Júnior no Porto. Ficará entre a Rua e a Travessa das Eirinhas, na freguesia do Bonfim. A poucos minutos de onde Gisberta teve casa e dois cães, e a ainda menos minutos de onde foi sem-abrigo e perdeu a vida de modo horrível.

                                                                Rui Passos Rocha 


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

A morte como serviço público de interesse geral: uma proposta modesta.

 



A morte como serviço público de interesse geral, ou uma proposta modesta para a resolução do impasse legislativo relativo à despenalização da morte medicamente assistida

 

A inclinação algo fatídica, ou simplesmente mórbida, deste escrito tem uma explicação que convém avançar logo de início: a incapacidade crónica do nosso legislador em resolver o problema da eutanásia e do suicídio assistido, tendo o correspondente diploma sido já duas vezes rejeitado pelo Tribunal Constitucional, para além de objeto de veto político pelo Senhor Presidente da República.

É que, convenhamos, nos encontramos perante um problema da maior relevância para os destinos da nação, estando nas mãos do legislador contribuir de forma decisiva e expedita para a sua resolução. Trata-se de um problema que não se coaduna com a aparente impreparação, ou incapacidade de outra ordem, dos nossos legisladores para disponibilizarem ao conjunto dos cidadãos e demais residentes, especialmente os idosos, a possibilidade de contribuírem voluntariamente de forma significativa, através da própria morte, para o grande desígnio da inversão da tendência aparentemente inexorável para o envelhecimento da população nacional e a consequente situação insustentável que se vive no serviço nacional de saúde.

É certo que nem tudo se perdeu ao longo das sucessivas propostas desenvolvidas pelo legislador. Assim, nos primeiros projetos falava-se ainda, em termos injustificadamente restritivos, da antecipação da morte medicamente assistida em «situações de sofrimento extremo» ou «intolerável», com «lesão definitiva de gravidade extrema, ou doença incurável e fatal». Agora, de modo muito mais razoável e socialmente ajustado, com a desejável abrangência, fala-se de «situação de sofrimento de grande intensidade – definida por referência ao «sofrimento físico, psicológico e espiritual» –, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável».

São passos no caminho certo, que nos leva a encarar sem rodeios a morte como uma opção livre de qualquer utente do serviço nacional de saúde, seja qual for a índole do problema de saúde, real ou sentido como tal, que o afete. Todavia, mesmo a atual proposta legislativa mostra bem a necessidade de libertar a prática da morte medicamente assistida de um sistema de intrincada distinções concetuais e definições legais que fazem certamente as delícias de juristas e comissões de ética, mas nada acrescentam em termos de proteção do único valor a respeitar na matéria: a livre decisão do indivíduo, ainda que esclarecida pelos profissionais especializados e respaldada pelo impecável funcionamento burocrático das estruturas do serviço nacional de saúde.

Por outro lado, não nos importa, reconheçamo-lo desde logo, a situação do suicídio assistido, isto é, daqueles que estão, apesar de tudo, em condições de pôr fim às suas vidas, ainda que com assistência de terceiro. Procurar resolver um problema da magnitude daquele que nos ocupa unicamente na perspetiva do respeito da capacidade de atuação do indivíduo autónomo é, convenhamos, uma atitude claramente desadequada em face da gravidade dos interesses sociais em presença e até de pendor acentuadamente elitista. É por outras palavras, colocar acima da vontade a capacidade individual de a executar. O que nos motiva é, pelo contrário, a inegável, e premente, dimensão social e económica da questão.

Torna-se, pois, necessário encarar e formular o problema partindo de novas bases.

A solução que propomos é, julgamos, simples e expedita, envolvendo apenas leves alterações a um diploma já em vigor, relativo à proteção do utente dos serviços públicos essenciais. Do que se trata é simplesmente de acrescentar a morte assistida aos serviços públicos essenciais já previstos na lei, a saber: o serviço de fornecimento de água, o serviço de fornecimento de energia elétrica, de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados, o serviço de comunicações eletrónicas, os serviços postais, o serviço de recolha e tratamento de águas residuais, os serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos e o serviço de transporte de passageiros.

Parece ser evidente a proximidade entre a disponibilização generalizada da morte assistida e os demais serviços públicos essenciais que o Estado moderno coloca ao alcance de todos os cidadãos e residentes. Com efeito, a aglomeração das populações nos espaços reduzidos das grandes cidades, provocada pelo desenvolvimento industrial a partir dos séculos dezanove e vinte, deu azo a novas condições e exigências para a condução individual da existência. Ora, a concentração espacial da população desencadeada pela industrialização levou a que o espaço de vida controlado pelo indivíduo tenha diminuído cada vez mais (da casa, quintal e oficina para o apartamento e o local de trabalho), enquanto a tecnologia expandiu muito esse mesmo espaço de vida. Deste modo, a perda da proteção que uma certa independência dava à existência individual foi compensada pela instituição de serviços que, graças ao extraordinário desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, atendem às necessidades do indivíduo e lhe tornam possível levar uma vida sem um espaço controlado por ele: gás, água, energia elétrica, saneamento básico e, finalmente, morte. Esta transformação vale para todos, independentemente do seu nível riqueza, pois corresponde ao facto de que, no modo de vida dos povos altamente industrializados, desapareceram as formas de existência autónomas e autossuficientes.

