Plataformas
logísticas
Para lá das cidades e antes do campo existem espaços que
não são urbanos, nem rurais. São as zonas em que não há terrenos agrícolas com
formas de vida específicas, nem as fábricas e o mundo do trabalho que lhes está
associado. Não se vêem armazéns agrícolas, nem cooperativas, nem tratores, nem
sacas de adubo puídas, espalhadas pelo chão; como também não se vêem fatos-macaco,
nem gente reunida a gravitar à volta das instalações, nem os cafés e
restaurantes medianamente encardidos, nem os sinais exteriores que distinguem
os patrões dos operários. Neles, as
mercadorias da indústria, de laços já cortados com a produção, estão
acondicionadas à espera de serem distribuídas; são como a seiva que vai irrigar
a cidade e as suas actividades, concretizando-se no uso que lhes será dado pela
multidão dos interesses e das preferências. São as plataformas logísticas onde,
a par das mercadorias na sala de espera, se encontram os outdoors que
oferecem produtos ou serviços, anúncios fora de moda, com uma estética
canhestra, baratos, concebidos por estratos sociais suficientemente avançados
para valorizarem as formas modernas de comercialização e da publicidade, mas
não quanto baste para ombrearem com o gosto mais avançado, urbano. Tais espaços
são não-lugares, estradas sem habitação e sem pessoas nas ruas que não existem,
onde se encontra congelado o fervilhar da cidade na forma de valor de uso em
suspensão. Daí a alegria que provocam nas crianças em viagem.
Nesses arredores de todas as cidades, vêem quando por
eles passsam, à entrada, a promessa concentrada que se desmultiplicará na vida
quotidiana; ou, à saída, o fim e a finalidade desse mundo do trabalho com que
contactam em abstracto e em que sentem a superioridade da cidade sobre o campo
da pobreza, de que as famílias saíram, ou ressentem com naturalidade as coisas
que serão usadas provando com naturalidade a sua superioridade social.
Independentemente da classe social, as plataformas logísticas, como lhes
chamam, correspondem à predilecção infantil pelo novo, pelo nunca tocado, como
os animais puros, sem mácula, que nunca foram arreados, nunca puxaram um arado,
nunca entraram em commercium sexuale com os seus semelhantes, sendo por
isso os únicos escolhidos para serem sacrificados aos deuses. Tudo se passa como
se, para as crianças e à sua imagem e semelhança, as mercadorias não tivessem história,
um passado determinado. O feitiço que lançam sobre o olhar infantil é tão-somente
a história que não é história, a história por acontecer, a promissão, e todo o
encanto da possibilidade, do vago que acolhe a felicidade a que se crêem
destinadas, como as demais criaturas. Nas crianças, a sociedade dá-se no
indivíduo na forma de um sensorium social, sem pensamento, antes como a
confusão de todas as coisas – a infância do mundo – que o tempo apartará. Nesse
sentido, a condição de possibilidade da sociedade como objecto cognoscível
reside no sentimento inaugural. Na vida gasta, na velhice, as plataformas
logísticas estão paralisadas no rigor mortis; o tempo e os seus
desenganos já não encontram nelas a espontaneidade própria do paralogismo
infantil. Tudo aquilo que estava prestes a entrar numa circulação feliz perfila-se
inerte, despojado, já para lá da agonia. O segundo sentimento, senectutis,
é como o segundo amor: já perdeu a capacidade de surpreender pela novidade, traz
consigo a leve sombra da tristeza. A inutilidade das coisas é o paralogismo dos
velhos, corresponde ao seu sentimento de inutilidade, a vida já se retirou como
a maré deixando na areia despojos sem nexo. A sociedade como objecto desaparece
por detrás do sentimento baço da inanidade geral, como se a sociedade
desaparecesse com o indíviduo. A confusão das coisas é agora a quinquilharia
amontoada sem obedecer a nenhum critério que não o critério exterior do tempo
abstracto que sobre tudo reina com soberana indiferença. Um sentimento que talvez
se redima na esperança de um novo começo, na esperança de que, ao passar pelas
plataformas logísticas, se acenda o lume nalguma criança.
Texto e fotografia de João Tiago Proença