quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

São Cristóvão pela Europa (290).

 

 

 

Regressemos a Portugal, começando por Arruda dos Vinhos.

A igreja paroquial situa-se na zona antiga e é dedicada a Nossa Senhora da Salvação.

Nesta localidade se refugiou o rei D. Manuel I e a sua família durante uma epidemia de peste.

Tendo toda a família escapado com saúde, o rei mandou erigir a Igreja no local onde existia uma mais pequena.

A Igreja está dotada de um notável portal manuelino.

No interior existem uns belos azulejos azuis e brancos do Século XVIII nomeadamente um representando São Cristóvão:



Numa casa de habitação, outro azulejo:



O rei D. Manuel I está ligado ao São Cristóvão seguinte.

Visitando a Igreja de Santa Cruz em Coimbra constata que o túmulo do nosso primeiro rei não tem a dignidade que ele considera exigível. E ordena a construção de um novo que perdurou até hoje.

A construção do mausoléu terminou em 1520. Dele foram encarregues Diogo de Castilho (1490-1574), de origem castelhana, e Nicolau de Chanterene (1470-1551), de origem francesa, julgando-se que ao segundo apenas coube a estátua jacente do Rei.

Entre as diferentes estátuas distribuídas por todo o mausoléu, uma é de São Cristóvão.

 



Tanto Diogo de Castilho como Nicolau de Chanterene estão também ligados à construção do Mosteiro de Celas também em Coimbra. Belíssimo é o claustro do Século XIV. No claustro um baixo-relevo com o nosso Santo.

 




Finalmente em Almeirim, uma garagem abandonada tem um interessante baixo-relevo representando o nosso Santo.




No próximo post voltaremos a França.

 

                        Fotografias de 14 e 17 de Agosto e 1 de Dezembro de 2024.

                                                                                 José Liberato




segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Os desastres da guerra e do amor, fidelidade e desilusão política.

 



Logo ficamos a saber que é um foragido, saberemos depois que conheceu as crueldades da guerra, será sempre uma guerra indeterminada, reencaminha-se, na sua deserção, para os locais da sua origem, aparece-nos literalmente exausto, emporcalhado, numa natureza áspera, em que a montanha rumoreja, o vento atravessa os cumes, desce para a comba e vibra entre os arbustos, a sua ânsia é chegar ao casebre que o protegerá como na infância. E saltamos para outra história, estamos em Berlim, no dia 11 de setembro de 2001, num cruzeiro de nome Beethoven, ali decorrerá uma conferência, as Jornadas Paul Heudeber, um famosíssimo matemático alemão, desaparecido em 1995, não se sabe se por acidente ou suicídio. Este matemático vivia na Berlim da RDA, por inteira convicção política, a sua amada, Maja, vivia em Bona, trabalha junto de Willy Brandt, o chanceler social-democrata. A correspondência entre as duas Alemanhas é de uma extrema beleza: “És o selo de tudo, única. O teu afastamento aproxima o infinito. Só tu me permites escapar ao tempo, ao mal, aos fluxos da melancolia.” Somos apresentados aos participantes do evento científico, sempre no rio Havel, para ele convergem alguns dos nomes mais sonantes da matemática à escala mundial. Voltamos ao desertor, ele caminha no rumorejar obsessivo da montanha, lá em cima as manchas pretas dos aviões que descarregam bombas em terras longínquas, o mar não está longe, está sedento e esfaimado, a barba é rude como a casca da árvore, passou por um desfiladeiro, a casa está ali em baixo, à direita. Assim arranca este espantoso romance intitulado Desertar, por Mathias Enard, Prémio Goncourt 2015, Publicações Dom Quixote, 2024.

Mudamos de tempo e lugar, em 2021 a guerra parece próxima, entra em cena Irina, filha de Maja e Paul, nasceu em 1951, a RDA acabava de cumprir dois anos. Paul ganha notoriedade internacional com a sua obra As Conjeturas do Ettersberg, escrito acerca da sua detenção no campo de concentração de Buchenwald, o livro deu a volta ao mundo, terá sido a única obra de matemática com a categoria de bestseller. Parece caber a Irina a missão de revelar ao leitor o amor de Maja e Paul, compete-lhe procurar interpretar esse tempo da ascensão do nazismo até ai colapso dos estados comunistas e por onde pairou a paixão ardente daquele casal onde o amor aplacava as dissidências políticas.