Há, nesta conformidade, um traço em especial do regime a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais tendo em vista a proteção do utente que nos parece especialmente promissor na resolução do impasse legislativo a que chegámos.

Trata-se da regra que proíbe a imposição de consumos mínimos de serviços de interesse geral. Com as necessárias adaptações, tal como não é possível impor consumos mínimos ao utente dos demais serviços públicos essenciais, também não deverá ser possível impor à pessoa que almeja a própria morte quaisquer restrições à decisão tomada com esse fim decorrentes da sua situação de saúde. Pelo contrário, é somente o respeito da vontade, real ou presumida, de cada utente que urge acautelar, sendo certo que as estruturas do serviço nacional de saúde saberão filtrar esse respeito em termos socialmente adequados.

Encontrada, pois, a solução para o impasse normativo que o legislador não quer, ou não se encontra em condições de ultrapassar, importa afrontar a objeção da “rampa escorregadia” que muitos suscitam, ainda presos num modo de pensar a questão tributário de atavismos resultantes de séculos de imposição de uma moral social castradora da liberdade individual e avessa ao funcionamento imperturbado das estruturas administrativas que são o seu principal garante nos tempos atuais.

Tal como as considerações anteriores evidenciam, a morte não é, já, no momento histórico presente, um acontecimento que ocorre num espaço controlado pelo indivíduo, à semelhança do que sucede com os demais serviços públicos de interesse geral. O reconhecimento desta dependência dá também a resposta à principal objeção que nos poderia ser oposta: se o serviço nacional de saúde tem como principal missão assegurar a vida, como justificar que o mesmo assuma a tarefa de administrar a morte? Pois é precisamente esta a questão essencial: se ao Estado cabe assegurar a vida, reconheça-se-lhe também a capacidade, certamente menos pesada do ponto de vista económico, de administrar a morte! De resto se, para se assegurar a vida nem sempre se respeita a vontade individual, não temos razões para não acreditar que, ao menos na morte, prevalecerá um respeito escrupuloso dessa vontade.

Rejeitamos, por último, que a implementação da proposta agora formulada possa conduzir a uma compreensão das instalações hospitalares como manifestações daquilo que alguns designam com o novo paradigma biopolítico da modernidade, centrado no campo de extermínio. Estas, e outras visões apocalípticas semelhantes, devem ser afastadas convictamente com base na simples observação de que nunca, como nos tempos atuais, se deram tantas condições à vontade individual para prevalecer sobre quaisquer outras considerações, sejam de que índole forem. Resta-nos, a cada um de nós, aguardar o momento em que nos caiba exercer essa vontade, sempre sob a tutela esclarecida de profissionais bem preparados.

 

Miguel Nogueira de Brito 







terça-feira, 15 de março de 2022

Quando Krutchev revelou aos Soviéticos a existência dos campos de trabalhos forçados.

 






A publicação de Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch, por Aleksandr Soljenítsin (Prémio Nobel da Literatura de 1970), Livros do Brasil/Porto Editora, 2022, dado à estampa pela primeira vez em 1962, na URSS, logo constituiu um autêntico murro no estômago, afinal os campos de trabalhos forçados não era reles propaganda antissoviética, existiam, com toda a sua bestialidade, corrupção, morticínio. É primeira obra-prima deste escritor russo que combateu na Segunda Guerra Mundial e esteve preso e internado em campos de trabalho entre 1945 e 1953. Seguir-se-ão outras duas obras-primas admiráveis que só lhe arranjarão problemas na URSS e que o levarão à expulsão, em 1974. Regressará a Moscovo em 1994, teve um acolhimento triunfal. A sua nota de autor relativamente a este livro tem bastante utilidade para a compreensão da obra: foi escrito num campo especial, durante o inverno de 1950-1951; a decisão de publicação foi tomada pelo Politburo do Comité Central do PCUS, em outubro de 1962, sob pressão de Krutchev, terá edições grandiosas, que serão destruídas nas bibliotecas públicas em 1971-1972; a primeira edição não censurada surgirá em Paris em 1973. E o autor dá outra explicação: “A figura de Ivan Deníssovitch foi composta a partir do soldado Chúkhov, um companheiro de combate do autor na guerra soviético-alemã (mas que não esteve nos campos), e enriquecida pela experiência dos prisioneiros e do próprio autor quando trabalhou como pedreiro do campo especial. Todas as outras personagens são reais, recolhidas da vida no campo, e as suas biografias são autênticas”.

Não é a primeira vez que uma obra-prima da literatura decorre exclusivamente ao longo de um dia, basta lembrar o fenomenal Ulisses, da James Joyce, e Mrs Dalloway, por Virginia Woolf. Soljenítsin descreve o dia, logo ao romper da alva até ao momento em que os prisioneiros, extenuados, regressam à camarata. Daí a dureza e concisão dos dois primeiros parágrafos:

“Às cinco da manhã, como sempre, soou o toque da alvorada – golpes de martelo numa barra de carril junto à barraca do comando. O som entrecortado penetrou debilmente através das vidraças cobertas por dois dedos de gelo e depressa se calou: estava frio, e o vigilante não queria ficar a agitar o braço por muito tempo.

