segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Água em Portugal? Só parte dela, era escusado um título enganador.

 



 

O livro intitula-se Água em Portugal, o seu autor é Rodrigo Proença de Oliveira, professor universitário e investigador. A sua área de interesse é a hidrologia e os recursos hídricos, o ensaio que escreve é sobre a gestão dos recursos hídricos em Portugal. O título da obra e o grafismo da capa com uma torneira doméstica ou, vamos lá, de equipamentos públicos, sugerem que o livro tem a ver com as características da água de abastecimento público. Não é isso que acontece, o autor adverte que “este ensaio analisa a gestão dos recursos hídricos em Portugal Continental”, num contexto em que “apesar de a disponibilidade per capita ser confortável, a irregularidade temporal e a assimetria espacial provocam situações de escassez”. Acresce que o autor define este seu trabalho como “ensaio para o grande público.”

O enfoque está, por conseguinte, na gestão dos recursos hídricos na perspetiva estrita da hidrologia, isto é, das quantidades e movimentação da água na terra nos seus diversos estados físico-químicos, na natureza e nas infraestruturas criadas pelo Homem para armazenamento, transporte e utilização agrícola, industrial e urbana.

Avisa-nos na introdução que a água tem características peculiares, é um recurso sujeito às leis da natureza, é igualmente um recurso económico, e clarifica que o uso da expressão gestão dos recursos hídricos procura distinguir da gestão dos serviços de águas, isto é, dos serviços de abastecimento de água para consumo humano e de saneamento das águas residuais. É de prever que a Fundação Francisco Manuel dos Santos venha a publicar outro ensaio intitulado Água em Portugal II. Ficamos depois a saber que a gestão dos recursos hídricos compreende todas as utilizações da água dentro e fora dos seus cursos, incluindo as necessidades dos ecossistemas. E o leitor recebe mais informação, esta gestão está associada à hidrologia (a ciência que estuda a distribuição, a movimentação e as propriedades físico-químicas da água nos diferentes compartimentos do sistema hidrológico natural), abrangendo também as infraestruturas hidráulicas, os instrumentos de governança e de gestão.

São caracterizados estes desafios da gestão, explanam-se conceitos como bacia hidrográfica, quais as que temos, quem as gere e entra-se numa explanação sobre o regime hidrológico de Portugal Continental, figuras e quadros não faltam; segue-se uma breve perspetiva histórica das infraestruturas e quadro legal institucional, como se fazem os aproveitamentos hidráulicos existentes, não se esquece de mencionar a Lei da Água (Lei nº58/2005) e a Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos (Lei nº54/2005), fazem parte da transposição para o Direito Nacional da Diretiva-Quadro da Água da União Europeia, até chegarmos aos convénios luso-espanhóis sobre águas internacionais. Para a porção de leitores que pretendam este esclarecimento parcelar das políticas da água, a narrativa é rigorosa, trabalho de escola não falta.

Subsistem, porém, sinuosidades da escrita. Diz-se que “Portugal não é um país pobre em recursos hídricos”, compara-se os valores de escoamento anual (?) em Portugal (7100 m3/ano/hab) com os da França, Itália, Espanha, Grécia e Reino Unido. No mesmo sentido acrescenta-se que “250 m3/ano/hab é considerado por muitos (?) como a referência a baixo da qual o país se torna vulnerável à escassez de água.” No parágrafo seguinte acrescenta “No entanto, vários fatores determinam uma acentuada simetria espacial da disponibilidade do recurso”… com o rio Tejo a dividir o território entre um Norte húmido e um Sul seco. O leitor fica esclarecido?

Somos depois sujeitos a um curso acelerado de hidrologia e assim se chega aos usos da água, e aqui, palavra de honra, se isto é um livro de divulgação estou mesmo néscio. Para que o leitor entenda que nada tenho contra este escrito a não ser o seu despropósito de não ser destinado ao grande público, cinjo-me ao uso industrial da água, escreve-se que é estimado o volume captado em Portugal Continental para fins industriais em 387hm3/ano. A maior parte deste volume de água (79%) é satisfeito a partir de origens superficiais. As RH com maiores volumes captados são as do Tejo, Sado e Mira e Vouga, Mondego e Lis. Em 2018, o volume acrescentado bruto (VAB) das indústrias transformadoras e extrativas foi de 24,4 mil milhões de euros, correspondendo este valor quase exclusivamente às primeiras, uma vez que o peso da indústria extrativa é inferior a 2%. É interessante verificar que o volume captado para usos industriais nem sempre acompanha o VAB de cada região. A RH5 – que inclui a Região Metropolitana de Lisboa, as zonas industriais do Arco Ribeirinho Sul e o polo industrial em torno da Volkswagen Autoeuropa – é a que apresenta maior VAB e maior uso de água…” Realça-se os consumos da agricultura, a produção de energia elétrica, como se processa a proteção de ecossistemas aquáticos e ribeirinhos. Questiona-se disponibilidades de água e balanço hídrico. Quanto aos desafios do futuro, recorre-se a uma linguagem tecnocrática muito útil para não sobressaltar ninguém:

