lupus est homo homini
Plauto – Asinaria
1. A disciplina da vingança
A citação que encabeça este texto é frequentemente atribuída à imaginação de Thomas Hobbes. Foi este autor que a popularizou como máxima de uma antropologia política marcadamente pessimista quando, na dedicatória da sua obra De Cive, refere:
To speak impartially, both sayings are very true; That Man to Man is a kind of God; and that Man to Man is an arrant Wolfe. The first is true, if we compare Citizens amongst themselves; and the second, if we compare Cities.[1]
Contudo, tal como acontece com o primeiro dos dizeres, que também não é uma originalidade de Hobbes, mas antes uma remissão directa para Séneca[2], o segundo remonta à peça Asinaria (194 a.C.), de Plauto:
Mercator: Fortassis. sed tamen me
numquam hodie induces, ut tibi credam hoc argentum ignoto.
lupus est homo homini, non homo, quom qualis sit non novit.[3]
Em Hobbes, como refere a lição de Paulo Merêa, “[os] homens são naturalmente egoístas e desconfiados uns dos outros. O semelhante é o inimigo, ou pelo menos pode bem sê-lo – homo homini lupus –, e quem o seu inimigo poupa às mãos lhe morre”[4].
A imagem lobo[5], tanto na mitologia do estado de natureza de Hobbes, como, por exemplo, nos antigos costumes germânicos[6], procura representar a inimizade, a vingança. Estes são os elementos que mais intensamente ressaltam na forma de lidar com os delitos nos tempos mais remotos, e isto tanto aconteceu entre os povos germânicos como entre outros povos, pelo menos nos tempos mais primitivos.
Ao contrário do que defenderam alguns autores inseridos na tradição académica alemã do século XIX, que via o Direito germânico medieval como uma expressão remota do seu volkgeist, há que admitir, como ponto de partida, que em todos os povos, incluindo nos costumes germânicos prévios ao contacto com os romanos, a primeira e mais antiga fase da repressão criminal consiste na vingança[7].
Esta, contudo, não é eterna. Com o tempo, da mesma forma que o homem supera esse estado de natureza ficcionado pelo filósofo inglês em favor do “deus mortal ao qual os homens devem a paz e a protecção”[8], as instituições jurídicas dos vários Estados procuraram desde logo disciplinar o exercício da contenda e, assim, limitar e, até mesmo, combater os ciclos de vingança e contra-vingança que lhe eram intrínsecos. A proibição da vingança, não obstante, corresponde já a um momento posterior da evolução dos sistemas penais. As primeiras normas que lidam com a vingança privada não são, por isso mesmo, interdições, mas, antes, limitações ao seu exercício.
A primeira dessas limitações centra-se no exercício da vingança e foi imposta pela ideia de equivalência na represália, expressa, por exemplo, na conhecida passagem bíblica da Lei de Talião[9]:
Se um homem ferir mortalmente outro homem, será condenado à morte. Aquele que ferir mortalmente um animal, pagá-lo-á vida por vida. E se alguém fizer um ferimento ao seu próximo, far-se-á o mesmo a ele: fractura por fractura, olho por olho, dente por dente; conforme o dano que tiver feito a outro homem, assim se lhe fará a ele.[10]
Esta importante limitação, aparentemente, introduz um segundo nível de limitação, ao parecer impor que a vingança seja exercida apenas contra o corpo do agressor. Assim ela aparece expressa nas formulações da Lei de Talião contidas nas passagens do Levítico, como a atrás citada, e do Deuteronómio[11]. Diferentemente, no livro do Êxodo, a limitação da vingança ao agressor parece menos evidente:
Não te prostrarás diante dessas coisas [ídolos] e não as servirás, porque Eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus zeloso, que castigo o pecado dos pais nos filhos até à terceira e à quarta geração, para aqueles que me odeiam.[12]
Também as primeiras formulações deste princípio de equivalência nas Leis da Mesopotâmia não limitavam a vingança ao corpo do ofensor, prescrevendo, por exemplo, que a mulher do violador poderia ser violada pelo marido da mulher violada[13].
Outra questão que interessa colocar a propósito desta máxima, prende-se com as restrições em função do estatuto do agressor e da vítima[14]. Tratam-se aqui de limitações à vingança que tinham em consideração o estrato social a que os intervenientes pertenciam ou que tinham em conta a natureza de homem livre ou de escravo do ofendido. Um bom exemplo desta situação surge no livro do Êxodo, em que, caso a vítima seja um escravo, ao invés de se prescrever a retaliação pura, determina-se que:
Quando um homem ferir a vista do seu escravo ou a vista da sua escrava, e a destruir, deixá-los-á partir em liberdade pela sua vista. E se fizer cair um dente do seu escravo ou um dente da sua serva, deixá-lo-á partir em liberdade pelo seu dente.[15]
Disposições de natureza relativamente semelhante podem ser encontradas em praticamente todas as antigas codificações, como a de Ur-Namma (entre 2100 e 2050 a.C.)[16] e a de Hammurabi (cerca de 1790 a.C.)[17].
Uma outra limitação imposta em função da natureza do ofendido, tinha a ver com a restrição dos alvos da vingança, determinando que esta não poderia ser exercida contra determinados grupos como as mulheres, as crianças e os idosos[18]. O seu fundamento era simples: todas estas pessoas eram vistas como alvos impróprios para a retaliação por não serem considerados iguais em força a um homem adulto. Também a possibilidade de compensação e, em alguns casos, a imposição desta, desempenharam um papel de limitação da vingança e da inimizade.
Durante a Idade Média, os monarcas, um pouco por toda a Europa, procuram introduzir por via legal este tipo de limitações ao exercício da vingança privada[19]. A Lei de Talião, originalmente desconhecida pelos costumes germânicos, aparece em vários Estatutos germânicos, como o Stadtrechte de Viena de 1221[20]. A limitação da vingança ao corpo do agressor surge, por exemplo, numa lei na Polónia, onde aqueles que pretendiam exercer o seu direito de vingança estavam, também, obrigados a notificar as autoridades públicas das suas intenções[21].
(Continua)
David Teles Pereira
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