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sexta-feira, 11 de julho de 2025

Apresentação de Pedro Machete – Pessoa, Académico, Juiz.

 


 

  

Senhor Presidente do Tribunal Constitucional,

Senhora Ministra da Administração Interna,

Senhores Conselheiros,

Senhores Professores, 

Familiares e Amigos de Pedro Machete,

Senhoras e Senhores,

Muito bom dia a todos.

 

 

 

 

          Permitam-me, antes de mais, que explique ou tente explicar as razões da minha presença neste acto de lançamento do livro de amigos do Pedro Machete, o qual ocorre num espaço e num tempo carregados de simbolismo.

 

O espaço, a Universidade Católica, onde o Pedro fez todo o seu brilhante percurso académico –licenciatura, mestrado e doutoramento – e o tempo, o dia em que o Pedro faria, e faz, 60 anos – connosco.

 

          A minha presença nesta cerimónia, para mim muito honrosa e obviamente imerecida, carece de explicação, como disse. Não tenho credenciais académicas para discutir ou sequer apresentar muitos dos textos publicados neste livro, os meus interesses estão hoje situados em regiões muito diversas do Direito, ainda que por vezes em ligação com ele, e, importa dizê-lo, conheci o Pedro há muitos, muitos anos – pelas minhas contas, em 1984, sensivelmente –, mas nunca mantive com ele relações de especial proximidade ou intimidade.

 

          Em face disto, permitam-me que justifique a minha presença com base num acordo que fiz com os organizadores desta obra, em particular com o Miguel Nogueira de Brito, esse sim um grande e velho amigo do Pedro: sondado para escrever um texto para este livro, e não tendo capacidades para redigir um artigo jurídico à altura dos que figuram nesta obra, entendi que seria despropositado publicar algo sobre os temas que agora me interessam, sobretudo no domínio da História, tal seria o desfasamento em relação ao sentido geral deste livro.

 

É que, sendo o Pedro um homem de harmonias, que gostava de música clássica e que, segundo aqui nos é contado, chegou a cantar no Coro Bach da Igreja Evangélica Alemã de Lisboa, tendo toda a vida do Pedro decorrido sob o signo da harmonia, da harmonia da razão, entendi, e não me arrependo, que não faria sentido estragar essa harmonia com um texto dissonante e decerto estranho e anómalo neste conjunto de trabalhos.

 

          Por outro lado, e como disse, apesar de me considerar amigo do Pedro Machete, e de acreditar que esse sentimento era recíproco, um justificado pudor e respeito – e a personalidade do Pedro impunha respeito, amigável respeito, mesmo aos seus próximos – levaram-me a não querer, digamos, pôr-me «em bicos de pés» e prestar um testemunho pessoal como aqueles que o Pedro Ravara e o Johannes Laitenberger aqui apresentam, em dois textos extraordinários cuja leitura muito me comoveu (não fui, aliás, o único a ficar comovido por estes textos).

 

          Aceitei, pois, o «negócio» que o Miguel me propôs, que foi o de trocar a escrita de um texto pela apresentação pública da obra. E da apresentação da obra porque, de todos os presentes, penso ser eu o que, pela negativa, reúne mais características para o fazer: a garantia que, desde logo, não iria fazer um comentário jurídico a cada um dos textos ou ao seu conjunto; e a garantia de que não iria entrar em confidências íntimas ou pessoais sobre um amigo que jamais me as fez.

 

          Isto dito, o que ocorreu quando fui convocado para este acto, e quando soube que ele iria ter lugar, muito justamente, na Universidade Católica, o que me ocorreu, dizia, foi lembrar-me que conheci o Pedro Machete precisamente por causa da Universidade Católica, há mais de quarenta anos.

 

          Provavelmente, já o teria encontrado numa ou noutra ocasião, através, como sempre, do Miguel Nogueira de Brito, um discreto construtor e fazedor de pontes e cumplicidades. Mas foi na preparação da candidatura ao então chamado «ano zero» da Católica, em 1983, creio, quando frequentámos um curso de preparação na residência do n.º 300 do Campo Grande, que conheci e me aproximei do Pedro.

 

          Na altura, penso que por razões de logística familiar estival, a família Nogueira de Brito ainda estava de férias em São Martinho ou em Ponte de Lima, e o Miguel passou uma temporada em casa da família Machete, na Avenida do Brasil, ambos em preparação para a entrada no «ano zero» da Católica.

 

          Penso que não cometerei uma inconfidência se contar o que o Miguel, meu amigo desde os 4, 5 anos de idade, me descreveu sobre o que era partilhar uma jornada de trabalho com o Pedro.

 

O Pedro acordava, começava a estudar, estudava a manhã inteira, almoçava, almoçava abundantemente – e para o Miguel dizer isso, era, de facto, muito abundantemente… –, voltava a estudar a tarde inteira, hora a hora, horas a fio, sem falhas nem sobressaltos, sem pausas excessivas, sem conversas laterais. Estamos a falar de alguém que teria então uns 16 anos, e por aqui já se vê muito do que foi o Pedro ao longo da sua existência: uma maturidade muito precoce e uma férrea dedicação ao trabalho (e permitam-me outra inconfidência, mas que todos sabem: o que animava o Pedro nos seus últimos tempos de vida, além da fé e da proximidade dos familiares e amigos, o que o animava, dizia, era o trabalho, o estudo, a escrita – que manteve praticamente até morrer, o que não pode deixar de nos regozijar a todos. Poderemos e deveremos lamentar a partida precoce e prematura do Pedro Machete, a sua vita brevis, mas devemos pensar que, praticamente até ao fim, manteve intactas as excepcionais capacidades que lhe permitiam fazer algo que lhe trazia um enorme conforto intelectual e espiritual).        