O desertor mata a sede, lava o corpo em água gelada, chega uma intrusa com um burro, vão começar as vicissitudes de dois sobreviventes. Voltamos às jornadas no Havel, Irina dá-nos conta das convicções do seu pai, acreditava piamente na agonia do imperialismo, escrevendo mesmo a Maja: “Berlim Ocidental é um prego na sola do sapato de Khrushchov. Prefiro pensar com orgulho que o socialismo mostra a cada dia a força desse coração, o poder dessa Europa, e que, em breve, será essa poça de capitalismo que é Berlim Ocidental que irá secar sozinha. Desertor e a recém-chegada e o burro ali estão, na solidão da montanha, o desertor ainda pensou em usar a arma, agora medem-se, algo os irmana, “a guerra fez tudo voltar ao zero, apagou tudo aplainou tudo limou tudo, os automóveis calcinados nas valetas das estradas os aviões manchas no poente um zumbido um assobio e tudo arde nos gritos da derrota.” Voltando à correspondência amorosa, Paul escreve a Maja em 1961, chegou o muro de Berlim: “Construímos uma barricada contra o fascismo. Em betão e numa noite. Ou pouco mais. Agora somos grandes e invencíveis – claro, o lado ocidental está cercado e vencido. Tudo depende da forma como considerarmos este conjunto; o princípio do infinito é que este contenha sempre uma quantidade maior.” E de novo nas jornadas, Maja está flamante, isto a par de uma chuva diluviana que caiu para os lados daquela montanha em que o desertor e a sobrevivente se irão confrontar. A memória de Irina é imparável, recorda-nos a história da matemática, o entusiasmo do pai pelo socialismo que ele pensa que está a ser instaurado na RDA. Lá para aquela montanha perto da Rocha Negra, o desertor trata da sobrevivente, e a memória de Irina faz-nos cair em cheio em Buchenwald, pelas cartas amorosas iremos também saber que fugiram aos nazis, encontraram acolhimento em Liège, a Gestapo recambiou-os para a Alemanha, o desertor trata carinhosamente a sobrevivente, na correspondência amorosa Paul escreve: “Maja meu amor venceremos, temos a força do círculo, a do triângulo retângulo sem o qual não existe o círculo, sólidos como dois anéis um dentro do outro, a invariância do campo da paixão. Mando esta carta para Norte. Enfio-me dentro dela como um génio na lâmpada. Se sussurrares abracadabra com carinho e esfregares o papel muito devagar contra o peito, eu apareço.”

Um acontecimento histórico deita for terra a realização das jornadas no rio Havel, a televisão mostra as imagens de um avião a despenhar-se numa nuvem de fogo, corpos a cair das janelas, as Torres Gémeas desmoronam-se, à volta da mesa os cientistas falam do que aconteceu na Europa, há uma instabilidade que se avizinha, um tanto indefinível. O desertor pensa partir sozinho, hesita, ir-se embora abandonando-a indefesa e tão doente em matá-la. E naquele dia de setembro de 2011, percorremos um tanto a história da Europa e a história da matemática, há até um estranho participante nas jornadas, de nome Isidro Baza que conta publicamente como Paul e ele viveram aqueles anos 1940.

Desertor e sobrevivente e um burro muito doente encaminham-se para uma fronteira próxima, observam o despenhadeiro da Rocha Negra. Destes dois caminheiros sabemos que ele acendeu uma fogueira, colocou pedras planas e preparou uma fogueira para preparar as trutas que apanhou no rio, a sobrevivente está agitada, ainda desconfia do desertor e até lhe passa pela cabeça matá-lo. Agora há lembranças de 1995, quando a guerra chegou ao fim na Bósnia, onde Paul morreu afogado aos 77 anos. De Nova Iorque, um ilustre matemático que comparecera às jornadas do rio Havel, Linden S. Pawley escreve a Irina, estamos em maio de 2012, carta confessional, ele e Maja tinham tido uma relação ocasional, volta ao passado, há fuga para a Bélgica em maio de 1940, eles fugitivos, há uma denúncia, segue-se Buchenwald. “Querida Irina, não me julgues. Não nos julgues. Achei importante escrever-te, antes de tudo acabar no esquecimento.” Temos agora uma carta de Paul envelhecido: “Maja, meu amor. A matemática é um véu pousado sobre o mundo, que se ajusta às formas do mundo, para o envolver completamente; é uma linguagem e é uma matérias, palavras numa mão, lábios num ombro; a matemática arranca-se como um gesto rápido: podemos ver então a realidade do universo, podemos acaricia-la como o gesso dos moldes, com as asperezas, as saliências, as linhas, sejam elas de fuga ou de vida. Esse véu, essa toalha sobre o mundo, também é a mortalha na qual me envolvo quando chega a hora de ir embora.”

