sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Uma prosa tão segura e formosa que ganhou a intemporalidade.

 


 

 

Diplomata e teatrólogo, o asturiano Julián Ayesta escreveu o seu único título de ficção em 1952, é um registo tão vivo e admirável que passadas estas décadas engrenamos sem qualquer dificuldade na Espanha destes anos 1950 e somos galvanizados por um quadro que tem tanto de idílico como de rigoroso da transição da infância para a adolescência, do relato saímos esmagados, ninguém pode prever tanta simplicidade a descrever os afetos que qualquer um de nós pôde experimentar ou sonhar, poucas coisas há de tão sublime como o primeiro amor.

Logo o arranque da prosa, um almoço no jardim: “O doce de ginja brilhava vermelhíssimo entre as vespas amarelas e pretas e o vento remexia os ramos dos carvalhos e as manchas do sol corriam sobre o musgo, sobre a erva macia e húmida e sobre a cara dos convidados e das mulheres e dos homens que estavam a fumar e a rir todos ao mesmo tempo. E brilhavam também os cálices azuis do Marie Brizard e os talheres de sobremesa. E os pontinhos de luz – os grandes perseguindo os pequenos, corriam sobre a toalha cheia de nódoas roxas de vinho e de migalhas.”

É, pois, um cenário sensorial, luzes, risos, cheiros, notas de conversas, uma cadeira que se partiu. E todos partem para a praia, de tarde, porque o melhor banho era ao fim da tarde, e o retrato volta a encenar-se com a descrição daqueles familiares à beira-mar, os comentários chocarreiros, aquela tia que nadava com umas pulseiras que nunca tirava, e não faltava a comida, logo a tortilha, depois a limpeza dos restos do banquete, começavam a aparecer as estrelas. Era assim que se passava o verão, os primos eram ainda meninos, o tio Arturo vinha contar histórias às meninas, ao deitar havia lutas de almofadas no quarto das raparigas, os rapazes vieram para a brincadeira, torna-se percetível que Helena irá ter um papel central em toda a trama.

A obra muda de prisma e rotação, é o ideário católico quem mais ordena, desvela-se o que vai na cabeça de uma criança, o sofrimento de Jesus na cruz, a presença de Lúcifer, a submissão à autoridade da Igreja, a inquietação pelo pecado mortal, o papel do diretor espiritual, a permanente ansiedade de afastar os maus pensamentos e maus pensamentos podia ser imaginar uma mulher a fazer as suas necessidades, e então ficava-se enojado, mas havia o refúgio em Nossa Senhora, o autor entra numa aparente deriva sobre tais sonhos até lugares exóticos para se chegar ao quadro do arrependimento: “E escondíamos a cabeça entre as mãos e chorávamos, com os olhos ardendo de raiva pela nossa miséria, e depois, quando esse primeiro arrebatamento passava, chorávamos com uma pena e uma dor muito fundas, que nos faziam pele de galinha, e se puséssemos a mão no peito reparávamos que quase não nos batia o coração. Era uma grande tristeza pela distância de Deus, porque Ele não nos via nem nos escutava e não se importava que O amássemos nem que estivéssemos dia e noite a lutar contra o Diabo.” E daqui se transfere a graça de Deus para a sala de jantar e para as conversas corriqueiras, e as alegrias à mesa, surgia um quadro de harmonia, que assim se exprimia: “Eu senti uma felicidade tão grande por dentro que todo o meu corpo tremia e eu ria sem saber porquê. Sentia-me cheio da graça de Deus, em paz com Deus e, com todas as pessoas que amava amigas e felizes a meu lado, teria adorado que o mundo parasse naquele momento e que o tempo deixasse de passar e que aqueles instantes durassem para sempre.”

E virá de novo o verão, faço relevo à burra e ao jardineiro, que era o dono da carroça que vinha buscar os primos que chegavam de Madrid para passar o verão. Mais prosa com todos os sentidos: “Há uns prados cobertos de orvalho e outros já cheios de sol e papoilas. Cheirava a morangos de maio e ao sol azul (…) As ruas de Gijón estão com uma sombra lilás muito limpa e fresca e não há quase ninguém porque as ruas de manhã estão perfumadas pelo cheiro das algas do mar.”

A família reencontra-se, chilreiam comentários leves, é a alegria do reencontro, há paragens para beber cidra, cantarola-se. Helena ganha forma: “Começava a fazer calor e passavam vespas a zumbir e moscas brilhantes. Ao fundo, entre as árvores, viam-se prados verdes, aldeões trabalhando entre os milheirais, carros azul-claros, bois e uma nesga de mar. Vinha um cheiro da erva húmida aquecida pelo sol do meio-dia, e eu, morto de felicidade, com Helena a meu lado, semicerrava os olhos e mergulhava no fundo dos meus pensamentos. Pensava no verão que me esperava junto a Helena, sob aquele céu, entre os prados verdes, os rios e as árvores, sabendo que ela gostava de mim, e quase se me enchiam os olhos de lágrimas.” E há um passeio pelo bosque, a ternura do encontro a dois, ele aproxima-se, ela tenta fugir, ela foge depois de o morder, dá-se a reaproximação, Helena põe-lhe um curativo na ferida, recomeça a perseguição, lá vai ele, felicíssimo. Temos agora a tarde e o crepúsculo, de novo o convívio, o fumo dos charutos dos homens, a sala de jantar mergulhada na penumbra e desse escuro ouvem-se as cigarras e os grilos. Vão até à praia os dois. “Helena e eu íamos calados. De vez em quando, Helena parava, colhia umas quantas amoras e oferecia-me metade. E continuávamos a caminhar muito próximos, sem dizer nada, mas tremendo. Algumas vezes o meu amor – que era a Helena, tão linda, com a pele tão morena e o cabelo tão louro e os olhos azuis e tão livre e valente – parava outra vez para apanhar amoras e picava-se num espinho. Oferecia-me então o seu dedo ensanguentado e eu chupava-lhe o sangue, que era tão vermelho, tão salgado, tão lindo cintilando ao sol.”

E chegam à praia, pequena e de difícil acesso, lançam-se contras as ondas frias, bancas e espumosas, nadam juntos, o autor socorre-se da antiguidade clássica, e aquele jovem, tremendo, com voz rouca, confessa o seu amor a Helena, e ela corresponde.

E esta noveleta que já não tem idade termina de uma forma ímpar:

“Não falámos mais. Íamos juntos, sós, entre o silêncio do crepúsculo. Íamos só entre o silêncio do mundo. Sós entre o silêncio do tempo. Sós para sempre. Juntos e sós, andando juntos e sós entre o silêncio do mundo e do mar e do mundo, andando andando. E tudo era como um grande arco e nós íamo-lo atravessando e do outro lado estava o nosso mundo e o nosso tempo e o nosso sol e a nossa luz e a nossa noite e as estrelas e os montes e os pássaros e sempre…”

Há um poder de sugestão, uma magia das palavras que se desprende deste relato da iniciação amorosa, uma tremenda elegância na forma que nos embarga a leitura, e chegamos ao fim com a convicção que um dia a ela retornaremos, tal a sua intemporalidade que nos recorda a inocência perdida.


Mário Beja Santos



Sem comentários:

Enviar um comentário