Foi nas férias de verão de 1984. Por norma, tal como
tinha vindo a acontecer nos anos anteriores, deveria ter ido passar essas
férias a Portugal, onde, como de costume, se encontravam à minha espera a
família, os amigos, as bibliotecas, os arquivos, as livrarias, os alfarrabistas
e as esplanadas. Porém, como no dia 14 de dezembro de 1983 fora surpreendido
por um maciço ataque cardíaco de que tive de ser reanimado quatro vezes – duas
na sala de emergência e duas na unidade de cuidados intensivos - e que me
obrigara a passar mais de um mês hospitalizado no Saint Mary’s Hospital, em
Waterbury, Connecticut, fui compelido a fazer outros planos. Dado que nesse
verão de 84 ainda me encontrava em estado de convalescença, decidi ir passar as
ditas férias a Gez, uma comuna francesa, na região administrativa de
Auvémia-Ródono-Alpes, do Departamento de Aín, localizada no sopé dos Montes
Jura, a cerca de dez quilómetros do Colo de la Faucille e a dezasseis
quilómetros de Genebra, Suíça. E aí me instalei, no chamado “País de Gez”, no confortável
chalé campestre, de vistas deslumbrantes sobre os Alpes Franceses, onde residia
o meu antigo aluno e especial amigo Armand F. Pereira, alto funcionário do BIT
(Bureau International du Travail), em Genebra, o qual me acolheu e tratou com
uma hospitalidade fraterna.
E por quê em Gez, e não em Lisboa? Porque em Gez
poderia continuar tranquilamente a minha longa convalescença, ao ritmo
prescrito pelos médicos, ao passo que em Lisboa seria de tal maneira
apaparicado pelos membros da família, que, em vez de repouso, ver-me-ia forçado
a viver sob uma pressão contínua.
Como um dos remédios recomendados pelo meu
cardiologista consistia em evitar acarretar coisas pesadas, além da roupa de
vestir, reduzida ao mínimo, coloquei dentro de uma pequena bolsa de mão, ao
lado do passaporte, do bilhete de avião e dos medicamentos, um exemplar de
cinco obras de Fernando Pessoa, publicadas pela Ática: Poesias de Fernando Pessoa, Poemas de Alberto Caeiro, Odes de Ricardo Reis, Poesias de Álvaro de Campos e Mensagem por Fernando Pessoa.
Tendo, em mais de um semestre, incluído nos meus
cursos sobre poesia portuguesa Mensagem de Fernando Pessoa, e tendo verificado, com óbvia frustração, que, por
mais esforços que fizesse e mais voltas que desse à cachimónia, acabava sempre
por concluir que os alunos e eu nunca conseguíamos penetrar no âmago do misterioso e hermético poema,
perguntei-me se não seria conveniente aproveitar esse verão de “viajante sem
bagagem”, ou, melhor dito, de viajante sem biblioteca, para tentar, como
aconselha Rabelais na introdução a Gargantua, cravar o dente famélico e guloso na medula substancial
dessa obra de Pessoa. E foi assim que nessas férias de convalescença dos
ataques cardíacos só existiu um livro para mim: Mensagem de Fernando Pessoa. E foi assim que me pus a ruminar sobre
o significado desse poema épico de Pessoa, escrevendo notas no próprio livro ou
num pequeno caderno que me acostumei a trazer comigo, durante as escassas horas
do dia que não eram passadas a repousar, a dar longas caminhadas pelos campos,
a apanhar caracóis que o meu amigo Armand e os seus visitantes adoravam e eu
detestava; a dar passeios turísticos de barco pelo icónico Lago Genebra ou Lago
Lemano, coleccionando palacetes de escritores famosos e “petits châteaux”
encantadores, a espelhar-se, ufanos, nas águas límpidas e azuladas do lago; a
passar tardes inteiras em Lausanne, a quarta maior cidade da Suíça, apreciando
música de rua, produzida por jovens alunos dos conservatórios, vestidos à
hippie, regalando os olhos na arquitectura antiga e moderna, e visitando a
Catedral de Notre Dame, os museus e as casas onde viveram os poetas românticos
Shelley e Lord Byron e o romancista Ernest Hemingway, e onde o poeta T. S.
Elliot escreveu Waste Land (“by the waters of Leman I sat
down and wept”); a contemplar, fascinado, a majestade de Mont Blanc, sentado
numa esplanada de Chamonix, saboreando uma chávena de café ou de chá; a visitar
vilas feéricas nos Alpes Franceses, tais como Évian – les Bains e Annecy, a
Veneza francesa, assim chamada por via dos seus mágicos canais.