É neste carrossel de múltiplos tempos e lugares que Irina vai a caminho de Ettersburg, perto de Weimar, é nisto que aqueles fugitivos se deparam com três soldados, há quem queira abusar da sobrevivente, no desespero ela espeta-lhe uma agulha no olho, estamos já em 2021, há bombardeamentos russos na Rússia, Irina imagina o seu pai a escrever uma parte da sua obra em Buchenwald.

É uma obra prodigiosa, talvez uma metáfora sobre as diferentes guerras que endemoninham a Europa, é uma escrita esplendente de um escritor cultíssimo, e é preciso ter muito talento para gerar esta tensão no leitor com a história justaposta de dois destinos aparentemente sem relação um com o outro. 


                                                                Mário Beja Santos




quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Génese do meu livro O “olhar esfíngico” da Mensagem de Pessoa.

 


 

Foi nas férias de verão de 1984. Por norma, tal como tinha vindo a acontecer nos anos anteriores, deveria ter ido passar essas férias a Portugal, onde, como de costume, se encontravam à minha espera a família, os amigos, as bibliotecas, os arquivos, as livrarias, os alfarrabistas e as esplanadas. Porém, como no dia 14 de dezembro de 1983 fora surpreendido por um maciço ataque cardíaco de que tive de ser reanimado quatro vezes – duas na sala de emergência e duas na unidade de cuidados intensivos - e que me obrigara a passar mais de um mês hospitalizado no Saint Mary’s Hospital, em Waterbury, Connecticut, fui compelido a fazer outros planos. Dado que nesse verão de 84 ainda me encontrava em estado de convalescença, decidi ir passar as ditas férias a Gez, uma comuna francesa, na região administrativa de Auvémia-Ródono-Alpes, do Departamento de Aín, localizada no sopé dos Montes Jura, a cerca de dez quilómetros do Colo de la Faucille e a dezasseis quilómetros de Genebra, Suíça. E aí me instalei, no chamado “País de Gez”, no confortável chalé campestre, de vistas deslumbrantes sobre os Alpes Franceses, onde residia o meu antigo aluno e especial amigo Armand F. Pereira, alto funcionário do BIT (Bureau International du Travail), em Genebra, o qual me acolheu e tratou com uma hospitalidade fraterna.

E por quê em Gez, e não em Lisboa? Porque em Gez poderia continuar tranquilamente a minha longa convalescença, ao ritmo prescrito pelos médicos, ao passo que em Lisboa seria de tal maneira apaparicado pelos membros da família, que, em vez de repouso, ver-me-ia forçado a viver sob uma pressão contínua.

Como um dos remédios recomendados pelo meu cardiologista consistia em evitar acarretar coisas pesadas, além da roupa de vestir, reduzida ao mínimo, coloquei dentro de uma pequena bolsa de mão, ao lado do passaporte, do bilhete de avião e dos medicamentos, um exemplar de cinco obras de Fernando Pessoa, publicadas pela Ática: Poesias de Fernando Pessoa, Poemas de Alberto Caeiro, Odes de Ricardo Reis, Poesias de Álvaro de Campos e Mensagem por Fernando Pessoa.

