impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 7 - BENNY
GOODMAN
Naquela noite de Janeiro de 1938, ao cruzar
o palco do Carnegie Hall até ao púlpito de maestro, com determinação semelhante
à dos generais romanos a desfilarem no Capitólio laureados pela apoteose popular,
pode-se imaginar que Benny Goodman tenha recordado, durante esse curto trajecto,
as grandes vitórias no campo de batalha que lhe deveram tamanha consagração.
Terá decerto revivido a vitória no
Palomar Ballroom, em Los Angeles, tanto mais retumbante porque inesperada,
pugnada na memoriosa noite de 21 de Agosto de 1935. A digressão que a orquestra
de Benny Goodman arrastava pelo Oeste dos Estados Unidos ia-se resumindo a
temas indulgentes e sentimentais, para acasalamento dos dançantes, que doutro
modo desamparavam a pista de dança. Introduzisse um par de arranjos de Fletcher
Henderson no alinhamento e os joelhos do público fraquejavam com a pujança do
ritmo ou o coração lhes batia com taquicardia pouco romântica. Em Denver a
ruptura esteve eminente: Goodman despeitou-se com o enfado dos espectadores e, sob
a ameaça de despedimento, ameaçou ele regressar a casa nessa mesma noite.
Foi nesta disposição que enfrentou o
concerto no Palomar, no término da tournée. A orquestra começou a despachar os
temas acessíveis do costume, mas, estranhamente, não houve reacção. Ai é
assim?, há-de ter pensado Benny Goodman com impaciência: então tomem lá o “meu”
jazz… Ao que a audiência, muitíssimo jovem, numa histeria que só terá sido repetida
décadas depois com os Beatles, deixou de dançar e chegou-se ao palco para ensurdecer
a banda com o seu entusiasmo. Diz-se que o tumulto obrigou à intervenção
policial; diz-se também que ali se inaugurou a Jazz Age – é sabido que assim se coroou Benny Goodman como king of swing. Existe uma provável
explicação para este fenómeno. Goodman protagonizava o programa radiofónico
“Let’s Dance” actuando no estúdio de Nova Iorque das 19 horas até depois da uma
da manhã. Deste modo cobria os fusos horários de costa a costa. Quando os
ouvintes da Califórnia sintonizavam a rádio, a quatro horas de distância, já a
orquestra havia esgotado o repertório convencional e praticava um jazz puro e
duro – era a música a que estavam habituados e queiram ouvir.
A integração na sua orquestra do
pianista Teddy Wilson e do vibrafonista Lionel Hampton, que descobrira em 1936 num
bar de marujos de Los Angeles, foi outro decisivo triunfo que poderá ter
acorrido à memória de Benny Goodman na noite do Carnegie Hall. Ficou-lhe a fama
de ser mesquinho, regateiro e rude com os músicos, mas ninguém ousa
contestar-lhe a façanha de ter desafiado o racismo latente e destapado,
conforme os lugares, da sociedade americana ao integrar dois negros numa
orquestra branca. As bandas negras eram aceites e respeitadas até pelos adeptos
brancos das grandes cidades – excluindo o Sul, claro – mas a mestiçagem, isso
era intolerável! Foi uma guerra de atrito que Goodman disputou, colocando
quantas vezes a reputação e a popularidade em jogo: viessem com falinhas mansas
aludir-lhe a inconveniência em certas praças da promiscuidade racial, Wilson e
Hampton que ficassem lá atrás na sombra ou pusesse pó-de-talco no rosto – como
faziam os futebolistas no Brasil… – enfim, o prejuízo, os concertos cancelados,
está a ver? Não, não estou, retorquia o judeu Benny Goodman: ou toca quem eu
quero ou não há música para ninguém. Corria a segunda metade dos anos 30, a
maré nazi e fascista vazando na Europa…
Benny
Goodman, the Famous 1938 Carnegie Hall Jazz Concert
1950 (2000)
Sony Music Distribution – 4509832
Benny Goodman (maestro, clarinete), Chris Griffin,
Ziggy Elman, Harry James (trompetes), George Koenig, Art Rollini, Babe Russin,
Hymie Schertzer (palhetas), Red Ballard, Vernon Brown (trombones), Jess Stacy
(piano), Teddy Wilson (piano), Lionel Hampton (vibraphone), Allan Reuss
(guitarra), Harry Goodman (contrabaixo), Martha Tilton (voz), Gene Krupa
(bateria).
[há
inúmeras edições deste concerto, com capas muito diferentes, preços diversos,
quase todas integrais, nem todas com primor digital. Esta é a mais completa e a
mais cara: contém aplausos e silêncios.]
Ascender à programação do Carnegie Hall
era – e é – um nirvana. Benny Goodman foi o primeiro músico de jazz a pisar as
tábuas do santuário. Pela graça dos feitos realizados, muito devidos à teimosia
artística e à impertinência social de quem proveio do ghetto de Chicago; pelo
inaudito talento no clarinete, anunciado aos 13 anos quando debutou num river boat com Bix Beiderbeck – “não
mexas nos instrumentos!” ter-lhe-á ralhado, julgando tratar-se de um puto
metediço; pela injecção de um ritmo infrene na interpretação da escrita de
Fletcher Henderson, fixando e vigorando as regras de estilo do swing; por ter
trasladado o jazz de um reduto de apreciadores para o gosto do seu tempo, sem
lhe beliscar a integridade; por tudo isto, Benny Goodman converter-se-ia num
ícone da história da música americana mais do que um capítulo do jazz. Não se
permitiu, portanto, desdenhar a ocasião do concerto do Carnegie Hall de 1938 –
o último ano antes de o Inferno desabar na Terra – e o que ele e a sua
orquestra executaram naquela noite firmou-se como o instantâneo perfeito da sua
música.
É sorte nossa não só haver gravação do
evento como ter sido descoberta ao cabo de 20 anos esquecida num armário.
Contam-se por muitos os que juram ouvirem-se nela as melhores jam sessions de sempre.
José Navarro de Andrade
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