O tinido cessou, mas fora da janela continuava a escuridão, como a meio da noite, quando Chúkhov se levantou para ir ao balde; à janela chegava a luz amarela de três candeeiros – dois no perímetro, um no interior do campo. Por qualquer razão não tinham vindo destrancar a barraca, nem se ouvira enfiar o balde das fezes nas varas para o levar dali”.

Novo dia, as cadenciadas rotinas do costume, as tarefas pré-programadas, vamos saber quem é quem na hierarquia do campo, há vigilantes, chefes da brigada, chefe distribuidor, guarda de serviço, fascinas, subchefes, gente que tem tratamento de cidadão chefe, brigadas com número, reclusos habitualmente desdentados, avançam para o refeitório, comem com os gorros na cabeça, um caldo com espinhas e depois papas de sorgo, é a principal refeição do dia, Chúkhov está adoentado ainda pensa pedir baixa no posto médico, lembrou-se que mesmo na enfermaria ninguém ficava deitado, o número de internados é limitado, correu para a praça de formatura, os horários são para respeitar, as punições são muitas. E começa o dia de trabalho, sabemos como os reclusos andam vestidos, como praticam troca de serviços, lá vão escoltados para o trabalho. Mas quem é Chúkhov? Foi condenado por traição à pátria, foi o que ele foi obrigado a confessar, rendeu-se desejando trair a pátria, e voltou do cativeiro porque vinha cumprir uma missão da espionagem alemã. “Que missão era essa, nem Chúkhov foi capaz de imaginar, nem o oficial que conduzia o processo se lembrou de inventar. Na contraespionagem foi muito espancado. E o cálculo de Chúkhov era simples: se não assinasse, ganhava um sobretudo de madeira; se assinasse, ao menos ainda viveria um pouco. Assinou”. Stalin era implacável com os soviéticos prisioneiros alemães, tivessem ou não tentado fugir do cativeiro, etiquetados como traidores foram destinados ao trabalho forçado, tornaram-se uma das principais mão-de-obra dos Gulag.

É uma narrativa soberba, a descrição de todas estas figuras humanas, o espaço onde habitam, o delírio da vigilância, a hierarquia cruel em que vivem todos os reclusos, a arbitrariedade dos castigos, à menor falha espreita a masmorra ou a solitária. A total ausência de direitos. Chegam encomendas ao campo, há que humilhar ainda mais: “Abrem a caixa de encomenda com um machado, o vigilante retira tudo com as suas mãos, verifica. Cortam, quebram, remexem, despejam. Se há alguma coisa líquida, em boiões de vidro ou em latas, destapam, despejam, e só se pode aparar com as mãos ou uma toalha. Não entregam boiões nem latas, têm medo. Se há pastéis, ou doces, ou enchidos, ou peixe, o vigilante mete o dente. E quando acabam de revistar a encomenda, também não entregam a caixa em que veio, e é preciso enfiar tudo na bolsa, ou na aba do capote, e toca a andar, o seguinte”.

Aquele campo de trabalho forçado é também uma imagem da natureza humana, o autor deixa-nos prodigiosas águas-fortes, impossíveis de esquecer: “O chefe do refeitório é um canalha cevado, com uma cabeça que parece uma abóbora e os ombros largos. Tem um tal excesso de forças e caminha a saltitar, como se tivesse molas nas pernas e também nos braços. Usa um gorro branco de peles, sem número, como nenhum livre tem igual. E um colete de pele de coelho, com um pequeno número no peite, como um selo do correio. O chefe do refeitório não cumprimenta ninguém, e todos os reclusos o temem. Tem milhares de vidas na sua mão. Uma vez quiseram espancá-lo, mas todos os cozinheiros, uns monstros igualmente alentados, vieram em sua defesa”. As horas do dia passam, e Ivan Deníssovitch contabiliza que foi um dia de sucesso, nem a comida faltou, saboreia ao jantar a couve com o resto do líquido, parece alheado, mas deu para ver um velho alto, o U-81. “Sobre este velho, Chúkhov ouvira dizer que não tinham já conta os anos que andavam pelos campos e prisões, desde que existia o poder soviético. Não tinha sido abrangido por nenhuma amnistia, e assim que terminava dez anos de pena, logo lhe davam mais dez”. Naquela noite alguns partem para o cárcere, vão dormir em cima de tábuas nuas, chão de cimento, nenhuma janela, trezentas gramas de pão por dia, e a sopa só no terceiro, no sexto, e no nono dias.”

Chúkhov adormeceu, quase feliz: não o meteram no cárcere, não mandaram a brigada para a Cidade do Socialismo, ao almoço tinha surripiado umas papas, tinha comprado tabaco. E não adoecera, aguentara-se. “Dias como este durante o período da sua pena, entre um toque e outro toque, contaram-se três mil seiscentos e cinquenta e três.”

Obra-prima absoluta.


Mário Beja Santos

 






quinta-feira, 20 de maio de 2021

Último dos inocentes, protector de Portugal, inimigo dos jesuítas.