Tendo, em mais de um semestre, incluído nos meus cursos sobre poesia portuguesa Mensagem de Fernando Pessoa, e tendo verificado, com óbvia frustração, que, por mais esforços que fizesse e mais voltas que desse à cachimónia, acabava sempre por concluir que os alunos e eu nunca conseguíamos penetrar no  âmago do misterioso e hermético poema, perguntei-me se não seria conveniente aproveitar esse verão de “viajante sem bagagem”, ou, melhor dito, de viajante sem biblioteca, para tentar, como aconselha Rabelais na introdução a Gargantua, cravar o dente famélico e guloso na medula substancial dessa obra de Pessoa. E foi assim que nessas férias de convalescença dos ataques cardíacos só existiu um livro para mim: Mensagem de Fernando Pessoa. E foi assim que me pus a ruminar sobre o significado desse poema épico de Pessoa, escrevendo notas no próprio livro ou num pequeno caderno que me acostumei a trazer comigo, durante as escassas horas do dia que não eram passadas a repousar, a dar longas caminhadas pelos campos, a apanhar caracóis que o meu amigo Armand e os seus visitantes adoravam e eu detestava; a dar passeios turísticos de barco pelo icónico Lago Genebra ou Lago Lemano, coleccionando palacetes de escritores famosos e “petits châteaux” encantadores, a espelhar-se, ufanos, nas águas límpidas e azuladas do lago; a passar tardes inteiras em Lausanne, a quarta maior cidade da Suíça, apreciando música de rua, produzida por jovens alunos dos conservatórios, vestidos à hippie, regalando os olhos na arquitectura antiga e moderna, e visitando a Catedral de Notre Dame, os museus e as casas onde viveram os poetas românticos Shelley e Lord Byron e o romancista Ernest Hemingway, e onde o poeta T. S. Elliot escreveu Waste Land  (“by the waters of Leman I sat down and wept”); a contemplar, fascinado, a majestade de Mont Blanc, sentado numa esplanada de Chamonix, saboreando uma chávena de café ou de chá; a visitar vilas feéricas nos Alpes Franceses, tais como Évian – les Bains e Annecy, a Veneza francesa, assim chamada por via dos seus mágicos canais.

Como também tinha levado comigo a minha Olivetti portátil, fiel companheira e confidente de todas as minhas viagens, até ao advento da computadora, quando regressei aos Estados Unidos já trazia comigo, escrito à máquina, um minúsculo e tímido esboço do que um dia viria o ser o meu livro sobre Mensagem de Pessoa.

Vieram depois novos cursos ministrados por mim sobre poesia portuguesa, de que constava Mensagem de Pessoa; vieram as consultas de dicionários de símbolos e de monografias sobre simbolismo; vieram leituras de livros sobre arte poética, emblemas e crítica literária; vieram leituras de obras sobre rosacrucianismo, hermetismo, mitologia e psiquiatria; vieram leituras das Trovas de Bandarra e da História do Futuro do Padre António Vieira e o diálogo de Pessoa com esses autores; vieram depois pesquisas sobre o inegável diálogo entre Mensagem de Pessoa e Os Lusíadas de Camões; vieram depois pesquisas sobre o insofismável diálogo entre Mensagem de Pessoa e a Bíblia; vieram depois conjecturas sobre o sentido patente ou o sentido latente de determinados vocábulos ou sintagmas de poesias de Mensagem; vieram, por fim, as infalíveis alterações, adições e subtracções.

Chegou o dia em que me senti impelido a falar desse meu projecto de crítica literária à minha colega Marie Naudin, professora de Francês na minha universidade e leitora assídua e entusiasta de literatura portuguesa. Após uma rápida leitura do esboço do meu futuro livro, a única observação que ela me fez teve a ver com a ausência quase total, nos meus comentários provisórios às respectivas poesias de Mensagem, de uma breve referência biográfica aos figurantes históricos, tais como reis, rainhas, vice-reis, duques, infantes, navegadores e conquistadores. Que para um leitor que, como ela, ignorava praticamente toda a história de Portugal, essa breve referência biográfica seria de suma importância, não só para uma melhor compreensão dessa poesia em particular, mas também da obra, no seu conjunto. 

O meu estudo de uma análise crítica de Mensagem continuou a crescer e a tomar forma de gente e na minha segunda estadia como professor visitante na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, no curso de verão de 1987 decidi dar um seminário a alunos de pós-graduação exclusivamente sobre Mensagem de Pessoa. Devo, porém, confessar que, para minha desilusão, as achegas esperadas não foram famosas, para não dizer que foram praticamente inexistentes, mas o meu empenho em levar a cabo e aperfeiçoar o projecto literário foi tal que, na conclusão do seminário, o livro começava a aproximar-se da sua versão final.

Chegado a esse ponto, ainda longe de pensar numa hipotética publicação, comecei a sentir-me suficientemente à vontade para participar com excerptos desse estudo em congressos literários. De entre esses congressos, apraz-me destacar dois: Iberia & Mediterranean, organizado por Zultán Rózsa e Íldikó Puskás, em Budapeste e Debrecen, na Hungria, entre 26 e 29 de agosto de 1989, e IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, organizado por Almir de Campos Bruneti em Tulane University, New Orleans, Louisiana, entre 17 e 19 de novembro de 1988. Intitulei a conferência proferida em Budapeste, “O ‘Mar Português’ da Mensagem de Fernando Pessoa”, publicada nas pp. 245-259 do volume das actas, e a proferida em New Orleans, “Os profetas do Quinto Império da Mensagem”, publicada nas páginas 63-83 do volume das actas.