“A resposta ao desequilíbrio entre disponibilidades e necessidades de água exige uma estratégia ativa, eficaz e integrada, que assegure simultaneamente o desenvolvimento social e económico do país e a proteção e valorização dos ecossistemas naturais.

Essa estratégia deverá consubstanciar-se numa política pública coerente e consistente que, idealmente, resulte de um consenso esclarecido e alargado a toda a sociedade, mas particularmente entre aqueles cuja atividade mais se relacione com a água. No seu papel regulador de diferentes interesses que são, naturalmente, em parte antagónicos, cabe ao Estado mover essa política, assumindo responsabilidades, reconhecendo direitos e distribuindo tarefas. Nesse sentido, é fundamental existir um sistema de governança capaz de assegurar uma utilização eficiente e sustentável dos recursos hídricos, o que exige um quadro legal e institucional adequado, infraestruturas operacionais, sistemas de monitorização, capacidade técnica e acesso a recursos financeiros.” Assim se sacode a água do capote para estar bem com gregos e troianos, não compete ao professor universitário meter as mãos na massa do alguidar, com generalidade, ambiguidades e lugares comuns não se motiva o leitor, porque isto da gestão dos recursos hídricos e da hidrologia não é assunto direto da cidadania, tenham paciência. 


                                                        Mário Beja Santos


A década prodigiosa.

 



        É um livro volumoso, de mais de 600 páginas, porque, no fundo, no fundo, constitui um três em um: (1) memórias de juventude, contadas com contenção e reserva (por exemplo, quanto à sexualidade); (2) retrato de uma década, com abundância de factos e números; (3) almanaque revivalista, cozinhado com os ingredientes certos para o paladar dos mais nostálgicos. E a primeira coisa a dizer é que o autor soube conjugar e entrelaçar muitíssimo bem estes três planos, o que, convenhamos, não era tarefa fácil.

          Há o risco de este livro ser tomado, ou ser tomado apenas, como uma colectânea de referências pretéritas (a situações, a bens de consumo) para alimentar o mercado da nostalgia, quando a intenção do autor, segundo creio, foi muito mais vasta do que isso (daí nem citar sequer as Cadernetas de Cromos de Nuno Markl).

Como há o risco de julgar que o autor pretendeu teorizar sobre uma década que qualifica de «prodigiosa», o que também não julgo ter sido o seu propósito (daí não ter mencionado uma brincadeira que escrevi em forma de livro, Da Direita à Esquerda. Cultura e sociedade em Portugal dos anos 80 à actualidade).

Três notas apenas:

- este é um retrato da primeira geração que viveu a chegada em força da sociedade de consumo a Portugal (as memórias de outros tempos falavam de bailaricos e festas da aldeia, esta prende-se muito mais, e não por acaso, com aquilo que gastávamos, comíamos, usávamos);

- em segundo lugar, este é um retrato da primeira década de democracia plena, ou quase (o Conselho da Revolução só foi extinto em 1982), sendo curioso observar como a democratização e o consumismo correram a par, lado a lado, em convívio íntimo – e explicam em larga medida as vitórias eleitorais de Cavaco;

- em terceiro lugar, por fim mas não por último, este livro revela, com copiosos exemplos, o ritmo alucinante como, em poucos anos de meados da década de 80, se alteraram radicalmente os nossos hábitos culturais e de consumo. Em três, quatro anos, passámos dos ténis Sanjo à Adidas, o que teve profundíssimas implicações sociais e culturais, mas também políticas, ou essencialmente políticas. De semelhante, só a queda do Muro em Berlim. E, de facto, o que em Portugal ocorreu nos anos 80 foi também a queda de um muro ou, se quisermos, o derrubar das últimas pedras de uma ditadura tingida de preto e branco. O juízo do autor relativamente à «década prodigiosa» será talvez complacente ou benévolo em excesso, exagerado até, e, claro, naturalmente ditado pelas circunstâncias próprias das suas origens, condição social e dos lugares onde cresceu. Mas que foi assim como ele conta, ai isso foi.