 

 


Uma “comemoração” da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, de Maio de 2021

 


A 18 de Maio de 1721, a família Carillo foi quase dizimada pela Inquisição Espanhola. No auto-de-fé que se celebrou no Convento de São Domingos em Madrid foram queimadas duas gerações e um troço de madeira, representando uma terceira. Entre os supliciados estava a mais velha das relaxadas ao braço secular na infame história daquela instituição: Maria Barbara Carillo, 95 anos, “relapsa, convicta, y pertinazmente negativa en sus errores1

 

Além de Maria Barbara, morreram o seu filho Antonio e a nora Ana Maria de Morales. Foi ainda queimada a estátua da filha destes, Ana Carillo, já morta mas que, à imagem dos pais e da avó, foi representada com o sambenito e coroça dos penitentes.

 

Auto de fe de la Inquisición, Francisco de Goya

 

Escapou da fogueira Gaspar Carillo, irmão de Ana, 36 anos, solteiro e sem profissão. De sambenito, abjurou a sua fé judaica e, sem bens, condenado a prisão perpétua, foi 7 anos para os remos das “galeras de su Majestad”, sem salário, para ser mais tarde restituído à prisão.

 

Trezentos anos depois, serve-nos de pouco consolo, aos cristãos do século XXI, saber que em determinados momentos foram os monarcas, mais papistas do que os papas, a perseguir os judeus ou os cristãos-novos sob a bandeira da Inquisição.

 

Exemplo disso foi o que se passou cinquenta anos antes desse auto-de-fé quando, noutro Maio, o de 1671, outra feroz perseguição antijudaica se seguiu ao roubo do Senhor da Igreja de Odivelas. Tal impacto – até internacional – teve no seu tempo que até nome de localidade veio a dar: o Senhor Roubado.

 

Tendo sido os judeus acusados do roubo das hóstias consagradas, em abstracta presunção de culpa, e perante a pressão popular, D. Pedro, Príncipe Regente desde 1667 em vez do seu incapaz irmão D. Afonso VI, proibiu aos cristãos-novos o exercício de cargos públicos e ainda de andarem de coche e a cavalo, de vestirem seda e usarem adornos com metais ou pedras preciosos.

 

Mesmo depois de se ter provado que a “nação hebraica” estava inocente e que tinha sido “um rústico, um jovem sem cultura e sem doutrina”2, um vulgar ladrão, possivelmente bêbado, que roubara a igreja sem perceber a gravidade do que fazia, as perseguições aos cristãos-novos, que estavam até então bastante integrados na sociedade, continuaram.

 

Veio a ser o Papa a apelar, sem sucesso, ao perdão geral dos conversos. A Inquisição acabou suspensa por Roma por causa dos abusos locais e a perseguição a judeus e a cristãos-novos foi um foco de tensão permanente entre Roma e a corte de Lisboa de então.

 

* * *

 

Nos últimos anos do seu longo reinado (quase 39 anos, dos quais 16 de regência e 23 em seu próprio nome), D. Pedro II contou com a imponente presença em Lisboa da sua irmã, D. Catarina de Bragança, a única portuguesa a sentar-se até hoje no trono de Inglaterra.

 

Por romântica que seja a ideia de que foi por sua influência que o chá, a mais britânica das tradições, se tornou popular, D. Catarina foi na realidade profundamente impopular no país onde lhe coube reinar.

 

Charles II and Catherine of Braganza c.1662, gravura comemorativa do casamento de Carlos II de Inglaterra com a Infanta D. Catarina, P STENT, Royal Collection Trust

 

 

Mal-amada pelos ingleses, traída compulsivamente pelo marido, perseguida por ser católica, foi, para cúmulo, incapaz de dar um herdeiro legítimo a um rei que tinha uma dúzia de filhos bastardos e precisava de consolidar uma dinastia acabada de restaurar após a breve experiência republicana de Cromwell.

 

E se em Portugal e em Espanha, por aquele tempo, se perseguiam os judeus, em Inglaterra eram os católicos o alvo da caça.

 

A questão religiosa está entranhada no ADN institucional inglês de forma quase imorredoira, tendo permitido, nos últimos 500 anos, os mais espantosos assomos de catolicismo e de anti-papismo. Basta pensar que há 500 anos, em 1521, Henrique VIII publicava o seu Assertio Septem Sacramentorum, uma apaixonada defesa dos Sete Sacramentos contra os ataques de Martinho Lutero.

 

Por esta prosa o Papa Leão X lhe deu o título de Defensor da Fé, que os monarcas ingleses usam orgulhosamente até hoje, embora já não sob a alçada papal. Claro que o mesmo Henrique VIII, para se divorciar de Catarina de Aragão, renegou o Papa e a Igreja daí a poucos anos. Os reinados que se seguiram foram de guerra, morte e tensão social em abundância. A questão religiosa tampouco se resolveu com o longo e glorioso reinado anglicano de Isabel I.

 

O sucessor da Rainha “Virgem”, o jovem Rei da Escócia, Jaime VI, parecia ser o sonho do ecumenismo: baptizado católico, crescido presbiteriano escocês e finalmente convenientemente atraído pelo anglicanismo que lhe garantiria o trono inglês onde reinaria como Jaime I.

