sábado, 11 de outubro de 2014

Erasmo, o livre-arbítrio.

 
 
        
Erasmo de Roterdão,
pintado por Hans Holbein, o Jovem, 1523
 
 
 
         Ao publicar em Basileia, em 1 de Setembro de 1524, De libero arbitrio diatribe sive collatio, Erasmo de Roterdão (1466-1536) entrou, algo pressionado e a contragosto, num território que não era o seu, o da polémica aberta e virulenta, enfrentando para mais um adversário que, sem possuir idêntico estatuto de humanista admirado em toda a Europa, era já famoso pela contundência das suas intervenções.  
         É isso que explica, em larga medida, o tom autojustificativo e até conciliador das primeiras páginas do escrito de Erasmo. Com ironia, e numa prosa de extrema elegância formal, afirma que Lutero certamente não iria ficar melindrado pelas suas palavras – logo ele, Martinho Lutero, que tantas vezes contestara a autoridade dos doutores da Igreja e de papas. Clarifica, depois, que o seu propósito não é belicista: «Que ninguém interprete mal esta batalha. Não somos dois gladiadores acicatados um contra o outro». Possivelmente dirigindo-se aos que, como Thomas More ou o papa Clemente VII, o instaram a escrever contra as teses de Lutero, confessa não ser talhado para esta tarefa, dada sua «aversão profunda a combater»; e, com desarmante candura – ou, talvez melhor, com uma finíssima subtileza argumentativa –, adverte os leitores que não tomara ainda uma posição definitiva sobre as diversas concepções que existiam acerca do tema central do seu escrito, o livre arbítrio. Procura, pois, colocar-se na posição de um observador de boa-fé, neutro e imparcial, não de um panfletário inflamado, justamente para daí conseguir dar mais força e vigor à sua conclusão, expressa de uma forma serena mas inequívoca: «apesar de o argumento de Lutero ser defendido por todos os meios ao seu dispor e apresentado com grande verve, devo honestamente confessar que ainda não conseguiu convencer-me».
         No entanto, a obra de Erasmo – e aí reside a razão de ser da sua perenidade – não assume contornos puramente «reactivos» ou «negativos», ou seja, dialoga com Lutero, procurando infirmar os pressupostos da sua doutrina e alertar para as suas catastróficas consequências, mas, ao fazê-lo, acaba por produzir uma das mais importantes e pioneiras defesas da liberdade humana, quer na sua relação com o transcendente, quer no domínio secular ou temporal. Ainda que a afirmação da liberdade neste último âmbito não seja tão claramente perceptível no ensaio de Erasmo, ela é consequência necessária da liberdade que todos os homens possuem na aceitação ou rejeição dos caminhos que lhes são propostos para a sua salvação eterna. Lutero, ao invés, sustentará até ao fim desta querela que, após a Queda, o homem se encontra irremediavelmente condenado à sua condição de pecador, e que só a graça divina o poderá resgatar às consequências de um destino inescapável.
         Erasmo considerava que esta visão, tributária do pensamento de Santo Agostinho, implicava afastar toda a esperança dos horizontes da perspectiva humana, quando até no Antigo Testamento era possível encontrar argumentos favoráveis ao livre-arbítrio. Entre eles, destaca a passagem do Eclesiastes em que se diz: «No princípio Deus criou o homem e entregou-o ao seu próprio juízo. Se quiseres, observarás os mandamentos, ser-lhes fiel será questão da tua boa vontade. Ele pôs diante de ti a água e o fogo, estende a mão ao que quiseres. A vida e a morte estão diante do homem; o que ele escolher, isso lhe será dado, porque a sabedoria de Deus é grande, forte no seu poder e tudo vê» (Eclesiastes 15, 14-18).
 
 
Martinho Lutero,
pintado por Lucas Cranach, 1533
 
 
 