  

          Além do trabalho em si mesmo, as descrições que o Miguel me fazia, algo abismado, do que eram os dias passados na residência da família Machete, evidenciam outra das grandes qualidades do Pedro, uma imensa e esmagadora capacidade de concentração.

 

          No plano intelectual e académico, mas também no plano pessoal, existencial, o Pedro destacou-se sempre – e, reparem, desde muito novo – por uma concentração absoluta, sem desvios nem atalhos, naquilo que para ele era o essencial: o trabalho, a família, a fé religiosa.

 

          O Pedro Machete nunca foi alguém que se evidenciasse pela retórica flamejante, por foguetórios de improviso, pelas «tiradas» verbais retumbantes, muito ao gosto latino, pela oratória de circunstância, pelos rasgos imprevistos.  O brilho que indiscutivelmente teve era de ouro verdadeiro, não de imitação ou de empréstimo; era profundo, estruturado, pensado, reflectido; em suma, era de uma extrema exigência para consigo mesmo e de uma implacável honestidade intelectual e, sobretudo, moral.      

 

          Se quiséssemos fazer uma «nuvem de palavras» para descrever o nosso Amigo, creio que todos concordarão nas seguintes:

 

- maturidade – desde muito novo, o Pedro foi uma pessoa excepcionalmente madura, pautado por uma ética da responsabilidade que o distinguia mesmo entre os seus pares e amigos;  

 

- coerência – o Pedro teve um percurso de vida de uma linearidade e de uma transparência absolutas, luminosas: licenciatura, mestrado, doutoramento, professor de Direito, passagem pela advocacia, juiz do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo. Não houve aqui desvios no caminho, nem acidentes de percurso. E, ao longo das diversas etapas que percorreu, nunca abandonou ou alienou os princípios com que foi educado. Nunca teve a avidez do dinheiro nem a tentação do poder. Com as suas qualidades, com o seu saber e com a sua entrega ao trabalho, com a sua rede de sociabilidades, o Pedro poderia ter sido um advogado de sucesso ou enveredado por uma carreira política (nesta, contudo, já não creio que tivesse tido tanto sucesso, dada a forma tão firme, por vezes inflexível, como se batia pelas suas convicções). Além desse percurso cristalino, admiravelmente coerente, o Pedro Machete sempre manteve o essencial da sua crença nas virtudes da social-democracia, da economia de mercado, de um Estado Social interventivo, da justiça social – um texto neste livro, de Gonçalo Almeida Ribeiro, ilustra bem até que ponto o Pedro tinha preocupações sociais muito claras e fundadas, mas, como sempre, prosseguia-as sem alarde, sem dar nas vistas.   

 

          Muitas outras palavras se poderiam acrescentar – a racionalidade, a solidez, a confiança, o rigor, a discrição, a honestidade.

 

Falarei apenas de mais uma: a lealdade. O Pedro era de uma lealdade absoluta nos seus compromissos. Todos os que se encontram nesta sala poderão testemunhá-lo: os colegas da universidade, os seus pares no Tribunal Constitucional. Uma vez dada a palavra, assumido um compromisso, o Pedro não voltava atrás nem tergiversava, não se adaptava às circunstâncias e aos auditórios. Era, em suma, das pessoas mais fiáveis e mais confiáveis que conheci na vida.  

 

E agora, pela negativa, no Pedro não encontrávamos a tirada fácil, a piada de salão, o improviso, o facilitismo, o deixa andar, o dolce fare niente, o adiamento, a ousadia e a audácia impensadas, a eloquência de circunstância.

 

 O mais espantoso é que a sua personalidade era una, se quisermos era um bloco maciço, inteiriço, compacto, mas não se impunha pela arrogância ou pela sobranceria, aliás não se impunha de todo nem a ninguém. O Pedro era como era sem fazer alarde disso, sem impor e sem nos impor a sua indiscutível grandeza intelectual e humana. E, como disse, as características que singularizavam o Pedro – a maturidade, a confiança, o rigor – atravessavam e projectavam-se sobre todos os planos da sua existência: o familiar e pessoal, o académico e profissional, o religioso e moral.

 

Ao contrário do que sucede a alguns, ou muitos, o Pedro não era rigoroso numa esfera e facilitista na outra, não mudava de registo consoante os lugares, as situações ou solicitações. Porque, no fundo, tudo o que era e fazia brotava da mesma e única personalidade e o Pedro, que tinha uma consciência aguda e muito nítida do que para ele era essencial, não fazia concessões a ninguém, nem sequer a ele próprio. 

 

No belíssimo texto com que abre este livro, o Pedro Ravara conta-nos um passeio em São Martinho, nos já muito idos de 1981, e descreve que, às tantas, o Pedro Machete e o Miguel Nogueira de Brito se envolveram numa discussão sobre a República de Platão.

 

O Pedro Machete, que nasceu e cresceu num meio de elite – de elite intelectual – e que sempre pertenceu à escassa elite intelectual do seu país, correspondeu certamente ao ideal platónico de um rei-filósofo virtuoso, que até ao fim manteve as convicções, os princípios e os valores que herdara dos seus pais e que cultivou pela vida fora: a crença na família, a fé em Deus, vivida criticamente, e a adesão à social-democracia fundadora do Partido Popular Democrático.