 

                                                                          António Araújo        


sábado, 26 de outubro de 2024

São Cristóvão pela Europa (280).

 

 

 

Inicio com este post a digressão pelo Estado de Niederösterreich (Baixa Áustria) que circunda a Área Metropolitana de Viena.

O primeiro distrito por que passei foi o de Wiener Neustadt.

A cidade que dá o nome ao distrito foi a capital imperial de Frederico III (1415-1493).

Já aqui contei a história da imagem desaparecida da Catedral em https://malomil.blogspot.com/2020/12/sao-cristovao-pela-europa-135.html

E não posso deixar de mencionar que aqui viveu a Imperatriz Leonor (1434-1467), mulher do Imperador, filha do Rei D. Duarte de Portugal. Em Wiener Neustadt morreu e foi sepultada. Na Abadia de Neukloster pode-se ver o seu túmulo da autoria de Niclas Van Leyden e ostentando as armas de Portugal.

 


Se o túmulo da Imperatriz Leonor não foi fácil de localizar, só consegui aceder ao do filho, o imperador Maximiliano I, graças à condescendência do oficial de dia da Academia Militar, instalada no que era o Palácio Imperial e a contígua catedral.

Como bónus, consegui ver o local esplendoroso onde a Imperatriz assistia à missa

 



No distrito, estive em três localidades: Bad Schönau, Kirschlag e Bromberg. 

Em Bad Schönau, a igreja fortificada de São Pedro e São Paulo tem um grande fresco exterior representando São Cristóvão do final do Século XIV. A igreja foi atacada pelos turcos em 1683 e pelos húngaros em 1708.

 

 

A Igreja de São João Baptista em Kirchschlag, cujo nome oficial é Kirchschlag in der Buckligen Welt, tem um mural no seu exterior. A igreja foi construída no Século XV em estilo gótico tardio.

A localidade é dominada pelas ruínas do seu castelo do Século XII. Na Strangerstrasse um mosaico na empena de um edifício.

 


  


Finalmente em Bromberg, a Igreja de Santo Lambert construída essencialmente no Século XV, é também uma igreja fortificada que servia também como elemento de defesa.

Tem um mural.

 


 

                                                Fotografias de 2 de Agosto de 2024

                                                                                    José Liberato




quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Scorsese em estado de graça e para quem qualquer rosto humano tem um direito sobre nós.




Tudo terá começado em 3 de março de 2016, em Nova Iorque, um jesuíta e teólogo, Padre Antonio Spadaro, encontrou-se com Martin Scorsese em sua casa para discutir Silêncio, filme que o realizador italo-americano dedicou à perseguição aos jesuítas no Japão, e a relação do cineasta com a fé. Este livro compendia um conjunto de conversas sobre as motivações do cineasta, ele é questionado sobre a fé e a graça que, mais ou menos subtilmente, emergem das suas obras. O mínimo que se pode dizer do todo desta obra é que ficamos com o retrato de uma das principais figuras contemporâneas da sétima arte, Conversas Sobre a Fé, Casa das Letras, 2024.

Nesse primeiro encontro de 2016, Scorsese fala da sua juventude, era acólito e por vezes ao sair para a rua no fim da missa perguntava a si próprio: “Como é possível que a vida continue como se nada tivesse acontecido? Porque é que o mundo não é abalado pelo corpo e pelo sangue de Cristo?” Questão que o realizador tratou no cinema em filmes como O Touro Enraivecido, A Última Tentação de Cristo e o Silêncio. Padre e realizador irão encontrar-se durante o período da pandemia, falarão de pessoas e livros que influenciaram o realizador que continua obcecado em filmar sobre Jesus.

