sábado, 25 de junho de 2022

Lembrar depois da queda do Muro de Berlim a espionagem nos tempos da Guerra Fria.

 



 

O Peregrino Secreto, de John le Carré, 1990, Publicações Dom Quixote, é a primeira obra de John le Carré já num cenário de previsão de que o Império Soviético tinha os seus dias contados, a Guerra Fria passava a categoria de dossiê de estudo. Ao longo de 30 anos, aquele que foi seguramente o mais talentoso escritor de literatura de espionagem, verdadeiro compendiador da comédia humana deste ofício, arquitetou um romance em que lança um olhar retrospetivo e prospetivo sobre a realidade. Uma lenda da profissão, George Smiley, é convidado para uma preleção destinada à nova geração de futuros espiões. O que se vai seguir é uma fascinante cadeia de recordações, quem as enuncia é Ned, um espião que trabalhou ativamente nos serviços secretos britânicos e perto de Smiley, o mais velho e astuto dos combatentes da Guerra Fria.

O tempo fictício desta obra-prima é a alocução de Smiley aos recrutas a espiões, a primeira história é muito pouco lisonjeira para os sórdidos negócios britânicos de armamento: “Saiba o leitor que os vendedores de armamento autorizados na Grã-Bretanha se consideram uma espécie de elite sem polimento e que gozam de privilégios absolutamente desproporcionados junto da polícia, da burocracia e dos serviços de informações. Por razões que nunca percebi, o seu sinistro negócio coloca-os numa relação de confiança com estas entidades”. E mais adiante relata-se a chegada de um multimilionário árabe que vem fazer compras vultosas, era preciso protegê-lo, mantê-lo vivo até assinar o cheque, a tarefa dos serviços de espionagem fazia parte de zelar por um país árabe dito amigo, captar as boas graças de príncipes, sultões, sheiks, lisonjeá-los à boa maneira inglesa, sacar concessões favoráveis para obter petróleo e vender suficiente armamento britânico “para manter as satânicas fábricas de Birmingham a funcionar dia e noite”.

Paira o espectro do maior traidor da corporação, Bill Haydon, a toupeira soviética dentro da organização britânica, um senhor responsável por muitas mortes e destruição de redes de espionagem no então universo soviético. As histórias sucedem-se, logo a de Bem, amigo de peito de Ned, inadvertidamente foi lançado na Berlim Oriental e graças ao traidor Bill Haydon foi o braço longo que levou à destruição da espionagem britânica; o ambíguo capitão-de-mar Brandt, que prometia mundos e fundos, que montou uma rede no Báltico, que também acabou destruída, Brandt fazia-se acompanhar de uma menina vinda de uma república báltica, pensou-se que a menina não passava de um agente duplo, no fim da Guerra Fria Ned viu de raspão Brandt nos renovados serviços secretos russos, na antiga sede do KGB, de onde se comprova que mesmo num par amoroso o verdadeiro vilão se disfarça de cordeiro inocente e lança para a fogueira a sua amada. Este belíssimo romance de recordações e premonições fala-nos dos locais míticos da espionagem, como Hamburgo ou Munique, retaguardas logísticas para onde eram atraídos, com pretextos plausíveis, os espiões ao serviço da Grã-Bretanha, e até dos EUA, a relação dos dois países era de franca cooperação e de otimização de recursos, e descobre-se que um velho professor universitário húngaro era um perfeito aldrabão que enganava britânicos e norte-americanos, fornecia-lhes lixo como se estivesse a vender ouro.

Voltemos ao discurso de Smiley, uma das recrutas pergunta-lhe o que é hoje ser espião, que profissão temos para o futuro, já que acabou a Guerra Fria, George Smiley tem resposta: “A maior parte do nosso trabalho ou é inútil ou duplicado por fontes abertas. O problema é que os espiões não existem para esclarecer o público, mas sim os governos. E os governos, como qualquer outra pessoa, confiam naquilo porque pagam e desconfiam daquilo porque não pagam. A espionagem é eterna. Mesmo que os governos pudessem passar sem ela, nunca passariam. Adoram-na. Se alguma vez chegar um dia em que já não haja inimigos no mundo, os governos hão de inventá-los para nós, de modo que não se preocupem. Toda a história nos ensina que os aliados de hoje são os rivais de amanhã.”

E chegamos ao final da prédica, Smiley considera que está na altura de correrem o pano sobre o homem da Guerra Fria de ontem, e faz o seu discurso ontológico: “Nunca dei um chavo pelas ideologias, nunca considerei as instituições dignas dos seus papéis, ou as políticas como muito mais que desculpas para a ausência de sentimentos. É com o homem, e não com as massas, que a nossa profissão tem que ver. Foi o homem que acabou com a Guerra Fria, caso não tenham reparado. Não foi o armamento, nem a tecnologia, nem os exércitos ou as campanhas. Foi apenas o homem. Nem sequer o homem ocidental, por acaso, mas o nosso inimigo jurado de Leste, que saiu para a rua, deu o corpo às balas e aos cassetetes e disse: estamos fartos. Foi o rei deles, e não o nosso, que teve a coragem de subir à tribuna e declarar que ia nu”. E tece considerações sobre os russos, se se pode ou não confiar a partir de agora nos russos, responde com um sim e um não: “Nunca poderemos confiar no Urso. Desde logo, o Urso não confia em si próprio. O Urso está ameaçado, está amedrontado e em desintegração. O Urso está dececionado com o seu passado, repugnado com o seu presente e transido de medo do seu futuro. Posto que este Serviço é o guardião contratado da nossa desconfiança nacional, estaríamos a descurar o nosso dever se afrouxássemos por um segundo a nossa vigilância sobre o Urso ou qualquer uma das suas rebeldes crias. A outra resposta é sim, podemos confiar absolutamente no Urso. O Urso implora ser um dos nossos, ter a sua própria conta bancária connosco, comprar na nossa baixa e ser aceite como um membro digno tanto da nossa floresta como da sua. O problema é que nós, ocidentais, não temos a propensão natural para confiar no Urso, seja ele o Urso branco ou o Urso vermelho. O Urso pode estar perdido sem nós, mas há muitos de nós que acreditam que é exatamente o que merece. Tal como havia pessoas em 1945 que defendiam que a Alemanha devia permanecer um deserto de cascalho até ao fim da história da humanidade. O Urso do futuro será o que dele fizermos”. E faz um vaticínio, lança uma advertência sobre o futuro depois da Guerra Fria: “Também não são só as nossas mentalidades que vamos ter de reconstruir. É o superpoderoso Estado moderno que criámos para nós como um bastião contra qualquer coisa que já não existe. Abrimos mão de demasiadas liberdades para sermos livres. Agora temos que as recuperar”. Acabou a lição, e do princípio voltamos ao fim dos negócios sórdidos feitos por multimilionários britânicos, é a última incumbência de Ned antes da reforma, de novo o armamento vendido a quem fomenta as guerras, o bandalho não tem papas na língua: “Se uma horda de pretos, se esses pretos amanhã se matarem uns aos outros com os meus brinquedos e eu fizer massa com isso, cá por mim tudo bem. Porque se não for eu a vender-lhe as mercadorias, há de haver outro fulano a fazê-lo”.

De leitura obrigatória, agora que o Urso mostra em pleno as suas garras.

 

Mário Beja Santos





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