 

Num certo sentido, porém, o seu espaço e o seu tempo já desapareceram.

 

Quanto ao espaço, o Pedro não pertencia, digamos, ao universo mental do que se convenciona chamar «Portugal», sempre teve como referência uma realidade-outra, claramente não latina, mas também, note-se, não totalmente germânica.

 

Quanto ao tempo, o tempo de Pedro Machete era, nos seus alvores, o da burguesia meritocrática do Estado Novo, que começou a afastar-se do regime ainda antes do 25 de Abril e, por isso, pôde fornecer os quadros, os melhores quadros, do pessoal político da área democrática do pós-revolução. Foi nesse tempo que o Pedro foi formado, e o texto do Johannes mostra-nos, por exemplo, como acompanhou já com o maior interesse, por exemplo, a revisão constitucional de 1982.

 

Por razões familiares, o Pedro cresceu num meio em que a política foi vivida como muita intensidade, a intensidade do PREC, é certo, mas também ou sobretudo a intensidade da construção da democracia, de Sá Carneiro e da AD, da primeira revisão constitucional, dos alvores do Bloco Central, da adesão à Europa.

 

O Pedro acompanhou tudo isso de perto – e ao mais alto nível –, o que contribuiu certamente para a sua formação política, mas também para o seu amadurecimento precoce, digamos, na observação da vida e dos outros. É aliás sintomático que, tendo vivido a política de tão perto e tão intensamente desde muito novo, o Pedro nunca se tenha tentado seduzir por ela, talvez porque tenha pressentido que ela é, ou poderia ser, fonte de muitas desilusões, ou, o que é mais provável, porque não tenha querido desviar-se do rumo que traçou para si próprio: ser professor de Direito e jurisconsulto.  

 

Como referi, o tempo de Pedro Machete – como o nosso – já desapareceu em muitas das suas dimensões. A nossa incompreensão perante muito do que hoje está ocorrendo, o comportamento irracional dos eleitores, o facto de estes fazerem escolhas que gritantemente ferem os seus interesses, as mil explicações que ensaiamos para tal desconcerto – seja o peso das redes sociais, seja o declínio das classes médias, sejam os defeitos do «sistema», seja o solipsismo das elites ou a sua indiferença perante os deserdados de um Estado social em crise –, todas essas explicações radicam, no fundo, no nosso desfasamento em relação ao tempo em que vivemos, ou pelo menos a significativas parcelas dele.

 

Dir-se-á que ainda somos demasiado novos para sermos assaltados por sentimentos como esses, mais próprios da senectude e da idade maior, que na reprovação moral do presente, na perplexidade e no nojo ético que ele nos provoca, vai implicada uma indisfarçável nostalgia de uma ordem pretérita que, bem vistas as coisas, era mais imaginada do que real.

 

Na verdade, e se quisermos, não fomos nós que envelhecemos, foi o tempo que acelerou, e acelerou a uma velocidade tal que tornou velhas mesmo pessoas jovens e muito inteligentes, como o Gonçalo Almeida Ribeiro. Velhas no sentido de terem perdido as coordenadas de racionalidade e as grelhas com que analisavam o mundo, e que tinham uma lógica clara – se eu estudar, vou ter uma profissão bem remunerada e uma vida confortável; ou, se um partido ou um líder mentirem serão punidos pelos eleitores; ou deve acreditar-se na ciência e nos consensos científicos; ou, ainda, o reconhecimento público de A ou de B é um correlato e uma consequência do seu mérito e, por isso, a sua presença na esfera pública é uma garantia da credibilidade e da fiabilidade das suas opiniões.   

 

Foram estas as coordenadas com que Pedro construiu a sua vida, a sua carreira, e se posicionou no mundo: o valor do trabalho, a crença na democracia, o culto da verdade, da verdade política e da verdade científica, a convicção de que, numa sociedade justa, o mérito é premiado, a noção de que a informação é transmitida de cima para baixo, não de baixo para cima, e que as fontes de informação escrutinam os seus conteúdos através de diversos mecanismos públicos: na academia, através da revisão pelos pares; no jornalismo, através do espírito crítico de leitores também eles esclarecidos e informados.

 

Tudo isso, em larga medida, pertence ao passado. Daí que tenhamos grandes dificuldades em compreender o presente, ou uma sua parcela significativa, e, mais ainda, tenhamos grande dificuldade em discernir no presente como será o futuro. Resta-nos, pois, e tão-somente, acreditarmos e confiarmos no tempo, recordando aquele velho provérbio cigano que diz: «depois de amanhã, o amanhã será ontem.»

 

Compreende-se, assim, que o Pedro muitas vezes observasse a realidade com um olhar irónico, até mordaz, e que não tivesse contemplações para com a mediocridade e para com o facilitismo ou para a vertigem do mediatismo.  

 

Mantendo um elevado criticismo em relação ao evoluir do seu país – ou, se quisermos, ao evoluir do tempo no seu país e no mundo –, o Pedro teve, contudo, o bom senso de não cair em duas atitudes muito óbvias, muito clássicas e muito fáceis: a primeira seria a de cair numa espécie de ennui e desalento em relação à pátria; a segunda seria a de olhar com nostalgia para um passado que, convenhamos, verdadeiramente nunca existiu, e no qual o Pedro sempre teve a clarividência de não figurar como seu lugar de refúgio.