Fala-se inicialmente de Silêncio, dos jesuítas perseguidos no Japão. Scorsese é assumidamente católico, inquieta-o a questão da graça, algo acontece ao longo da vida e comenta: “Não se consegue ver através da experiência de outra pessoa, apenas da nossa. Por isso, pode parecer paradoxal, mas relacionei-me com o romance de Shūsaku Endō.” Contará ao entrevistador o que pensa das fascinantes e intrigantes personagens do romance, padres que perderam a sua fé, padres que descobriram o rosto de Cristo. Questionado se a compaixão é instinto ou humor, responde que a chave é a negação de nós mesmos, ele dá-se como obcecado pelo espiritual. “Estou obcecado com a questão do que somos. E isso significa olhar para nós de perto, para o bom e para o mau. Será que podemos cultivar o bem para que, num momento futuro da evolução da humanidade, a violência possa, possivelmente, deixar de existir? Mas, neste momento, a violência está cá. É importante mostrar isso. Para que não se cometa o erro de pensar que a violência é algo que os outros fazem.” Reflete demoradamente sobre o tempo da pandemia, os livros que releu, os filmes que viu e fala do que ressoou em si a mensagem do Papa Francisco:

“Durante muitos anos, tentei compreender como Jesus vive no mundo que o rodeia e como a sua presença pode viver em mim e ser expressa por mim. Durante muito tempo cometi o erro de pensar que estava a exprimir Jesus quando, na verdade, estava a estragar as coisas – era uma questão de orgulho e de ego, de me deixar levar pelo papel de grande realizador de cinema e pelo poder de fazer arte. Lendo o texto do Papa Francisco, fiquei entusiasmado.” E fala do seu passado e da sua juventude, em Little Italy¸ Nova Iorque, zona de crime organizado, frequentou uma escola católica, conheceu o padre Francisco Príncipe, influenciou-o muito. “Ele representava uma forma de pensar e uma forma de lidar com a vida que era muito, muito diferente do mundo cruel, duro e julgador que me rodeava. Olhava para nós e dizia: ‘Não têm de viver assim’.” Era uma época de movimentos de direitos civis e o padre Príncipe dera-lhe uma abertura para o mundo, teve um efeito poderoso sobre Scorsese. Pensou que estava destinado a seguir a vida sacerdotal, cedo descobriu que estava a tentar esconder-se da vida e do medo, apercebeu-se que queria estar com os outros, e então apareceu a paixão pelo cinema.

Há um outro momento decisivo na sua vida quando, em 1964, viu o filme Evangelho Segundo Mateus, de Pasolini, o filme era para ele num planeta diferente, o rosto de Jesus aparecia nada que tinha visto antes. “Os outros filmes sobre Jesus que tinha sido feitos até essa altura eram muito, muito piedosos, e sempre que Jesus aparece é o centro das atenções em todos os sentidos. É destacado do resto da humanidade na sua maneira de falar, na sua maneira de se mover, na sua perfeição física e no enquadramento, na encenação, na encenação, na iluminação. Mantém uma longa tradição de representar Jesus na pintura de forma absolutamente idealizada. Mas o que Pasolini fez foi tornar Jesus um ser humano, uma pessoa, alguém que se pudesse conhecer e com quem se pudesse falar.”

Respondendo a comentários sobre os seus filmes lembra que A Última Tentação de Cristo toca em toda a iconografia da igreja. “Apercebi-me que tinha de ir mais longe na história de Jesus quando fiz este filme. Havia uma parte de mim que se sentia compelida a lidar com a iconografia – tinha de criar a crucificação, tinha de criar a ressurreição de Lázaro, tinha de criar o sermão da montanha, mas acho que essa não é realmente a história de Jesus.” E, mais adiante: “Jesus abraça toda a humanidade, e Jesus é realmente toda a humanidade. Mostra-nos a todos o caminho, a forma de viver, de lidar com a raiva, a vingança e a retribuição, com o amor, o perdão, a redenção e tudo o mais que existe em nós e entre nós.”

E conta-nos o que o acicatou a filmar Assassinos da Lua das Flores. “Por volta do início do século XX, os Osage descobriram petróleo na sua reserva. Rapidamente, tornaram-se o povo mais rico do mundo. Depois, como é óbvio, os brancos especuladores e vigaristas e oportunistas e ladrões e assassinos desceram. Sentiram o cheiro do dinheiro fácil. Houve um esforço concentrado para matar praticamente toda a comunidade Osage em troca do dinheiro do petróleo, por todos os meios imagináveis: tiroteios, atentados à bomba, a bebidas alcoólicas e envenenamento lento.” Confessa que procura compreender e aceitar a violência que existe em nós, procura aprender sobre a vida interior dos outros observando o seu comportamento exterior. Volta a falar sobre a hecatombe que caiu sobre os Osage: “O reinado de terror dos Osage foi uma questão de poder e ganância. Foi muito fácil para Bill Hale e todos os outros assassinos desumanizarem os Osage, mas estes homens e mulheres não foram assassinados por serem Osage, foram assassinados pelo seu dinheiro. No final, os assassinos não escaparam com nada a não ser dinheiro. Os Osage têm a sua cultura extraordinária, agora em processo de renascimento e reconstrução.