 

Nos anos seguintes, o catolicismo perseguiu os reis ingleses com ferocidade prosélita. Jaime casara com uma princesa dinamarquesa e  luterana, mas Ana da Dinamarca acabaria por se converter à fé de Roma. O filho de ambos, Carlos I, casou com uma princesa francesa e católica – o que foi em si mesmo um dos condimentos da Guerra Civil que se travou no seu reinado e lhe custou a cabeça.

 

Já depois da Restauração, o neto de Jaime I, Carlos II, casou com D. Catarina de Bragança, infanta portuguesa e católica, tendo o Tratado de Casamento estipulado expressamente que a noiva poderia reter a religião católica – em troca de uma fortuna em dinheiro e ainda de Bombaim e de Tânger...

 

The Apotheosis of Catherine of Braganza 1675-c.1684, Pintura de Antonio Verrio (c. 1639-1707) no tecto da Câmara da Rainha no Castelo de Windsor, descrição completa no site da Royal Collection Trust

 

 

Perante esta sucessão de casamentos com católicas, era quase inevitável que o passo seguinte se desse: o irmão e herdeiro do Rei, Jaime, Duque de York, reconciliou-se com Roma. Viúvo e pai de duas filhas, Jaime casou com Maria de Modena, uma princesa italiana e católica e jovem. Furioso com a conversão do irmão e ciente da resistência que ia gerar em Londres, Carlos II orquestrou o casamento da sua sobrinha Maria, filha mais velha de Jaime, com o seu sobrinho Guilherme, Príncipe de Orange e soberano dos Países Baixos, filho de uma outra irmã sua e, sobretudo, protestantíssimo.

 

Contudo, a corte sentiu como os papistas ganhavam terreno. O Parlamento ameaçou retirar o Duque de York da linha sucessória e a Rainha D. Catarina foi falsamente implicada numa Conspiração Papista em 1678, acusada de tentar envenenar e matar o marido. O Parlamento chegou a decidir levá-la a julgamento, o que motivou protestos veementes do Regente de Portugal e o envio de uma embaixada a Londres.

 

As ordens religiosas e em especial a Companhia de Jesus, braço armado de Roma, voltaram a sofrer na pele. Nos quatro anos que demorou a demonstrar a total falsidade da denúncia da Conspiração, pelo menos 35 inocentes foram executados, a maioria dos quais jesuítas, com vários outros a morrer na prisão. Tudo acompanhado pelos incentivos de uma multidão sedenta de sangue católico, ainda que inocente.

 

Carlos II, pessoalmente responsável por desmascarar o autor da falsa acusação, nunca duvidou da lealdade da Rainha D. Catarina. Ter-se-á convertido ao catolicismo no leito de morte, apesar de ter sempre apoiado a facção anglicana do Parlamento e o endurecimento das leis contra os católicos.

 

The solemn mock procession of the Pope Cardinalls Jesuits fryers &c: through the citty of London November the 17th. 1679. Panfleto satírico anti-católico, 1680. EB65 A100 680s4, Houghton Library, Harvard University


 

A True Narrative of the Horrid Plot and Conspiracy of the Popish Party (1679). Panfleto satírico sobre a Conspiração Papista, procurando ridicularizar a denúncia, Royal Collection Trust

 

Foi o irmão e sucessor de Carlos, Jaime II de Inglaterra e VII da Escócia, a sofrer as consequências desta genética atracção fatal pelo catolicismo. Foi coroado com Maria de Modena em 1685 numa cerimónia anglicana, ainda que ambos fossem católicos. D. Catarina de Bragança, agora Rainha-Viúva, continuou em Inglaterra, onde o novo Rei foi amolecendo as leis contra os católicos e perseguindo anglicanos, o que havia de se revelar fatal.

 

Em Junho de 1688, ao fim de três anos de reinado e dez de casamento, a Rainha Maria deu à luz um príncipe saudável. Jaime, herdeiro do trono desde o seu nascimento foi alvo, naturalmente, de insistentes rumores: de que não era filho do Rei e de que o bebé da Rainha era nado-morto e um impostor tinha sido posto na cama dentro de uma escalfeta.

 

O rumor da escalfeta foi tal forma sério de que o Rei teve de publicar testemunhos de dezenas de pessoas que haviam assistido ao parto para o desmentir. Entre as pessoas dadas como presentes no parto, a Rainha-Viúva Catarina3, que havia de ser madrinha no baptismo, em Outubro, sendo padrinho o Papa, representado pelo Núncio4.

 

Em Novembro do mesmo ano, Guilherme de Orange, genro do Rei, invadiu a Inglaterra para garantir que o Protestantismo não era suplantado e para verificar os rumores sobre o Príncipe de Gales. Com pouca resistência e ajudado pela notícia da fuga da Rainha e do pequeno Príncipe para França e da tentativa de fuga do Rei, Guilherme chegou a Londres a poder dizer que não queria ser rei. No ano seguinte, o Parlamento legitimou a invasão estrangeira e o golpe.

 

Os ingleses adjectivaram-na, romanticamente, como Gloriosa: a revolução que substituiu os herdeiros legítimos do trono por um soberano estrangeiro, por motivos religiosos. 