 

Até nisto, como vêem, ele foi exemplar. Ou, em poucas palavras, nesta sua passagem pelo mundo, mais efémera do que desejaríamos, mas ainda assim suficientemente longa e activa para deixar uma marca indelével em todos quantos o conheceram, nessa passagem pelo mundo, dizia, o Pedro Machete tornou-nos a todos um pouco melhores ou, pelo menos, um pouco menos maus.  

 

Hoje não teremos o Pedro-físico, e por isso o recordamos com saudades, mas temo-lo no que ele teve de essencial, o seu legado exemplar como ser humano, como académico e como cidadão.

 

Dirão que é fraco lenitivo para nos compensar pela sua perda, ainda que devamos perguntar-nos até que ponto o que lamentamos na morte do Pedro Machete não seja também, em larga medida, um pouco da nossa morte.

 

É inevitável falar disto, mesmo nesta ocasião, desde logo para exaltarmos a beleza, a beleza suave, de um grupo de amigos, sob a égide do Miguel Nogueira de Brito, do Rui Medeiros, do Gonçalo Almeida Ribeiro e do José António Teles Pereira ter-se-reunido para escrever um livro que, segundo se diz no proémio, não é um in memoriam, mas um liber amicorum. Um livro escrito na certeza de que, se o mesmo fosse feito para qualquer um de nós, o Pedro estaria na primeira linha para prestar o seu depoimento. Aliás, o primeiro dos testemunhos ou depoimentos deste livro é feito pelo próprio Pedro. Este é o seu depoimento, o seu testemunho de vida, um livro em que o Pedro está presente em cada linha, falando connosco através das palavras dos seus amigos. Assim, mais do que o livro dos amigos do Pedro Machete, este é, ou será, o livro do Pedro Machete e dos seus amigos.

 

A sua morte tão prematura, tão adversa à ordem natural das coisas, confrontou-nos todos, como é evidente – e de forma brutal –, com a nossa própria finitude, com a possibilidade de ocorrência de um imprevisto inexplicável que altera tão radicalmente aquilo que temos por natural e expectável e, sobretudo, aquilo que temos por justo. Ocorre-me à lembrança uma frase de Guicciardini, contemporâneo de Maquiavel, «é um facto notório que todos vamos morrer. E, no entanto, vivemos como se fôssemos viver para sempre», convicção que uma morte tão precoce como a do Pedro naturalmente abalou – e, por isso, tanto nos abalou.  

 

Contudo, e mesmo sendo é óbvio que tudo isto foi uma inversão das nossas expectativas, das expectativas quanto aquilo que é, ou deveria ser, o curso normal da vida e das coisas, deveremos ter presente que o Pedro, pese ter morrido novo, cumpriu e viu serem cumpridas as expectativas que tinha para a sua existência: o cumprimento do legado moral dos seus pais, ambos vivos; a presença da Margarida, companheira até ao fim; três filhas que cumprem e superam as expectativas de qualquer pai, mesmo de um pai exigente como o Pedro era; irmãos e cunhados, sobrinhos, dois genros e um neto, Pedro como ele.

 

No plano académico, fez um brilhantíssimo mestrado, a que assisti, e um não menos brilhante doutoramento, a que também assisti, com a Joana muito ansiosa, amoravelmente ansiosa, ante o resultado da prova, que só para ela poderia ter algum mistério... O Pedro deixou escritos marcantes, importando dizê-lo que alguns deles foram logo os relatórios que elaborou no mestrado, ainda hoje estudados e citados, a prova mais concludente da sua esmagadora densidade intelectual. Por fim, mas não por último, foi juiz e vice-presidente do Tribunal Constitucional por mérito absoluto, sem favores políticos ou sem pertencer a tribos ou côteries de espécie alguma e teve ainda a ventura de realizar o velho sonho de ser juiz do Supremo Tribunal Administrativo, após uma cerimónia em que muitos dos presentes compareceram. Além da família, lembro-me do Miguel, o velho amigo sempre presente, do Pedro Mendes Pinto e do Joaquim Pedro Cardoso da Costa, que nunca perde uma ocasião para estar com os outros e para lhes mostrar que há esperança na humanidade.

 

No Tribunal Constitucional, o Pedro Machete deixou a sua marca, a sua inolvidável marca, e não falo dos acórdãos que relatou ou das declarações de voto que subscreveu, aqui analisados por muitos dos seus pares: Maria Lúcia Amaral, João Caupers, Maria José Rangel de Mesquita, José João Abrantes, Gonçalo de Almeida Ribeiro, José António Teles Pereira, Cláudio Monteiro.  

 

A marca do Pedro no Tribunal, e peço que compreendam que não fale tanto da que deixou na Universidade Católica, que conheço pior, a marca que o Pedro Machete deixou no Tribunal Constitucional evidencia-se nisto, numa coisa tão singela: o índice deste livro. É assombroso e comovente ver que, ao lado dos académicos distintos que foram seus mestres ou colegas, e ao lado de dois dos seus grandes amigos, o Pedro Ravara e o Joahnnes Laitenberger – e reparem, o amigo de São Martinho e o amigo da Escola Alemã –, surjam tantos juízes ou ex-juízes do Palácio Ratton, alguns dos quais não hesitam sequer em contar um ou outro episódio de cariz mais pessoal, como sucede com o texto do Presidente João Caupers.