E Scorsese despede-se deixando um argumento para um possível filme sobre Jesus, belíssimo texto a coroar esta longa conversa sobre a fé, medos e inspirações, sempre presentes no cinema de um dos maiores realizadores do nosso tempo. 


                                                                        Mário Beja Santos



 

Obrigado.

 



terça-feira, 22 de outubro de 2024

São Cristóvão pela Europa (279).

 

 

 

Termino o circuito pelo Estado austríaco da Estíria em Anger e Strallegg.

A Igreja dos Catorze Santos Auxiliares de Anger é dedicada ao conjunto daqueles catorze santos, incluindo São Cristóvão, de que já tenho falado e que são muito celebrados no mundo germânico.

É uma igreja de peregrinação, presumivelmente edificada no início do Século XVI.

O portal oeste tem uma inscrição com a data de 1517.

No altar-mor uma pintura representa os catorze santos. O destaque é dado a Santo Egídio e a São Brás. São Cristóvão está representado ao alto.

Numa das paredes da Igreja, 14 óleos com as imagens individuais dos 14 Santos. O de São Cristóvão tem a data de 1743 e a assinatura de Philip Widenhof.

Há ainda um pendão usado nas procissões.

 




Na igreja de Strallegg, dedicada a São João Baptista, existe, num nicho exterior, um monumento funerário com um grande mural de São Cristóvão.

 



Finalmente, em todo o Estado de Burgenland, encontrei apenas uma imagem de São Cristóvão.

Foi em Zahling, a menos de 10 quilómetros da fronteira húngara.

A Igreja de São Lourenço tem mais de 700 anos de existência, tendo um sino com a data inscrita de 1404.

No exterior um mural do nosso Santo, bastante desvanecido.



                                                         Fotografias de 1 e 2 de Agosto de 2024.


                                                                                                    José Liberato


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Como me fiz um homem inteiro, feito de todos os homens e que vale por todos eles.

 


 

Antes de se tornar no Papa do existencialismo, em grande romancista e dramaturgo, teatrólogo brilhante, ativista de grandes causas, Jean-Paul Sartre foi criança, teve uma infância marcante, viveu num ambiente familiar tratado com desvelo e atribui àquela atmosfera de livros o gosto em tornar as palavras que leu na sua própria escrita. As Palavras, romance autobiográfico dado à estampa poucos meses antes de lhe ser atribuído o Prémio Nobel da Literatura, é esse estupendo exercício.

Escavando a memória, libertando recordações, vai dar-nos essencialmente o que foi a sua infância no meio dos livros, no recato do meio familiar e como a leitura lhe definiu o modo de escrever, na pessoa em que se transformou. Dirá mesmo que “comecei a minha vida como provavelmente a irei terminar: no meio dos livros”. E adianta: “No escritório do meu avô, havia-os por toda a parte; era proibido limpar-lhes o pó, exceto uma vez por ano. Ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas; direitas ou inclinadas, robustas como tijolos nas estantes da biblioteca ou nobremente espaçadas em áleas de menires, sentia que a prosperidade da família dependia delas. Tocava-lhes às escondidas para honrar as minhas mãos com a sua poeira, mas não sabia bem o que fazer delas e todos os dias assistia a cerimónias cujo sentido me escapava: o meu avô – normalmente tão desajeitado que a minha mãe lhe abotoava as luvas – manuseava esses objetos culturais com uma destreza de oficiante. Vi-o mil vezes levantar com um ar ausente, dar a volta à mesa, atravessar a divisão em duas passadas, pegar num volume sem hesitar, sem se dar tempo de o escolher, folheá-lo ao voltar para a poltrona, com um movimento combinado do polegar e do indicador.”