 

* * *

 

D. Catarina continuou a viver em Londres mesmo depois da Revolução Gloriosa, nos primeiros anos do curto reinado conjunto (uma originalidade inglesa) dos Reis Guilherme III e Maria II, ambos reis por direito próprio. As tensões por causa do seu catolicismo não cessaram e a Rainha-Viúva partiu de Londres em 30 de Março 1692, sem aparato e não deixando saudades5.

 

A corte de Lisboa recebeu-a de braços abertos em 20 de Janeiro de 1693 e quando D. Pedro II ficou viúvo pela segunda vez e doente ou ausente, foi a sua irmã a assumir a regência. Fê-lo em dois períodos: em 1704 e 1705. Ao lado da antiga soberana, os seus sempre fiéis jesuítas.


 

Katharine Queen Dowager c.1685-1705, Mezzotint de D. Catarina de Bragança como Rainha-Viúva, ISAAC BECKETT (1653-1719), Royal Collection Trust

 

 

As relações entre Portugal e a Santa Sé eram especialmente importantes para o Rei D. Pedro II, que procurava uma estabilização depois do reconhecimento da independência pelo Papa, o que aconteceu apenas depois da assinatura do tratado de paz com Espanha.

 

O vil metal haveria, contudo, de esfriar as relações. Os quindénios eram pagamentos devidos à Santa Sé a cada 15 anos pelas congregações religiosas. Num braço de ferro que havia de se estender até bem entrado o reinado do Magnânimo D. João V, Roma foi exigindo o pagamento de dívidas em atraso do tempo dos Filipes e a regularização dos pagamentos de todos os colégios jesuítas, incluindo os que se tinham associado ao padroado real. O Rei recusava que os colégios sob a sua alçada tivessem de pagar tributos a Roma, fiando-se porventura nas palavras de Cristo e vendo-se como César.

 

Em 1698 chegou a Portugal um novo Núncio Apostólico, o Arcebispo Michelangelo Conti, que haveria de presidir ao clímax desta contenda. Conti tentou pressionar o novo Provincial dos Jesuítas ameaçando-o com a remoção do cargo caso não pagasse os quindénios, ao que o padre Domingos Nunes terá respondido que seria um favor que lhe fazia, como a qualquer outro a quem aliviassem de tarefa que “lhe rendia tão pouco”.

 

Perante a humilhação continuada, Roma passou a medidas mais severas e decretou a proibição da admissão de noviços pela Companhia, que entrou em vigor em Setembro de 1704. Pela mesma altura, D. Catarina estava Regente por ausência do irmão, envolvido na Guerra da Sucessão Espanhola. O Núncio Conti, entendendo a regência como eventual momento de fraqueza da posição real, terá exigido com maior veemência ao Provincial o pagamento devido.

 

À Rainha D. Catarina, sempre rodeada de jesuítas, não lhe escapou a afronta. Inspirada quiçá pelo anti-papismo que a perseguira em Inglaterra, proibiu o Núncio de entrar no Paço, restringiu-lhe privilégios diplomáticos e escreveu ao Papa protestando pelo que considerou ser “injúria à sua pessoa e à do rei, como um desprezo do seu sexo e menoscabo das ordens reais”6. O momento de maior tensão entre Portugal e a Santa Sé do reinado teve por protagonista um argumento de discriminação sexual por parte de uma rainha vítima de persistente discriminação religiosa.

 

D. Pedro II retirou as ordens da irmã contra Conti assim que reassumiu o poder. D. Catarina morreu no fim de 1705 mas os jesuítas não pagaram os quindénios. Conti foi nomeado Cardeal em meados de 1706 e foi chamado ao Paço, em finais do mesmo ano, para dar a extrema-unção ao Rei, o que fez, absolvendo-o dos seus pecados. Foi já D. João V a impor-lhe o barrete cardinalício e o Núncio foi designado, ao regressar a Roma, Cardeal-Protector de Portugal.

 

Bartomoleu de Gusmão apresentando o seu protótipo ao Rei, à Rainha e ao Cardeal Conti, Bernardino de Souza Pereira, Museu Paulista

 

No anos que por cá permaneceu até regressar aos Estados Papais, o Cardeal Conti assistiu deleitado aos ensaios da famosíssima passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão7, sacerdote de formação jesuíta que mais tarde havia de cair nas malhas insidiosas da lusa Inquisição. O termo do “longo e deplorável litígio” dos quindénios, como lhe chama a História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, só aconteceria em 1716. Como sabemos, para os jesuítas o pior estava ainda para vir.

 

* * *

 

No preciso dia 18 de Maio de 1721 em que a judia Maria Barbara Carillo era barbaramente queimada aos 95 anos de idade, um novo Papa era coroado na Basílica de São Pedro: Michelangelo Conti, Cardeal-Protector de Portugal8.

 

Tinha sido escolhido 10 dias antes pelo Conclave dos cardeais eleitores por unanimidade – descontado o seu próprio voto noutro cardeal. Escolheu para seu nome pontifício um nome que até hoje não voltou a ser usado por qualquer Vigário de Cristo: Innocentius, no latim papal; Inocêncio, no nosso vernáculo.