 

Esta obra tem isso de tão singular, que só alguém como o Pedro poderia mobilizar: a junção singela de um grupo de amigos, uma reunião sem alardes, sem floreados, exactamente como o Pedro gostaria que fosse. Não é, e isso é esclarecido logo no início, um clássico livro de homenagem, com textos de muita gente que, mais do que homenagear o homenageado, quer tantas vezes homenagear-se a ela própria. É um livro de amigos, que, por acaso, ou não por acaso, também mantêm entre si, na esmagadora maioria dos casos, laços de amizade. Ou seja, não é apenas um livro dos amigos do Pedro Machete, é também um livro de pessoas que, em muitos, muitos casos, são amigas ou muito próximas, seja porque tiveram percursos comuns, seja porque partilham afinidades electivas, seja enfim porque sim, e isso basta. O facto de os amigos do Pedro Machete serem também amigos uns dos outros não será decerto uma coincidência – e o facto de terem querido celebrar a sua memória não pode deixar de ser visto como prova do seu carácter e de um certo modo de ver o mundo.   

 

Haverá outras esferas aqui não presentes, nomeadamente a familiar e a religiosa, mas, até por isso, porque elas respeitam a um núcleo mais pessoal e íntimo, que o Pedro sempre fez questão de preservar, compreende-s0e que sejam reservadas para outros lugares.  O livro, aliás, é muito o retrato dos seus organizadores, quer na forma discreta e despretensiosa com que se apresenta, quer na opção, que é muito típica destes nossos amigos, de falarem através do silêncio.

 

Ao invés de um prefácio evocativo, sentimental, o livro abre com três parágrafos brevíssimos, que dizem tudo. A evocação está pressuposta nos textos que seguem, a dor da perda nem sequer necessita ser explicitada, tudo é, enfim, do domínio da reserva, da contenção, exactamente como o Pedro gostaria que fosse.

 

Pedindo desculpas por o tempo que vos estou a tomar, não resisto, quase a concluir, a mencionar um breve e extraordinário ensaio há pouco publicado por Maria João Mayer Branco, intitulado Expectatio e dedicado a uma imagem escultórica belíssima, a Virgem da Expectação, atribuída a Mestre Pero e hoje patente no Museu Nacional de Arte Antiga.

 

Poderá parecer estranho, e talvez o seja, falar da expectação de Maria a propósito de um amigo falecido jovem, na força da idade, que em seu redor ainda congregava tantas e tão merecidas esperanças e expectações.

 

Mas talvez por essa via se possa chegar ao ponto que eu queria alcançar, o fio invisível que une o Pedro-avô e o Pedro-neto.

 

O livro de Maria João Mayer Branco começa com uma frase cortante, porventura terrível, de Jorge de Sena, «não foi para morrer que nós nascemos.»

 

Mas, depois, lá pelo meio, cita uma frase de Hannah Arendt que, partindo da mesmíssima ideia de Sena, dá-lhe um outro significado, completamente distinto. Escreveu Hannah Arendt, na Vida do Espírito, «embora devam morrer, os homens não nascem para morrer, mas para começar.»

 

É curiosíssimo que duas pessoas que muito provavelmente nunca se conheceram, mas que escreveram mais ou menos em simultâneo, tenham partido de uma mesma ideia – não foi para morrer que nós nascemos –, mas acabem por dar-lhe uma tonalidade tão diferente. No caso de Sena, a desesperança absoluta; no de Hannah Arendt, o inciso luminoso, radioso, de que toda a vida tem um fim, decerto, mas que antes de o ter tem um começo.

 

Na vida do Pedro houve vários começos e recomeços, e muitos princípios concretizados – o doutoramento, o Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal Administrativo. Nenhum, porém, foi tão grande como o das suas filhas e o do seu neto.

 

É que, como escreveu também Hannah Arendt, «o milagre que salva o mundo é o facto do nascimento e a possibilidade do nascimento, pois só eles, só o poder de começar, permitem “fé e esperança” nos assuntos humanos.»

 

E acrescenta Hannah Arendt, judia, que várias vezes se proclamou agnóstica: «Esta fé e esta esperança no mundo talvez nunca tenham sido expressas de modo tão sucinto e glorioso como nas breves palavras com as quais os Evangelhos anunciaram a "boa nova": Nasceu uma criança entre nós

 

Ou seja, e em suma, no Pedro-neto celebramos um novo começo, que o Pedro-avô ainda viu começado.

 

E a propósito, ou despropósito, de esperanças e expectações, dos começos que toda a vida encerra, gostaria de recordar-vos, a terminar, o sermão que o Padre António Vieira dedicou ao culto da Senhora do Ó.

 

Não irei maçar-vos com as subtilezas argumentativas do Padre António Vieira, nem com o poder refulgente da sua oratória barroca, que o livro de Maria João Mayer Branco tão bem explica.

 

Retenhamos apenas uma frase de Vieira, que diz: «a presença, para ser presença, há-de ter alguma coisa de ausência.»

 

Com este livro, os amigos de Pedro Machete tornaram presente o ausente, um ausente que continua e continuará presente – enquanto nós formos e o quisermos.

 

Muito obrigado.   

           

                                                    António Araújo




quinta-feira, 15 de maio de 2025

Um ovni delicioso.




Será uma pena, deveras pena, que as pessoas não comprem e não leiam este livro julgando que se trata de uma biografia de Julio Iglesias. Porque o não é, sendo-o. Mas já lá vamos.

Como será uma pena que as pessoas não comprem e não leiam este livro por não gostarem de Julio Iglesias, por o acharem ou “foleiro” ou machista ou narcisista ou, pior ainda, vazio e desinteressante.