Muito se fala da Alsácia Lorena, o avô domina fluentemente o alemão e o francês. A biblioteca é volumosa, a vida social era fluente, como Sartre observa: “Frequentávamos pessoas ponderadas que falavam alto e com clareza, baseavam as suas certezas em princípios sãos, na sageza das nações, e não desdenhavam distinguir-se do comum apenas por um certo maneirismo da alma, ao qual eu estava perfeitamente habituado. As visitas despediam-se, eu ficava sozinho, evadia-me desse cemitério banal, ia juntar-me à vida, à loucura dos livros. Bastava-me abrir um para nele redescobrir esse pensamento inumano, inquieto, cujas pompas e trevas ultrapassavam o meu entendimento, que saltava de ideia em ideia, cem vezes por página, e eu deixava-o seguir, atordoado, perdido.”

Para gozar na plenitude As Palavras, de Jean-Paul Sartre, Livros do Brasil, 2024, é preciso aceitar este passeio na memória até uma biblioteca do início do século XX, dela extrair a formação de uma mentalidade, a descoberta de que foi nesta infusão de leituras que nasceu o prazer da escrita. O menino Sartre é puxado pela mãe e pelo avô, da leitura que hoje se designa por infato-juvenil, um autêntico mundo de aventuras, a estudar em casa é depois inscrito no liceu onde se descobre que era demasiado avançado para a sua idade. Vai olhando à volta os adultos da sua família, confessa que e o seu corpo formavam um estranho casal, é educado no catolicismo até que a fé, um dia, se esvaiu. Teve as suas doenças e foi mimado nas suas convalescenças. Deus o angustia, e Dele passa a descrer: “Se Deus me livrasse das aflições, eu teria sido uma obra-prima assinada; seguro da minha parte no concerto universal, teria aguardado pacientemente que Ele me revelasse os seus desígnios e a minha necessidade. Eu pressentia a religião, aguardava-a, era o remédio. Se me a tivessem recusado, eu próprio a teria inventado. Que não ma recusassem: educado na fé católica, apreendi que o Todo-Poderoso me criara para a Sua glória: era mais do que aquilo que eu ousaria sonhar.”

Educado nesta atmosfera de gente cumpridora dos preceitos culturais burgueses, vai-nos deixando registos esplendentes desta sociedade antes da Primeira Guerra Mundial. O teatro, por exemplo:

“Os burgueses do século passado nunca se esqueceram do seu primeiro serão no teatro e os seus escritores encarregaram-se de nos relatar as circunstâncias. Quando o pano subiu, as crianças julgaram-se na corte. Os ouros e as púrpuras, as luzes, as pinturas, a ênfase e os artifícios punham algo de sagrado até no crime; no palco, viram ressuscitar a nobreza que os seus avós haviam assassinado. Nos entreatos, a estratificação das galerias oferecia-lhes a imagem da sociedade; foram-lhes mostrados, nos camarotes, ombros nus e nobres vivos.“

Aprendeu a ler, sente-se um beneficiário do amor familiar, é nisto que, surdamente, o vai minando a epopeia da escrita. A segunda parte de As Palavras é em si própria a génese da sua aventura na escrita, ele vai descrevendo as sinuosidades em todas estas tentativas dos seus queridos juvenis, a mãe orgulhosa com estes primeiros escritos, o avô mais cético. Em retrospetiva, faz a sua confissão:

“Há alguns anos, fizeram-me notar as personagens das minhas peças e dos meus romances tomam as suas decisões bruscamente e em crise, que basta um instante, por exemplo, para que o Orestes das Moscas conclua a sua conversão. Sem dúvida: é que os faço à minha imagem; provavelmente, não tal como sou, mas tal como quis ser (…) À falta de me amar, fugi para a frente; resultado: amo-me ainda menos, essa inexorável progressão desqualifica-me incessantemente aos meus olhos; ontem, agi mal, visto que era ontem, e hoje pressinto o julgamento severo que farei incidir sobre mim amanhã.”

E dá-nos uma despedida que é a sua assumida condição humana posta em palavras:

“Durante muito tempo, considerei a pena como uma espada, agora conheço a nossa impotência. Não importa: faço, farei livros; é preciso que o faça; servem para alguma coisa, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, não justifica. Mas é um produto do homem: este projeta-se nela, reconhece-se nela; apenas esse espelho crítico lhe oferece a sua imagem (…) Lancei-me por inteiro à obra para me salvar por inteiro. Se arrumo a impossível Salvação no armazém, que resta? Um homem inteiro, feito de todos os homens que vale por todos eles, e por quem valem todos os outros.”

Um monumento autobiográfico no topo da grandeza da escrita. 


                                                                            Mário Beja Santos

 


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

São Cristóvão pela Europa (278).

