quinta-feira, 28 de abril de 2022

Aprende que nesta viagem da vida a efemeridade é que conta.

 



 



 

A Viagem do Elefante, por José Saramago, Porto Editora, 2021, é uma história para adultos onde não falta o fascínio narrativo que assombra as crianças, a carga metafórica é esplêndida, fazem-se amizades durante a acidentada itinerância, dá para perceber o que é efemeridade dos espetáculos do poder, como os animais nos enternecem e como numa viagem os chamados grandes deste mundo falam com os bichos e os seus tratadores, estalam tensões, revela-se o sublime ou desnuda-se a insignificância, tu não queres falar no assunto mas em pó te hás de tornar.

A epígrafe deste livro, ditada por Saramago, reza: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. O que tem a ver com a prenda régia enviada de Lisboa, destinada a um primo de alto coturno, o genro de Carlos V, Maximiliano de Áustria, prenda que vai até Valladolid, depois de muitas bátegas e sol ardente há para ali uma ameaça de confrontação entre a hoste portuguesa e couraceiros austríacos, em Figueira de Castelo Rodrigo. Saramago também nos enternece quando nos dá os alvores da história: “Se Gilda Lopes Encarnação não fosse leitora de português na Universidade de Salzburgo, se eu não tivesse sido convidado para ir falar aos alunos, se Gilda não me tivesse convidado para jantar no restaurante O Elefante, este livro não existiria”. Tudo parece corriqueiro, mas é assim que se abre a arca da imaginação, havia naquele restaurante umas figuras que eram umas pequenas esculturas de madeira, tudo começava na Torre de Belém, esboçava-se um percurso internacional, veio a explicação, a viagem de um elefante levado em 1551 de Lisboa para Viena, Gilda ajudou muito o autor, profundo agradecimento é apresentado.

D. João III interroga-se quanto à natureza da prenda para o primo Maximiliano, D. Catarina de Áustria sugere o Salomão, dita-se uma carta para o primo, redigida com uma certa filáucia e untuosidade, não se manda um elefante à toa àquele senhor todo poderoso da Áustria, o monarca deixava mesmo uma frase a que seria impossível responder negativamente a tal presente, era o que ele de mais valioso possuía. Entra em cena o tratador daquele elefante indiano, dá pelo nome de “cornaca”, o rei Piedoso dá ordens para que o cornaca parta devidamente indumentado, que lhe façam dois fatos, um para o trabalho e outro de representação social, o tratador chama-se Subhro, o rei resmunga, “Devíamos ter-lhe chamado joaquim quando chegou a Portugal”.

É uma viagem como a das nossas vidas, nem sempre se pode andar ao caminho, até porque Salomão tem um singular relógio biológico, e ficamos a saber que o comandante anda a ler nessas horas vagas O Amadis de Gaula, assim apresentado pelo autor: “O livro conta com minúcia e deleite os atribulados amores de amadis de gaula e oriana, ambos filhos de reis, o que não foi obstáculo para que a mãe dele tivesse decidido ajeitá-lo, mandando que mandassem o menino ao mar e ali, num caixote de madeira, com uma espada ao lado, o abandonassem à mercê das correntes marítimas e do ímpeto das ondas. Quanto a oriana, a pobre, contra sua vontade, viu-se prometida em casamento pelo próprio pai ao imperador de roma, quando todos os seus desejos e ilusões estavam postos em amadis. Era o tempo em que andante de cavalaria se havia proposto terminar a obra de deus, isto é, eliminar o mau do planeta. Era também o tempo em que o amor só o era se fosse extremo, radical, em que a fidelidade absoluta era um dom do espírito tão natural como o comer e beber o era do corpo”. Em Figueira de Castelo Rodrigo dá-se o regresso dos carregadores, é uma narrativa empolgante, o elefante despede-se afetuosamente de quem lhe dera aquela dádiva da companhia: “A mão estendida, a palma para cima. O homem fez o que lhe ordenavam, a mão ali estava, firme na aparência. Então o elefante pousou sobre a mão aberta a extremidade da tromba e o homem respondeu ao gesto instintivamente, apertando-a como se fosse a mão de uma pessoa, ao mesmo tempo que tentava dominar a contração que se lhe estava a formar na garganta e que poderia, se deixado à solta, terminar em lágrimas. Houve momentos de vivíssima noção, como foi o caso daquele homem que explodiu num choro convulsivo como se tivesse reencontrado um ser querido de quem havia muitos anos não tinha notícias. A este tratou o elefante com particular complacência. Passou-lhe a tromba pelos ombros e pela cabeça em carícias que quase pareciam humanas, tal era a suavidade e a ternura que delas se desprendia no menor movimento. Pela primeira vez na história da humanidade, um animal despediu-se, em sentido próprio, de alguns seres humanos como se lhes devesse amizade e respeito”.

E assim decorreu a caminhada para Valladolid, a cidade engalanou-se para receber o paquiderme, a comitiva portuguesa está de volta, o primo Maximiliano muito feliz, o tratador passa a chamar-se fritz e o elefante solimão. Daqui por diante segue-se por barco até Génova, tem-se a penosa travessia dos Alpes pela frente, com algumas paragens de estadão, em Pádua o elefante ajoelha em frente à basílica, correm rumores de milagre, o primo Maximiliano é muito cuidadoso com os tempos que se vivem, já há muito protestantismo à solta e ali perto, em Trento, decorre Concílio a preparar a Contrarreforma, nada de espavento com essa história dos milagres. José Saramago reserva para esta viagem alpina parágrafos esplendentes, com neves, aludes, prenúncios de desgraça, naquele ar de tempestade e algidez era só o que faltava que o senhor e a senhora das Áustrias perecessem numa avalanche. Solimão salvará a senhora de uma triste sina, partiu-se o eixo da carruagem de aparato, a arquiduquesa foi parar ao fundo do barranco, acabou ser içada pela tromba do elefante, percorrem-se esses desfiladeiros, houve horas felizes, ninguém morreu ou se perdeu. Depois de pausa que prometeu ao elefante comer e beber à tripa-forra, e depois do último desfiladeiro, que dá pelo nome de Passo de Brenner, embora continue a nevar, caminha-se em segurança para o destino, houve novo milagre à entrada de Viena, uma menina de uns 5 anos correu para o elefante, houve sussurros de terror, o elefante procedeu como deveria ser. “Enlaçou com a tromba o corpo da menina como se a abraçasse e levantou-a ao ar como uma nova bandeira, a de uma vida salva no último instante, quando já se perdia”.

Soma-se o génio da escrita, em verdade há muito pouco mais a dizer, solimão está em Viena, morreu quase 2 anos depois, teve acabrunhante destino: “Além de o terem esfolado, cortaram-lhe as patas dianteiras para que, após as necessárias operações de limpeza e curtimento, servissem de recipientes, à entrada do palácio, para depositar as bengalas, os bastões, os guarda-chuvas e as sombrinhas de verão. Que o leitor não se esqueça da efemeridade das grandezas, aceite o remate da escrita posto por José Saramago: “Se não houvesse este final, talvez não tivesse escrito o livro”.

De leitura obrigatória.

 

 Mário Beja Santos




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