sexta-feira, 17 de março de 2023

Quando a inocência e o sonho não nos desviam da esperança em dias melhores.

 


 


 

Quando li esta tocante narrativa Jénifer, ou a princesa de França, de Joel Neto, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023, veio-me como um clarão a lembrança do que vi e senti nos Arrifes, uma populosa freguesia a cerca de 7 km de Ponta Delgada, quando ali fui militar, entre 1967 e 1968. Assombrava-me a delicadeza de maneiras daqueles jovens da minha idade, a quem lhe estava a dar recruta; gostavam da tropa, pela primeira vez na vida comiam três refeições ao dia, tinham banho quente e não sentiam qualquer inquietação na rijeza da atividade física. A pobreza senti-a quando confrontado, estando de oficial de dia, com aquelas crianças andrajosas que esperavam o fim do rancho para levar os restos da sopa e o conduto sobrante, criei problemas mandando abrir latas de atum e dispensando fruta, tudo acabou em bem com o sargento vagomestre. E visitas constantes a S. Miguel e às restantes ilhas permitem-me dizer sem qualquer hesitação que melhoraram radicalmente as condições de vida. O que de modo algum desabona o que o escritor terceirense Joel Neto aqui conta e deixa à nossa ponderação. E acontece que estes ambientes de exclusão, a clamar por mudança, também persistem neste pedaço continental, logo nos subúrbios sob a forma de gueto da capital até a esse largo espaço que designamos por interioridade.

Atenda-se ao que se escreve na badana deste ensaio: “Jénifer é uma criança em busca de uma saída e Joel um homem em busca de uma história. O encontro entre os dois dá-se num bairro social nos Açores, a região mais pobre de Portugal, terreno fértil para o abuso sexual e o incesto, o alcoolismo e a violência doméstica, a exclusão social, o tráfico de droga, o insucesso escolar, a pobreza persistente ou o suicídio jovem, entre tantos outros sinais de subdesenvolvimento humano. Em fundo, uma pergunta: como poderá Jénifer transcender a miserável condição dos pais? Ela tem um plano.”

E abre a narrativa apresentando a heroína: “Jénifer Armelim é uma garotinha aloirada e melancólica que costuma passar as tardes, depois da escola, sentada no muro de cimento frente à casa onde vive. Por vezes, convence um dos lavradores da freguesia a levá-lo com ele até às pastagens, onde passam ambos umas horas a tratar dos animais ou a enxotá-los na direção do pasto vizinho. Dizem os homens que é frequente irem dar com ela debruçada sobre a parede de algum cerrado, a olhar o mar ao fundo a assobiar.” Tudo isto se passa na ilha do Espírito Santo.

É uma criança solitária, a professora até especula se não haverá para ali um certo grau de autismo. Joel visita o bairro na companhia de uma amiga, assistente social, trava conversa com Jénifer. E chama-nos a atenção para os bairros sociais, modelo que poderá ter tido a sua razão durante um certo tempo mas que está petrificado, terá ganho a dimensão de gueto: “A cada novo ciclo eleitoral eram construídos novos bairros, grandes ou pequenos, sem a preocupação sequer de se disseminar as populações mais vulneráveis entre aquelas a que se proporcionara pelo menos alguma espécie de autodeterminação. De ano para ano, a massa de gente afastada para as margens da sociedade concentrava-se e crescia. De tal modo que, à volta de alguns dos complexos originais, já reduzidos a guetos, começavam mesmo a ser construídas novas cinturas de habitação social, de aparência e condições um pouco mais dignas.” O resultado não é brilhante, há para ali um oportunismo eleitoral e uma operação subtil de esconder da paisagem a degradação das construções primitivas.

Reproduzem-se diálogos e chegou a vez de Jénifer conversas com Joel, é quase uma magia de história de encantar, assombra-nos a inocência e a candura de Jénifer, há ali muito saber de experiência feito, uma jovialidade que nos leva a beber intensamente as suas palavras, iremos saber a história da família, bem triste, por sinal, mas a menina é um ardor de sentimento, sente-se uma princesa da França e explica porquê. É nisto que surge um lavrador e fica apalavrado que na manhã seguinte a menina e o escritor vão de trator para um trabalho no campo, mungir vacas com a máquina de ordenha, ouve-se uma roçadora barulhenta limpando o novo pasto, foram buscar as bezerra mais jovens para  as unir às leiteiras, há que limpar os tanques, faz-se pausa para merendar, o lavrador, a quem se põe o nome de Jota, fala daquele bairro social onde vive a Jénifer, disserta sobre o rendimento social de inserção, observa: “Isto é uma terra difícil, com pouco trabalho e pouco dinheiro, tudo mal distribuído.” E, continua: “Mas, quando se vai a ver quantos foram – e entoou – reinseridos? Quantos é que o Governo quis mesmo pôr a andar pelo seu próprio pé outra vez? Nenhum. Nem sequer dava jeito. Estão ali guardados para o dia das eleições.” E lembra que aquela criança não conhece ninguém que trabalhe, os pais não trabalham, os vizinhos não trabalham, é uma região inteira dependente dos subsídios, metade está no consumo da droga e a outra metade no tráfico.

E há a irmã de Jénifer, Mara, a trabalhar na cidade, numa unidade hoteleira, aparecerá grávida do dono da venda, o Chocolatinho, a mulher deste ao princípio reponta, chama-lhe nomes, nascerá a criança, viverão todos juntos, com uma réstia de afeto disfarça-se a tragédia de mais vidas estragadas. Há carrinhas que distribuem metadona, Joel regressa ao bairro e a tudo isto assiste, teremos agora novos esplendentes diálogos com Jénifer. O escritor parece ter desistido de escrever a história daquela criança, vai escrevendo, desanimado, que pensa que aquelas ilhas estão condenadas, quem para ali vem fazer turismo nem sonha que existe toda esta exclusão. Joel muda o rumo da escrita até que viu na televisão a notícia de uma intervenção da polícia no combate à droga naquele bairro, afinal chamara a atenção de alguém aquele escândalo dos garotos que transacionavam droga à janela dos carros.

Assim se encerra a narrativa, a amargura fica em suspenso e o futuro de Jénifer é submetido à gestão da nossa consciência, fala-se muito daquele paraíso a meio do Atlântico mas esta princesa da França vive numa ilha por nós desconhecida, está fora dos nossos circuitos turísticos e já temos bairros suburbanos e interioridade quanto basta, ainda por cima a pandemia não acabou, não se vaticina um fim à vista para esta adoçada Terceira Guerra Mundial, há os problemas da inflação, o melhor, Jénifer, é manteres os teus sonhos, esses pergaminhos de princesa da França, e continuares a dar tudo para teres melhor destino.

De leitura obrigatória.


                                                                                        Mário Beja Santos




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