 

 

 

A cidade austríaca de Graz conserva ainda mais imagens de São Cristóvão.

A praça principal, hoje denominada simplesmente Hauptplatz, teve outrora o nome infamante de Adolf Hitler.

Tem a forma de um trapézio.

No seu número 6, num edifício do Século XVII, um belo mural da autoria do pintor austríaco Paul Scholz (1859-1940).

 


 

A Catedral de Graz foi construída por decisão do Imperador Frederico III que voltaremos a mencionar nesta série de posts. É dedicada a Santo Egídio.

A grande imagem da Catedral é um fresco de São Cristóvão de grandes proporções pintado em 1464 e que tudo indica ter a cara e o corpo do Imperador.



Finalmente, a igreja do
Heiligen Blut (do Santo Sangue), hoje de estilo barroco, conserva um portal lateral onde se pode ver o nosso Santo.

Os vitrais da Igreja foram destruídos na II Guerra Mundial e redesenhados nos anos 50 do Século XX. Um dos vitrais é sobre o sofrimento de Jesus e representa entre os torturadores Hitler e Mussolini, ao alto do lado direito.

 



                                Fotografias de 1 de Agosto de 2024

                                                                  José Liberato





Carta de Bruxelas.

 







                                                                        Fotografias de João Tiago Proença



sexta-feira, 11 de outubro de 2024

No cinzel de uma obra-prima literária as memórias de uma guerra que não se apagam.

 



A Selva Dentro de Casa, por Possidónio Cachapa, Publicações Dom Quixote, 2024, está muito longe de ser destinado só a antigos combatentes, é uma recordatória para um país inteiro do legado de uma guerra colonial, tal como o autor escreve em primorosa dedicatória:

“Este livro é dedicado a todos aqueles que adormeceram para sempre, entre palmeiras distantes, imaginadas por nós a preto-e-branco, e que nunca pediram para ver.

E para os que regressaram pela selva dentro. A que nunca chegou a ser deles. A selva escura. Tão sombria que não conseguirão falar dela até ao fim. A floresta que como um sonho se fecha e afasta quando se evoca o seu nome. Que parte das coisas que eles não conseguiram dizer, aos filhos e às mulheres, porque não há palavras para descrever o Inferno possam, finalmente, surgir à luz.

Mas, também, a todos os homens, mulheres e crianças que ao mesmo tempo viviam uma outra guerra dentro das suas casas. Que essa criança interior encontre finalmente a paz.”

Trata-se de uma tentativa vitoriosa de trazer à consciência de um povo o que se terá passado na vida daqueles milhares de jovens que saíram de casa para ter um arremedo de preparação bélica, metidos depois no meio do transporte mais rápido ou mais vagaroso para saltar de continente e cair no local ensombrado pela multiplicidade de violências e horrores que uma guerra pode oferecer. Sou levado a supor que há um certo pendor autobiográfico nesta criança – narrador, o sobrinho do Quim, aquele menino tão amado pelo seu tio, a viver algures numa fundura alentejana vai-nos desenvencilhando protagonistas que parecem ter carne viva, tal a corrente elétrica imposta pela narrativa, a mãe, a tia Lurdes, logo na entrada, a poderosa descrição do lugar e do tempo:

“Durante todos os anos da minha infância, os meses avançaram da mesma maneira: a noite que chegava mais cedo e o caminho penoso para a escola que odiávamos; o Inverno que vinha tão gelado arrefecia tudo em que tocávamos e nem sacos de água quente nos salvavam de tremer, quando se entrava nos lençóis; o aparecimento das primeiras flores lilases e que depois quase desapareciam, debaixo de uma onda de verde e de odores que enlouqueciam de calor.

E, finalmente, o começo do Verão (…) O Verão era a coisa mais importante das nossas vidas.”

É a comunicação fulgente, funcional, de fácil entendimento que nos cativa logo e nos leva de cambulhada até ao final da história. O tio leva o menino às festas, o menino vai à escola e vão se interpolando os episódios do Quim na tropa, o sobrinho na sua fundura alentejana, a tropa passa por Luanda, o pai do menino reaparece, não é propriamente pai é progenitor, o Quim chega a Moçambique, andam todos de olhos arregalados a ver o Lourenço Marques, o menino brinca aos índios e aos cowboys, lá na guerra o Quim chama-se o Cachopas, extraem as amígdalas ao sobrinho, a mãe e a tia Lurdes sempre presentes. Lá na guerra Quim descobre o sexo com a Celina (que na verdade se chamava Salima), a guerra manifesta-se, o Casinhas foi atingido e morreu e o Quim irá lembrar-se muitas vezes desta primeira morte, de ter visto um corpo conhecido a dançar, crivado de balas, e a memória crispou-se de não ter sentido uma dor imediata.