Como também tinha levado comigo a minha Olivetti
portátil, fiel companheira e confidente de todas as minhas viagens, até ao
advento da computadora, quando regressei aos Estados Unidos já trazia comigo,
escrito à máquina, um minúsculo e tímido esboço do que um dia viria o ser o meu
livro sobre Mensagem de Pessoa.
Vieram depois novos cursos ministrados por mim sobre
poesia portuguesa, de que constava Mensagem de Pessoa; vieram as consultas de dicionários de símbolos e
de monografias sobre simbolismo; vieram leituras de livros sobre arte poética,
emblemas e crítica literária; vieram leituras de obras sobre rosacrucianismo,
hermetismo, mitologia e psiquiatria; vieram leituras das Trovas de Bandarra e da História do Futuro do Padre António Vieira e o diálogo de Pessoa com esses
autores; vieram depois pesquisas sobre o inegável diálogo entre Mensagem
de Pessoa e Os Lusíadas de Camões; vieram depois pesquisas sobre o insofismável
diálogo entre Mensagem de Pessoa e a Bíblia; vieram depois conjecturas sobre o sentido patente ou o
sentido latente de determinados vocábulos ou sintagmas de poesias de Mensagem; vieram, por fim, as infalíveis alterações, adições e
subtracções.
Chegou o dia em que me senti impelido a falar desse
meu projecto de crítica literária à minha colega Marie Naudin, professora de
Francês na minha universidade e leitora assídua e entusiasta de literatura
portuguesa. Após uma rápida leitura do esboço do meu futuro livro, a única
observação que ela me fez teve a ver com a ausência quase total, nos meus
comentários provisórios às respectivas poesias de Mensagem, de uma breve referência biográfica aos figurantes
históricos, tais como reis, rainhas, vice-reis, duques, infantes, navegadores e
conquistadores. Que para um leitor que, como ela, ignorava praticamente toda a
história de Portugal, essa breve referência biográfica seria de suma
importância, não só para uma melhor compreensão dessa poesia em particular, mas
também da obra, no seu conjunto.
O meu estudo de uma análise crítica de Mensagem continuou a crescer e a tomar forma de gente e na minha
segunda estadia como professor visitante na Universidade da Califórnia, em
Santa Bárbara, no curso de verão de 1987 decidi dar um seminário a alunos de
pós-graduação exclusivamente sobre Mensagem de Pessoa. Devo, porém, confessar que, para minha
desilusão, as achegas esperadas não foram famosas, para não dizer que foram
praticamente inexistentes, mas o meu empenho em levar a cabo e aperfeiçoar o
projecto literário foi tal que, na conclusão do seminário, o livro começava a
aproximar-se da sua versão final.
Chegado a esse ponto, ainda longe de pensar numa
hipotética publicação, comecei a sentir-me suficientemente à vontade para
participar com excerptos desse estudo em congressos literários. De entre esses
congressos, apraz-me destacar dois: Iberia & Mediterranean, organizado por Zultán Rózsa e Íldikó Puskás, em Budapeste
e Debrecen, na Hungria, entre 26 e 29 de agosto de 1989, e IV
Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, organizado por Almir de Campos Bruneti em Tulane University, New
Orleans, Louisiana, entre 17 e 19 de novembro de 1988. Intitulei a conferência
proferida em Budapeste, “O ‘Mar Português’ da Mensagem de Fernando Pessoa”, publicada nas pp. 245-259 do volume
das actas, e a proferida em New Orleans, “Os profetas do Quinto Império da Mensagem”, publicada nas páginas 63-83 do volume das actas.
António Quadros, que, tal como eu, participou com uma
comunicação no IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, em New Orleans, terá ficado tão bem impressionado,
modéstia à parte, com a minha comunicação que, ao saber que se tratava do
excerpto de um livro acabado, me pediu que lhe desse a honra de publicá-lo nas Edições
do ICALP, na secção dirigida por ele, chamada Identidade:
Cultura Portuguesa. E nessa mesma ocasião António
Quadros, de uma gentileza exemplar, insistiu também comigo para que escrevesse
uma obra para a secção da Biblioteca Breve, criada e dirigida pelo Eng. Beja Madeira, que, aliás, era
o Director das Edições do ICALP.
E foi assim que nasceu o meu livro, intitulado A
Sextina em Portugal nos Séculos XVI e XVII, publicado em 1992, com uma tiragem de 4000 exemplares. E foi assim
que, no ano do Senhor de 1990, saiu à luz, com uma tiragem de 3000 exemplares,
o meu livro intitulado O “Olhar Esfíngico” da Mensagem de Pessoa.
Manchester, Connecticut, USA
11 de dezembro de 2024
António Cirurgião