         A violentíssima resposta de Lutero, quatro vezes mais extensa do que o ensaio de Erasmo, seria publicada em Dezembro de 1525, com o título De servo arbitrio, e ia ao ponto de negar a Erasmo a qualidade de cristão. Este apresentaria réplica em dois grossos volumes, datados de 1526 e 1527, mas o essencial da polémica estava esgotado. Aliás, seria um erro tentar deslocá-la para os nossos dias, retirando-a da específica atmosfera em que teve lugar – a da tensa passagem do final do Renascimento e do humanismo da Europa do Norte para o protestantismo emergente e para o catolicismo pós-tridentino. Esse contexto histórico preciso talvez nos leve a concluir que, porventura, Martinho Lutero e Erasmo de Roterdão não se encontravam tão afastados quanto julgavam (ainda que, como observa Gordon Rupp, esta disputa tenha posto termo a qualquer hipótese de reconciliação entre ambos, sendo uma prefiguração, ou síntese, da ruptura da unidade cristã que o aprofundamento da Reforma e a Contra-Reforma iriam agudizar). De facto, e como refere Quentin Skinner, Lutero não rejeitava a noção de livre-arbítrio em si mesma, aceitando sem quaisquer reservas a ideia de que os homens dispõem de liberdade para «comer, beber, procriar, governar»; recusava, isso sim, a tese erasmiana segundo a qual todos podem escolher os caminhos da sua salvação eterna.
Além disso, e como notaram Lucien Febvre ou Johan Huizinga, Erasmo não era um inteiramente homem «livre» quando escreveu a sua diatribe contra Lutero. Fora seriamente compelido a lançar todo o peso da sua fama sobre o agostiniano iconoclasta e impetuoso que o Papa excomungara em 1521, para que desse modo também ele, Desidério Erasmo, fosse obrigado a definir-se e a declarar publicamente em que campo se situava, num tempo em que a fractura religiosa e política que se abria na Europa tornava cada vez mais difícil encontrar vias de tolerância e conciliação, como as que Melâncton procurou de certo modo preservar, com pouco ou nenhum sucesso. Já em 1520 Nicolau de Egmond dissera ao reitor de Lovaina: «Enquanto Erasmo se recusar a escrever contra Lutero, estamos no direito de o ter por luterano». De libero arbitrio diatribe constitui, assim, uma prova de fé católica e de fidelidade à Igreja de Roma. Sintomaticamente, Erasmo vê-se na contingência de, logo na abertura do seu livro, esclarecer que nunca fora partidário das ideias de Lutero, ainda que estas lhe merecessem interesse e até mesmo, num certo sentido, algum apreço – desde logo, porque revelavam uma busca genuína e sincera da verdade, demanda da qual se poderia discordar mas não apodar de inautêntica, sobretudo para quem, como ele, partilhava a ideia da necessidade de uma reforma da Igreja e de algumas das suas práticas ou instituições.
         Refém das circunstâncias do seu tempo, Erasmo de Roterdão evidencia, nas sinuosidades da sua trajectória biográfica, uma ausência ou limitação de liberdade que interpela os fundamentos da defesa do livre-arbítrio. Os homens serão livres para procurar os caminhos da sua salvação, mas a liberdade que possuem no mundo terreno está dependente das condições concretas para o seu exercício. Este problema, naturalmente, não foi tratado por Erasmo. Em todo o caso, o transbordante optimismo que irradia da sua defesa da liberdade transmite-se a todas as esferas da acção humana e, no fundo, é essa irradiação para o domínio temporal que faz com que o debate sobre o livre-arbítrio ultrapasse o âmbito circunscrito de uma controvérsia teológica em torno de questões como a graça e a omnipotência divinas, o sentido do mal e do castigo ou a predestinação (ou, melhor, a dupla predestinação, a dos eternamente condenados e a dos eternamente salvos, uns e outros por razões alheias à maldade ou bondade dos seus actos).    
Se o escrito de Erasmo, em contraste com o de Lutero, é luminoso e prenhe de esperança, algumas nuvens ensombram o optimismo da sua mensagem. Num singular paradoxo, discorrera sobre o livre-arbítrio em larga medida contra a sua vontade. Talvez isso demonstre que até no exercício da liberdade não somos inteiramente livres. Resta-nos todavia o consolo de sabermos – ou acreditarmos – que não estamos condenados a um destino inelutável. Se tal acontecesse, de nada valeria o bem ou o mal que fizéssemos neste mundo já que o desfecho final sempre estaria inscrito na nossa condição de filhos de Adão e Eva.        
Em contraponto a essa visão derrotista e angustiante, o ensaio de Erasmo evidencia uma convicção profunda na força moral da razão e no carácter dos seres humanos. Mesmo que a História, ao longo dos séculos, não haja dado motivos para tamanha e tão festiva esperança, ela perdurará como o legado maior de um texto precursor da liberdade e da tolerância entre todos os seres humanos, crentes e não-crentes.  
 
                    António Araújo
        
         [texto originalmente publicado no Diário de Notícias, suplemento Q. Quociente de Inteligência, nº 159, de 27-IX-2014]




4 comentários:

  1. Erasmo sempre foi dado a polémicas e já em 1520 andava enfronhado em violentíssimas querelas. Leiam-se, por exemplo, as suas Apologiae do De in principio erat sermo.

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    1. Muito obrigado. Mas, com a sua observação, pretende sustentar que Erasmo escreveu «De libero arbitrio» com o intuito de entrar numa polémica e que desejava fazê-lo?

      Cordialmente,

      António Araújo

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  2. Só no seio das igrejas havia a possibilidade de uma discussão com esta envergadura intelectual acontecer.Só nelas e em mais nenhum meio havia letrados.Assim como se só no seio de uma restrito grupo de humanos fosse possivel fazer nudismo.Só seria possivel falar sobre esses corpos(O ex não é muito feliz mas não me ocorre outro agora)e todos os outros fossem misterio.Isso ainda perdura em algumas e foi regra ate ha pouco em todas.Vejo-as como Sudokus .São exercicios interessantes de lógica.Para mim no entanto esta reservada a perplexidade (cinheço o livro para perplexos-Maimonides)perante aqueles que embora com uma craveira intelectual inatacavel continuam a viver nestas lendas como num liquido amniótico perene.É algo que me transcende imaginar o que seriam por exemplo na Grecia de socrates,na Roma de Augusto,No Egito de Ptolomeu e por aí fora.Que religião teriam?! Que dogmas defenderiam.A fé não é discutivel.Agora a tralha que ao longo dos séculos os homens foram inventando para supostamente comunicarem com as divindades...A maior parte não acredita em bruxas e coisas como orixas e etc mas segue uma qualquer revelação que foi passada de forma oral e fixada em escrita seculos depois em alguns casos.E mataram-se e matam-se por coisas como essas ou ainda mais "ridiculas" como saber e explicar de forma diferente a Santa Trindade!!!Mais incrível é que de um modo geral sejam as mulheres as mais entusiastas quando sempre foram tratadas com acessorios da suposta criação.Perplexo muito perplexo.Não quero ganhar como Erasmo a discussão.Quero entender se é a razão ou outra coisa qualquer que leva homens como Claudio Magris a serem um desses.Ainda espero em vida chegar lá.Desculpe a impertinencia agnóstica.

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    1. Não tem nada que pedir desculpas, a sua intervenção é tão legítima como qualquer outra e por isso lhe agradeço.

      Cordialmente,

      António Araújo

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