António Quadros, que, tal como eu, participou com uma comunicação no IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, em New Orleans, terá ficado tão bem impressionado, modéstia à parte, com a minha comunicação que, ao saber que se tratava do excerpto de um livro acabado, me pediu que lhe desse a honra de publicá-lo nas Edições do ICALP, na secção dirigida por ele, chamada Identidade: Cultura Portuguesa. E nessa mesma ocasião António Quadros, de uma gentileza exemplar, insistiu também comigo para que escrevesse uma obra para a secção da Biblioteca Breve, criada e dirigida pelo Eng. Beja Madeira, que, aliás, era o Director das Edições do ICALP.

E foi assim que nasceu o meu livro, intitulado A Sextina em Portugal nos Séculos XVI e XVII, publicado em 1992, com uma tiragem de 4000 exemplares. E foi assim que, no ano do Senhor de 1990, saiu à luz, com uma tiragem de 3000 exemplares, o meu livro intitulado O “Olhar Esfíngico” da Mensagem de Pessoa.

 

Manchester, Connecticut, USA

11 de dezembro de 2024

António Cirurgião

 

Angola, 1961, começou a defesa do Império: Documentação e análise de um rigor dificilmente atingível por um só investigador.




O historiador Valentim Alexandre dá-nos conta neste seu trabalho de arromba o propósito da obra: “Sendo totalmente autónomo, este livro inscreve-se num projeto mais vasto, que visa fazer o estudo da última fase do colonialismo português. Noutro volume, intitulado Contra o Vento, seguimos a evolução do Império, após a Segunda Guerra Mundial, até 1960 – um período caracterizado pelo movimento de descolonização que, com incidência primeiro na Ásia e depois em África, levou à desagregação dos sistemas coloniais europeus. A exceção foi Portugal, que tomou nesta fase um rumo divergente, resistindo aos ‘ventos de mudança’. O livro depois publicado – Os Desastres da Guerra – Portugal e as Revoltas em Angola (1961 – janeiro a abril) – tem como centro a análise das três convulsões que, em começos de 1961, em zonas geográficas diferentes, abalaram o domínio colonial em Angola – a revolta da Baixa de Cassange, de janeiro a março; o assalto às prisões de Luanda, em fevereiro; e a insurreição no norte do território, a partir de 15 de março – assim como das suas repercussões em Angola e na metrópole. O presente volume retoma o fio dessa meada em que, a 13 de abril, o Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, vencido o golpe de Estado conhecido por Abrilada, assumiu a pasta da Defesa, fazendo-se desde então a mobilização do contingente geral do Exército para combater a insurreição angolana.”

Nesse dia 13 de abril, Salazar dera início à remodelação governamental, num breve discurso anuncia que se irá avançar para Angola, rapidamente e em força. A opinião pública ignora que houve uma tentativa de golpe de Estado, quem promovia alterar o curso dos acontecimentos era um movimento encabeçado pelo próprio ministro da Defesa, Botelho Moniz, escrevera-se a Salazar uma carta, falava-se em situação angustiosa e em breve insustentável das Forças Armadas, havia que restituir ao país as liberdades essenciais, entre outros argumentos. O ditador não desconhece que há sinais de ebulição nas colónias africanas, a Guiné está cercada de países independentes, o Congo deixou de ser belga, há crise na Federação das Rodésias e da Niassalândia, os efetivos militares portugueses são mínimos, mas outras colónias conhecem surtos nacionalistas e há pressões para a sua anexação no Estado da Índia. Adriano Moreira é o novo ministro do Ultramar, é nesse período dramático que ele se dirige a Angola, percorre as zonas em turbilhão, discursa, anuncia reformas, publica diplomas, não são medidas de fundo, e o ministro sabe perfeitamente que não pode contar com grandes aberturas por parte de Salazar, a rutura virá no ano seguinte.