Esta não é uma biografia para os amantes de Julio Iglesias, ainda que também o seja ou possa ser. Para isso, no entanto, existem obras mais volumosas e informadas. Nenhuma delas, porém, com a qualidade literária excepcional, absolutamente excepcional, deste livro.

A ironia é um caminho à beira do precipício e quem a pratica está sempre em risco de cair no ofensivo escusado ou no engraçadismo balofo. É por isso que este livro é uma obra literária notável, a vários e muitos títulos. Por ter um estilo original e fazer uma abordagem originalíssima a uma vida alheia, uma aproximação que não encontramos em lugar algum, nem nas melhores biografias brasileiras ou anglo-saxónicas. Acima de tudo, por saber conter-se nos limites da graça suave, mordaz q.b., do humor inteligente, talentosíssimo. Nada há, porém, de ficção ou inventanço ou, praga dos nossos dias, da autoficção enganosa, desonesta nos propósitos e nas intenções. Tudo aqui é factual e verificado, não vá o diabo (ou o Julio) tecê-las. Em simultâneo, este não é um ensaio académico maçudo e chato, à la française, sobre Julio Iglesias e o seu mito.

O que é este livro, então? Um ovni delicioso. Não é biografia exaustiva, daquelas que contam tudo e a par e passo. Não é essai intelectual. Não é um exercício de ficção ou pseudoficção. É, talvez, chamemos-lhe assim, uma «narrativa biográfica», de uma subtileza tremenda, que nos leva até Julio e às suas muitas e desbragadas intimidades, e que nos descreve, como poucos, a Espanha do tardofranquismo e os desmandos da corrupção em democracia.  Percebemos como ali tudo é em grande e à grande, como somos uma versão em miniatura do país vizinho, na violência e no fervor das paixões, na dimensão planetária das suas estrelas da pop, na escala dos muitos escândalos, na ligação às Américas do Sul e do Norte, esta conquistada por Julio com muito engenho e arte.

Leiam este livro para além ou apesar de Julio (mas também, se quiserem, por causa de Julio e das nostalgias). Leiam-no como um exercício e uma lição de escrita. Leiam-no pelo prazer de ler, aqui plasmado em cada linha, em cada metáfora inesperada, em cada imagem desconcertante ( o Dr. Iglesias, pai, maravilhoso, espanholíssimo!).   

Magnífico, imperdível, e o mais que se diga.

 

                                                                                        António Araújo 

 



segunda-feira, 5 de maio de 2025

segunda-feira, 10 de março de 2025

Deste lugar onde escrevo.

 


                                                                                                                                       1951

 