 

A inocência,

 

1. Qualidade ou estado de inocente.

2. Ignorância do mal; pureza; simplicidade, ingenuidade.

3. Isenção de culpa.9

 

é uma qualidade que, pelos padrões contemporâneos, dificilmente alguém negaria a Maria Barbara Carillo, condenada por seguir a sua fé, como continuam a ser tantas pessoas até aos dias de hoje, cristãos, judeus e muçulmanos pelo mundo fora.

 

Se à partida dificilmente se poderia dizer que Michelangelo Conti era culpado ou indigno do nome que escolheu, a verdade é que a autoproclamação da inocência, seja enquanto ignorância do mal ou enquanto pureza ou simplicidade, dificilmente será pelo menos compatível com a humildade que se exige a qualquer seguidor de Cristo. Ingénuo, depois do que vira em Portugal, também já não era.

 

Innocentius XIII P.M., Gravura do Papa Inocente XIII, Jacob Frey, British Museum

 

A escolha de nome papal pelo Cardeal Conti teve em conta raízes familiares profundas. Foi o quarto – e último – Papa da poderosa família Conti di Segni. O primeiro pontífice da família, Lotario dei conti di Segni (1161-1216), tinha escolhido reinar como Inocêncio III, ao já então longínquo tempo dos nossos D. Sancho I e D. Afonso II.

 

A solene cerimónia de coroação na Basílica de São Pedro foi descrita em pormenor para as cortes europeias e a Gazette francesa publicou o relato a 14 de Junho, detalhando cada passo, cada ornamento e paramento, cada gentilhomem e cardeal, o sic transit gloria mundi repetido três vezes, a coroação com a tiara e a primeira saída do Vaticano sob grandes aclamações10.

 

Para os que esperavam candura ou inocência do Papa Inocêncio XIII, o curto pontificado terá sido uma desilusão. Apesar da sua educação num Colégio da Companhia de Jesus em Roma, Conti tinha ficado mal impressionado com a atitude dos jesuítas em Lisboa. Considerava-os, muito provavelmente, relapsos, convictos e pertinazmente negativos nos seus erros, para parafrasear a sentença de Maria Barbara.

 

Na condenação que reiterou do uso do rito chinês, em que os missionários jesuítas misturavam práticas confucianas para melhor evangelização dos povos da Grande China, Inocêncio aplicou de forma radical o único remédio que vira funcionar em Portugal: proibiu a admissão de noviços até que ficasse provado que não continuavam a celebrar no rito chinês.

 

Provando-se pelos seus actos ainda menos inocente, no sentido de puro, dos três cardeais que Inocêncio nomeou, um era seu irmão. E dos três beatos que proclamou, um era da sua família.

 

Neste emaranhado de histórias cruzadas, importa referir que Inocêncio XIII confirmou o apoio de Roma ao deserdado Jaime Stuart, que teria nascido para a realeza numa escalfeta e então se proclamava, desde a morte do pai em 1701,  Jaime III de Inglaterra e VIII da Escócia. A Igreja apoiaria aliás a pretensão dos católicos Stuart e as suas tentativas de retomar a coroa até à morte de Jaime, em 1766, só então reconhecendo a dinastia dos protestantes Hanover, que ainda hoje reinam sob o nome de Windsor.

 

* * *

 

O que resta, nos nossos dias, deste infindável romance?

 

A Basílica de São Pedro conserva um monumento aos Três Stuart – Jaime III e os seus dois filhos: Carlos, o Bonnie Prince Charlie que invadiu a Escócia em 1745 e quase chegou a Londres, e o Cardeal Henrique Stuart. Os jacobitas (seguidores de Jacobus, Jaime em latim) – mas já não o Papa – reconheceram-nos como Carlos III e Henrique IX de Inglaterra, respectivamente.

 

Surpreenderá, contudo, que mais de 300 anos depois haja ainda fiéis da causa jacobita, ou seja, pessoas que acreditam que o legítimo soberano inglês e escocês não é a veneranda senhora que ali se senta há quase 70 anos, mas antes o actual Duque da Baviera, Chefe da Casa Real bávara, descendente de Carlos I de Inglaterra. E, por mais insólito que possa parecer, será provavelmente um futuro Príncipe reinante do Liechtenstein a herdar a pretensão jacobita.

 

As mais duras leis anti-católicos foram removidas por iniciativa do Duque de Wellington em 1829, durante o reinado de Jorge IV, apesar da oposição do Rei. A partir de então os católicos voltaram a poder ser eleitos para o Parlamento. Porém, só muito recentemente, em 2013, se alterou uma cláusula do Act of Settlement de 1701, que retirava da linha de sucessão ao trono quem casasse com um católico. O trono, esse, continua interdito a papistas.

 

Os jesuítas, por sua vez, depois de verem a sua ordem extinta e perseguida, continuam a ser peculiares em muitas das suas abordagens e não raro envoltos em polémica. Pertinazmente pouco dados à ortodoxia e à rigidez litúrgica, cumprem à risca a premonição de uma das testemunhas da Conspiração Papista: “The Jesuits fear neither death nor danger, hang as many as you will, others are ready to take their places”.