Na fundura alentejana a vida prossegue com a sua miséria remediada, a certa altura o menino não resistirá a, às escondidas, ir abrir uma caixa de madeira que a mãe tem escondida e tirar uns cobres para comprar uns doces. O Quim já está a viver na selva adentro, surge-lhe um bálsamo, uma improvável madrinha de guerra, a Susanita, irmã do Zé Carriço. A mãe do menino mudou de emprego, faz limpezas numa pequena fábrica têxtil, recolhe os restos de tecido que caem das máquinas e ao fim do dia lava o chão, as duas casas de banho, traz para casa um ordenado de sobrevivência. A mãe descobre que o menino a rouba, temos pancadaria com o cinto, foi acontecimento decisivo. “O coração com que amara a minha mãe estava agora fechado numa caixa de madeira invisível, cuja chave não voltou a aparecer.”

Na selva adentro, já se fazem operações ditas de limpeza, varre-se tudo a eito, poupavam-se as mulheres que tinham os filhos no colo, mas não as que vinham aos gritos em direção à tropa, as aldeias são incendiadas ao lança-chamas. O soldado Valverde fora morto durante a refrega, apareceu com a garganta cortada e o oficial vingou-se, deu um tiro na cabeça de um jovem, a coluna regressa ao quartel com aqueles que não morreram durante a operação de limpeza. O pai reapareceu, voltou a haver discussão, pediu oficialmente a separação, queria refazer a vida. Deixou duas notas de conto. O menino ama o seu lugar no mundo, quando o seu amigo Bento voltou para os campos lhe disse para olhar as flores roxas, sinal de que vinha aí a primavera, foi o êxtase, gritavam de alegria, vinha a caminho a renovação da vida.

A Susanita escreve ao Quim: “Quando voltares hás de trazer-me um corno de elefante para meter na parede do meu quarto.” E na mesma carta mandou uma fotografia. “Não era uma beleza mas tinha o cabelo bem penteado preso numa fita, e com um sorriso artificial. Quim gostou.” A tropa delira ao ver aquelas manadas de elefante. A Susanita já se apresenta naquela fundura alentejana como a namorada do tio, vai enunciado à família o que o Quim manda nos aerogramas, que quando voltar quer ir aprender para eletricistas, está farto de carregar baldes de massa. O pai reaparece, deixa dinheiro para umas botas novas. A comissão do Quim caminha para o fim, escreve à mãe de Furancungo, parece que vão para Lourenço Marques. É neste patamar da narrativa que Possidónio Cachapa tem um golpe de asa, numa operação Quim pensa que vai morrer, tudo porque uma manga, uma cobra de picada mortal se enrosca numa perna, então o narrador introduz Mankumpete, o menino que nasceu na beira do lago Chiwa, foi obrigado a alistar-se na FRELIMO, vai ter um papel decisivo na vida do Quim, são algumas das melhores páginas desta obra tão esplendente, o tio volta da guerra, é já um outro homem, o amor pelo sobrinho não desfaleceu, mas precisa de muito álcool, na taberna fala-se muito da guerra, o Quim pede ao sobrinho para ir ter com a tia Susanita e o parágrafo final é um dos mais belos exercícios da pirotecnia:

“O Sol ainda estava alto e a luz fazia doer um pouco os olhos, atirava contra as paredes brancas da vila. O mês de abril, no Alentejo, às vezes, vinha assim, a anunciar um bom tempo que poderia chegar ou não. Das pedras da calçada, as ervas infestantes surgiam por todo o lado. Só lá iriam com napalm.

Os meus pés caminharam por esse verde misturado com rocha calcária e, por um instante, deixei de saber onde estava. Uma tontura apossara-se de mim com o calor, e temi cair. Da minha névoa ora branca ora verde, pensei sentir alguma cosia rastejar até junto do meu corpo. E, sem abrir os olhos, reconheci um aperto pela perna acima, enquanto os sons desapareciam, reduzindo-se a uma espécie de silvo.”

A ternura deste sobrinho e a selva dentro do Quim catapultam este romance para a nossa melhor literatura. 


                                                                                    Mário Beja Santos