Reocupa-se em termos militares o norte de Angola, os primeiros batalhões e outros contingentes são deslocados para os locais onde houvera massacres, e onde os próprios angolanos tinham fugido face às atrocidades da UPA, que, demonstradamente, não trazia preparação para lutar em termos de guerrilha. A questão angolana é analisada na ONU, o regime de Salazar descobre que nem os Estados Unidos estão do seu lado e há velhos aliados que se abstêm nas votações, a favor só se manifestam a África do Sul e a Espanha. A propaganda portuguesa exibe os massacres e monta um discurso que ganhará perenidade: os terroristas vem de fora, são apoiados pelos comunistas, Portugal passou a estar na vanguarda da defesa do Ocidente. E, contudo, os velhos aliados continuam a fazer bons negócios e a dar ajudas a Portugal.

Valentim Alexandre disseca a essências das reformas, procura-se acabar com o trabalho forçado e com as monoculturas de entidades estrangeiras. Cedo se percebe que era necessário revogar o Estatuto do Indigenato, para ter um mínimo de credibilidade a nível internacional. Discute-se a integração económica do espaço português, o autor disseca o relacionamento da UPA com o MPLA (este ainda tinha um papel extremamente tímido na alvorada da luta armada e a UPA beneficiava de um melhor tratamento internacional, da Argélia aos Estados Unidos). É-nos também dado um mapeamento das forças partidárias envolvidas no conflito angolano e quais a suas linhas de clivagem. Regressamos Às fragilidades do Império português, no caso da Guiné, o PAIGC já está a preparar quadros, um movimento de manjacos ataca em S. Domingos, Susana e Varela e depois umas emboscadas (pratica atos de vandalismo e depois sai do teatro de guerra.

Tudo se adensa na cena internacional, o regime tem cada vez mais dificuldade de argumentação tanto junto da NATO como em Nova Iorque. Na cena interna, como observa o autor, “O PCP era a única força de oposição que tinha uma perspetiva anticolonial definida desde 1955, na sequência da crise de Goa. Nos anos seguintes, o PCP seguiu com grande atenção a questão colonial, a que dava um largo espaço no jornal Avante!, onde se denunciava a repressão exercida nas colónias. O PCP manteve a mesma linha, no essencial, em começos de 1961, após as rebeliões em Angola.” Anteriormente o autor dera-nos conta como o conceito imperial vincara o republicanismo e a oposição liberal ao Estado Novo aparecia ou a calar ou a consentir a defesa do Ultramar português, como se vira no ato eleitoral que ocorrera em 1961.

A síntese da obra neste volume de mais de quinhentas páginas dá-nos uma grande angular da natureza da resposta do regime, do tal quadro que condicionava a política colonial portuguesa e a dos anos de 1870, naquilo que mais tarde se irá chamar o Terceiro Império, a saga africana, um lastro histórico que Valentim Alexandre aprecia numa escrita luminosa, abrindo caminho para o que se segue, a questão da reforma do regime colonial português, o ditador é fortemente centralizador e há os defensores da gradual autonomia, isto é, as relações políticas entre as diversas parcelas do Império. “Adiada em 1961, pela premência que a insurreição no norte de Angola criava, a questão eclodirá no ano seguinte, num debate tumultuoso, que culminará em outubro numa célebre reunião plenária do Conselho Ultramarino. No campo das relações económicas deu-se um passo importante na via de criação do ‘espaço económico português’ tendente a estabelecer a livre circulação de mercadorias de origem nacional entre os vários territórios.”

É impressionante o trabalho deste historiador que lançou mãos a algo que só é imaginável nas mãos de uma farta equipa – parece que estamos a acompanhar mês a mês, com o pano de fundo da maré anticolonial (1945-1960), as vicissitudes do fim do Império, com uma ordem de trabalhos e um rigor inatacáveis.

De leitura obrigatória.


                                                                                               Mário Beja Santos




sábado, 7 de dezembro de 2024

Carta de Bruxelas.

 



             Para assinalar um ano e dois meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023

 

Agora que as Nações Unidas se unem contra o mal absoluto, que vêem em Israel, a ponto de esgotarem as palavras – depois de genocídio, limpeza étnica, holocausto, apocalipse, o que sobra?  Agora que todas as inversões morais se tornaram possíveis, acusando-se Israel de destruir escolas e hospitais; agora que as imagens da destruição de Gaza passam ininterruptamente em tantos ecrãs, a título ilustrativo do conflito; agora que a compaixão é insidiosamente elevada a princípio único humano; agora que a condenação do Estado dos judeus se tornou sinónima da execração do gozo no sofrimento dos outros, a perversidade diabólica inerente ao sionismo, talvez não seja inútil lembrar palavras, a que, noutras circunstâncias, o pudor imporia o recato das horas solitárias, as palavras ditas em 1927 por Edmond Fleg –  Je suis juif, parce qu’en tous lieux où pleure une souffrance, le Juif pleure.