 

Em 2013 um jesuíta foi pela primeira vez eleito Papa: Jorge Mario Bergoglio, antigo Provincial dos Jesuítas na Argentina, escolheu como nome Francisco, em honra do santo do despojamento. Às voltas com a atracção humana e curial pelo vil metal desde o início do Pontificado, o último motu proprio que assinou impede os membros da Cúria, cardeais incluídos, de receber presentes que valham mais de €40, o que em Roma não deve dar para um ramo de flores silvestres.

 

A Inquisição foi gradualmente reconhecida como contrária às leis de Deus e dos Homens e extinta nos diferentes países ao longo do século XIX. Mas os seus métodos vieram a ser amplificados de forma trágica pelos regimes totalitários e ditatoriais do século XX. Até os Familiares do Santo Ofício encontram eco nos informadores das polícias políticas. As mais recentes notícias sobre as perseguições no seio da Academia pelo mundo fora, procurando coarctar a liberdade de expressão e levando não raro à exposição e tentativa de humilhação pública de quem se desvia da linha de pensamento autorizada pela nova bitola de consciência, são exemplo de que o espírito inquisitório sobreviveu nos mais inusitados fóruns.

 

Também as perseguições religiosas seguem pelo mundo fora. O anti-judaísmo transformou-se em anti-semitismo e continua a brotar nos sítios mais inesperados. As perseguições aos católicos seguem o curso dos séculos anunciado por Cristo no Seu tempo: “Se Me perseguiram a Mim, também vos perseguirão a vós.” (Jo 15, 20)

 

Os autos-de-fé, por sua vez, continuam hoje numa rede social perto de si – não já passíveis de descrições eloquentes como a de Voltaire, a de Dostoevsky ou a mais completa, de Saramago no seu Memorial do Convento.

 

Chamam-lhe nos nossos tempos cyberbullying e, como acontecia com os autos-de-fé originais, dispensam prova e os assistentes pouco se importam com a culpa. Turbas sedentas de sangue digital, humilham, caluniam, desprezam e riem, gozam, fazem justiça pelo insulto em verdadeiras caças às bruxas – com os mais variados pretextos e com um fervor próprio dos assistentes às fogueiras dos séculos idos.

 

Porventura tão inocentes quanto as perseguidas pela Inquisição, nas veias das vítimas do cyberbullying corre sangue real (no sentido de verdadeiro) e não digital, e não raro sofrem consequências físicas do abuso digital.

 

Perante essa realidade, em Portugal aprovou-se recente a pomposamente designada Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, no essencial um corpo proclamatório inútil e vago de lugares comuns para fazer manchetes nos jornais e provar, segundo o preâmbulo do projecto de lei, que estamos na vanguarda dos Direitos Humanos.

 

Trata-se, no essencial, de uma inconsequente proclamação dos referidos direitos – sem definição de regras para os garantir ou para evitar o abuso dos mesmos, apesar das leituras que encontram no diploma a promessa do regresso da censura, agora na era digital.

 

O corpo normativo concreto que permita a acção das autoridades e que eficazmente puna o abuso, o cyberbullying, ficou por fazer. Como falta, naturalmente, um incentivo palpável a uma literacia digital que eduque e dessa forma possa prevenir o abuso – ou sequer transmita às pessoas a consciência desse abuso que, por ser difuso e digital, passa por vezes despercebido.

 

Muito mais fez por esta causa Cristina Ferreira, rainha dos media, quando há tempos lançou um livro com um provocador título, a alertar para essa realidade. Não tendo lido além da sinopse, creio que é um contributo importante. São já demasiado longas as listas de pessoas que, tendo sido vítimas de bullying, puseram termo à vida.

 

Olhando à História, percebemos que cada uma dessas vítimas não foi a primeira cujo sangue inocente foi derramado. O mundo que hoje nos rodeia, exacerbado na dissensão, na violência e na intolerância, permite-nos perceber, também e infelizmente, que não será a última.

 

Ademar Vala Marques

Maio 2021

 

 

 

1 RELACION DE LOS REOS QUE salieron en el Auto particular de Fè, que el Santo Oficio celebrò en la Iglesia de el Convento de Santo Domingo el Real de esta Corte, el Domingo diez y ocho de este presente mes de Mayo de 1721. 1721

 

2 Lourenço, Maria Paulo Marçal, D. Pedro II, 2007.

 

3 Gazette du 3 Juillet 1688.

 

4 Gazette du 6 Novembre 1688.

 

5 Uma referência diminuta na London Gazette noticiou o seu próximo embarque para Calais, para começar o seu regresso a Lisboa, viajando pelos reinos católicos de França e Espanha.

 

6 Rodrigues, Francisco, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Volume 3, Capítulo VI, Porto 1944.

 

7 Tirapicos, Luís Artur Marques, Ciência e diplomacia na corte de D. João V: a acção de João Baptista Carbone, 1722-1750, Lisboa, 2017.

 

8 Na London Gazette de 10 de Junho houve referência ao facto de a corte portuguesa estar “very pleased” com a eleição do Papa, antigo Núncio em Lisboa.

 

9 "inocência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2021.

 

10 Gazette du 14 Juin 1721.