Vivo aqui há trinta anos. Do lugar onde isto escrevo, a três, quatro minutos a pé, estiveram estacionadas as tropas de Afonso Henriques antes de tomarem a cidade aos mouros. Em resultado disso, o rei mandou que se erguesse um mosteiro, em cumprimento da promessa que fizera antes da batalha, cujo desfecho vitorioso permitiu que hoje eu possa escrever isto aqui, deste lugar onde escrevo. Mais tarde, já no tempo de outros reis, aqueles que nos ocuparam durante quase uma centúria inteira, o mosteiro foi reedificado pedra sobre pedra, adquirindo as formas que ainda hoje mantém, e que podem ser observadas nas selfies que os turistas vindos nos tuk-tuk depois propalam pelo Instagram fora, com eles no primeiro plano, e o monumento em segundo. Nos trinta anos que aqui levo, neste lugar onde escrevo, vi só um pedaço do mundo, mas muito mundo aqui vi: caíram o Muro e as Torres, mostrando a fragilidade dos impérios, houve um cortejo de guerras e de outros tantos desastres, uns mais naturais do que outros, migrações, turbulências, com um Portugal de permeio, governanças sucessivas, triunfos do Glorioso. Acontecimentos de grande impacto, que a todos por certo abalaram, mas que vistos de aqui pouco interessam, não sendo sequer falados. Problemas à séria, esses sim amplamente ventilados, são os do estacionamento e o dos buracos no pavimento, foi o não haver luz na rua meses a fio, anos quiçá, pese as múltiplas diligências e insistências dos moradores mais activos e interventivos junto da junta e da câmara, com cartas para a EDP, até em formato papel. No plano das instituições, o ódio à EMEL continua por aqui em níveis muito elevados e têm grafitado regularmente o palácio que o cantor espanhol famoso comprou ao lado do mosteiro, “Free Palestine” e assim, mas agora já vai em “Morte a Israel” e “Israel = Nazi” (esta, no coreto da Graça). Fechou, e isto já há um bom par de anos, a mercearia da dona Ana e do marido, cujo nome eu nunca soube, e onde punham os preços todos à mão, com autocolantes em cada artigo, um a um, o dia inteiro naquilo. À esquina, em frente de onde querem fazer um hotel, prossegue a bom ritmo e sem falta de freguesia a funerária que fez o enterro do Cunhal e espero que faça o meu. Abriu um indiano a meio da rua, mas fechou pouco depois, suspeito que por queixas de insalubridade feitas pelo comércio do lado, Zezé Cabeleireiro, o brasileiro que me apara o cabelo e faz a barba (na tropa diziam desfazer a barba). Além dos dois filhos que têm, um dos quais chamado Enzo, o Zézé e a Joyce, que abriu um salão na rua, mais abaixo do marido, trouxeram para casa há uns meses uma pretinha de São Tomé, cuja mãe teve nove de enfiada, todos dados para adopção. No mais, a carteira continua maluca e põe gorro vermelho por alturas do Natal, saiu a padeira bêbada para dar lugar a outra que fuma à porta, o João está a dormir no coreto e já não arruma no mosteiro, ficou só o Djaló. Por vezes, quadros de miséria: os drogaditos tão escanifraditos, coitaditos, os bêbados inchados roxos, uma mãe a gritar com o companheiro ao telemóvel, com a filha de ambos a chorar ao lado. Vai de vento em popa uma loja de artesanato chamada “By Nunes” e ao virar da esquina, já em Santa Marinha, o sr. Mohammed Taj Uddin, vindo do Bangladesh com a numerosa família, abriu uma loja de artigos variados (para que não houvesse erros na grafia do nome completo, pedi ao sr. Mohammed Taj Uddin que mo apontasse num papelito, que aqui transcrevo). Ao fundo da rua, grande sucesso de público tem tido, merecidamente, o restaurante sofisticado do casal Mário e Werner, um português de gema, o outro suíço de nascimento. Deste lugar onde escrevo, mesmo por baixo de mim, também permanece exitosa a loja de azulejos da Cristina, onde o Miguel-filho agora dá cursos e workshops a miúdas estrangeiras bem giras. A oficina-loja é na antiga farmácia do sr. Pereira, que agora vende relógios na Feira, e o ateliê onde o Miguel-filho dá aulas fica onde antes era uma padaria, cuja funcionária saudosa, uma bruxa já velhota e desdentada, gritava muitos filhos da puta! (com a variante filhos da puta dum cabrão!) sempre que na rua passavam carros com estrépito ou buzinadela. Neste lugar onde escrevo, muito turista, muito dragão tatuado, muita minissaia ululante, mas nota-se menos, não sei porquê, o corrupio matinal das mulheres das limpezas dos alojamentos locais, que outrora andavam sempre ajoujadas com muitos sacos azuis do IKEA, daqueles dos bons. Mas no ano em que isto escrevo, e já vamos em Novembro, o acontecimento mais marcante e impactante foi, sem sombra de qualquer dúvida, o encerramento há muito ameaçado d’O Cantinho, café-bar com esplanada, que também fazia as vezes de centro de dia e antro de batota, que a dona Fernanda e o sr. Zé aqui tinham tomado de trespasse no dia 2 de Agosto de 1986, 38 anos certinhos. Tinham vindo ambos do Norte, ele de Monção, ela de Góis, conheceram-se no Pereira de Alfama, o do cozido afamado, a Fernanda na cozinha, primeiro só a ajudar, ele a servir às mesas. Começou em 9 de Junho de 1975, ainda sabe a data certa de cor, e aí conheceu gente muito relevante dos tempos da revolução, o Rosa Coutinho e o outro, o Almeida Santos, e o outro que agora não me lembra o nome. Aqui cresceu-lhes um filho, o filho, o Filipe, que foi carteiro primeiro e depois mudou para a Uber, e que aqui casou, divorciou, foi pai de um menino e de uma menina, Leonor como a minha mais velha, e cujo sonho maior é ter um dia um iPhone (“daqueles da maçãzinha”, complementou o avô). Em contrapartida, poucos notaram a partida da dona Teresa, que desde que enviuvou ficou uma sombra, e já estava num lar, julgo que da Santa Casa. A vizinha ao lado dela, de quem nunca soube o nome e nem sei se tem filhos e netos (se tem, nunca os vi), continua a acenar-me sempre que lhe passo à janela, umas vezes com o cão, outras não. Um país em miniatura, Portugal dos Pequenitos visto da minha janela. Fiz obras em casa, tenho duas no Erasmus, e, pese o que para aí dizem sobre as alterações no clima, a luz de Lisboa continua um espanto. Assim morramos com ela.  


Escrito no dia da morte do meu amigo Pedro Machete (1965-2024).   

                                                                                     

                                                                               António Araújo





segunda-feira, 4 de março de 2024

Resposta a Clara Pinto Correia.

 




Em resposta a um texto da minha autoria, intitulado “Clara Pinto Correia: adeus, princesa” (Diário de Notícias, de 25/2/2024), Clara Pinto Correia (CPC) publicou, no Página Um, um artigo em que põe em causa a minha honorabilidade profissional, questionando a qualidade e o rigor do trabalho que desenvolvi.

Não vou tecer quaisquer comentários sobre a apreciação que faz do meu texto, nem sobre os epítetos que me dirige (“homúnculo”, “nulidade”, “a criatura”, “aprendiz de feiticeiro”, “o despistado”, “jornalista limitado”, “apressado cronista de costumes”, “uma personalidade de todo em todo alérgica a dar um passo dentro de uma biblioteca”).

Cingir-me-ei, tão-só, aos erros e supostas falsidades que me imputa:

 

1 – Acusa-me Clara Pinto Correia de ter deturpado uma frase da sua autoria (“este aprendiz de feiticeiro manipulou e não foi pouco”). Segundo ela, a frase que escreveu foi “Numa lindas manhãs de sol, só nós dois, a passarada, e o anel de benzeno.”  E a que eu escrevi foi: “Só nós os dois e a passarada, em manhãs muito lindas, cintilantes de sol de Inverno.