 

                                                                João Tiago Proença




sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Usbequistão: encruzilhada de civilizações (3).

 

 

 

O Bazar de Chorsu, palavra que na língua tajique quer dizer quatro caminhos, é um lugar maravilhoso para os sentidos: as cores e os cheiros são exuberantes e de uma beleza notável. Especiarias, frutas, as carnes, o excepcional pão uzbeque são abundantes e de grande qualidade.

As fotografias falam por si:

 



 





 

                                Fotografias de 25 de Setembro de 2024


                                                                        José Liberato




São Cristóvão pela Europa (289).

 

 

 

A Catedral de Viena de Áustria, dedicada a Santo Estêvão, é um símbolo da Áustria, de Viena, e do próprio estilo gótico. A sua construção iniciou-se no Século XII.

O seu telhado é um dos seus símbolos distintivos. Destruído completamente na II Guerra Mundial, a sua reconstrução marcou também o renascer da Áustria a partir de 1945.

No seu interior, entre 90 imagens de santos, uma do nosso. Embora já aqui publicada, a qualidade da fotografia é, desta vez, melhor.

Peça maior do acervo da Catedral é o pentaptico (políptico que pode ser apresentado de cinco maneiras diferentes) chamado de Wiener Neustadt. Isto porque esteve na Igreja de Neukloster desta cidade (no mesmo local onde está sepultada a Imperatriz Leonor) entre 1447 e 1885 quando foi vendido à Catedral. Numa das suas diferentes disposições (a que é exposta ao domingo) pode ver-se São Cristóvão. Compartilha o pequeno retângulo com Carlos Magno e Segismundo da Borgonha. A santidade de Carlos Magno é muita duvidosa, pois parece ter sido canonizado por um antipapa…

Na predela, o símbolo do Imperador Frederico III que encomendou a obra de arte: AEIOU

Finalmente, o impressionante mausoléu de mármore do mesmo Imperador. Do mesmo autor que concebeu o da Imperatriz Leonor: Niclas Van Leyden. Mas ficaram separados…

 

 






No Museu da Catedral, a Custódia de Prigglitz, em prata e criada em 1515, foi emprestada pela paróquia do mesmo nome. Uma das suas figuras é São Cristóvão. Devido ao reflexo dos vidros, não foi fácil fotografá-la.

 


Ainda há um quadro que se insere num conjunto de sete que deveriam ter pertencido a um tríptico.

Nele se vêem São Cristóvão e, segundo o Museu, São João Evangelista, o que me levanta muitas dúvidas. Um quadro do princípio do Século XV.

Com ele termino a época austríaca de 2024.

 



                                                 Fotografias de 6 de Agosto de 2024

                                                                                    José Liberato



quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

São Cristóvão pela Europa (288).

 

 

 

Continuando a calcorrear as ruas de Viena, chego à escultura de São Cristóvão (um pouco suja da poluição…) da Neilreichgasse:

 


Na fachada da sede do Departamento de limpeza da Câmara Municipal de Viena, revestida de vegetação, um belo baixo-relevo do nosso Santo da autoria de Ludwig Schmidle.

 

 



Na Webgasse, um mosaico de Wilhelm Kocian artista já referido no post 286:

 


 A chamada Servitenkirche homenageia a Assunção de Maria. Foi consagrada em 1670 e constitui um modelo para as igrejas barrocas da época. Era a igreja dos Servitas ou da Ordem dos Servos de Maria, criada em Florença.

No Altar Liborius, a presença de São Cristóvão e de Santa Clara deriva dos nomes dos financiadores da igreja: o Barão Christoph Ignaz Von Abele (1627-1685) e sua mulher Clara.

 




Na Weintraubengasse um baixo-relevo da autoria de Franz Barwig o Jovem (1903-1985).

 


 A deambulação pelas ruas de Viena terminou na Schüttelstrasse com uma escultura de pedra do nosso Santo criada por Louise Wolf.

Já depois desta visita, identifiquei mais três imagens nas ruas de Viena. Terá de ficar para outra oportunidade…

 


 

                                                         Fotografias de 5 de Agosto de 2024    

                                                                                            José Liberato