Sucede, porém, que, neste texto da sua autoria, que citei, constante da Newsletter da Faculdade de Medicina, nº 82, de Outubro de 2018, o que está escrito é, ipisis verbis, “Só nós os dois e a passarada, em manhãs muito lindas, cintilantes de sol de Inverno.

Portanto:

a)    – a frase que Clara Pinto Correia diz que escreveu não consta do texto assinado e publicado por ela na Newsletter da Faculdade de Medicina;

b)    – a frase que eu citei é a que consta, sem tirar nem pôr, do texto que ela escreveu e deu à estampa.   

 

Que Clara Pinto Correia não se recorde de tudo o que escreveu, não é grave.

Grave é nem ter tido o cuidado de verificar a sua prosa, antes de acusar levianamente os outros de a terem deturpado.

 

– Acusa-me Clara Pinto Correia de ser “um jornalista que pelos vistos tem preguiça de investigar” e que o meu texto parece “escrito à pressa por um estagiário”, uma vez que cometi um lapso ao dizer que ela é a mais velha de quatro irmãs.

Simplesmente, não foi um estagiário que fez tal afirmação – pelos vistos, errada –, mas o decano dos jornalistas portugueses, Adelino Gomes, num artigo saído no Público, em 26/12/2000, onde se refere textualmente “professora universitária e escritora Clara Pinto Correia, a mais velha de quatro irmãs”.  

Pergunto-lhe apenas se considera Adelino Gomes “um jornalista que pelos vistos tem preguiça de investigar.” E agora?

 

3 – Clara Pinto Correia desmente ter escrito livros de ficção científica.

Acontece que essa afirmação não é minha, mas da Infopédia, a qual afirma que ela tem “a tendência para mesclar géneros romanescos (o policial, a ficção científica)”. Aliás, a mesma Infopédia informa que o livro que escreveu em parceria Mário de Carvalho tem “um pendor mais próximo da ficção científica”. De resto, e para fim de conversa, Clara Pinto Correia participou no livro Ficções Científicas e Fantásticas, um género que, diz agora, “eu francamente detesto.”

Que ela não se lembre do muito que escreveu, não é grave.

Que não tenha procurado informar-se, é lamentável.

 

4 – Clara Pinto Correia refere que eu digo que ela casou em Las Vegas com Pedro Palma. Não sou eu que o digo, é isso que se infere desta reportagem Correio da Manhã, Vidas, de 16/1/2010, disponível aqui, para a qual, aliás, ela contribuiu com declarações.  

 

***

 

No texto que escrevi sobre Clara Pinto Correia, omiti deliberadamente, como é óbvio, aspectos pessoais e íntimos (v.g., os anteriores casamentos, os filhos adoptivos), só falando daquilo que é do conhecimento público (v.g., os plágios, as fotografias dos orgasmos), matérias sobre as quais, aliás, a própria se pronunciou abundantemente em centenas de entrevistas e declarações à imprensa, que li na íntegra, de fio a pavio, como, já agora, visionei dezenas de horas dos vários programas em que participou.

Procurei, como sempre faço na série “Prova de Vida”, escrever um texto equilibrado e justo para o visado, no qual, note-se, classifico o seu livro Adeus, Princesa como “uma obra-prima”, digo que o seu pai era “uma das maiores sumidades mundiais no ramo da gastroenterologia”, afirmo que é “comovente” o relato que Clara faz dos passeios com o seu pai, refiro que ela foi “a primeira jornalista portuguesa” a escrever sobre o lince da Malcata, e que nas suas três carreiras – cientista, jornalista, escritora – se destacou “quer pela exuberância do brilho, quer pelo impressionante ritmo da sua produção.”

Mais ainda: refiro que, “como cientista, publicou nas mais prestigiadas revistas do mundo” e, como escritora, “publicou cinco dezenas de livros, ou mais, cobrindo todos os géneros.” Refiro também que se doutorou “com louvor unânime” e que nos EUA teve o “período mais fecundo da sua carreira.” Depois, saliento que fez, “e bem” (sic), o que lhe deu na real gana, mas que acabou sendo “uma vítima não-inocente” do paroquialismo do meio cultural português, que procedeu à sua “defenestração implacável”, em parte por “inveja”, em parte por “atávica misoginia.”

Num balanço final, acrescento que nunca se procedeu a uma avaliação isenta da sua obra, que permitisse “distinguir aquilo que tem efectivo valor e interesse (quase todos os seus trabalhos de divulgação de ciência, muitos dos quais pioneiros) daquilo que se mostra mais duvidoso (praticamente toda a obra literária).”

Clara Pinto Correia por certo estava à espera de um ditirambo acrítico – e acéfalo –, mas, temos pena, um perfil biográfico não pode ser um derramar de elogios atrás de elogios sobre o biografado. De resto, foi o facto de ter sido alvo, em muito nova, de um processo de “genialização instantânea” que, como digo no meu texto, acabou por marcar o seu destino e criar o ego desmesurado que, pelos vistos, ainda mantém.  

O texto que escrevi, garanto-lhe, não contém plágios, mas terá lapsos e erros. Em todo o caso, nenhum dos que Clara Pinto Correia me aponta, sendo citadas todas as fontes de informação, como convém, e que ela bem poderia ter consultado antes de ter posto em causa o meu brio profissional e o rigor do meu trabalho, coisa que não fiz em relação ao trabalho dela, bem pelo contrário. Julguei ter escrito um texto suave e ponderado, compassivo e terno, mas Clara assim não o percebeu, o que é um problema dela – ou, melhor, o que é o problema dela.

 

  António Araújo