segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Sagal, o bravo paraquedista, combatente em Moçambique e Angola, justiceiro na Venda Nova.

 


 

A literatura é pródiga em heróis feitos na guerra que no regresso passam pela descida aos infernos e fazem a catarse como justiceiros, defensores de valores pátrios, juízes implacáveis castigando espiões, rufias, gangues, poderão mesmo apresentar-se como defensores de humilhados e ofendidos. Recordo, a título meramente exemplificativo Mike Hammer, um detetive criado por Mickey Spillane, um escritor norte-americano que teve larga audiência pela sua prosa truculenta, ágil, anticomunista (foi colaborador no macartismo), punindo sem dó nem piedade quer os agentes de Moscovo, criminosos avulsos, por vezes geniais, máfias de exploração de raparigas, etc.

António Brito é autor de uma das obras mais importantes da literatura da guerra colonial, Olhos de Caçador, publicado em 2007, inegavelmente autobiográfico. Em 2012, deu-nos Sagal, Um Herói Feito em África, temos agora a infância, a juventude, uma guerra duríssima em Moçambique e Angola, a queda num abismo, a ressurreição com o prodígio de desmontar um negócio sórdido para matar um supermercado na Venda Nova. Acaba de sair nova edição no Clube do Autor, é bem merecido o regresso de António Brito, segue-se a justificação do aplauso.

Um Sagal que é abandonado numa caixa de cartão ali para os lados do Martim Moniz, acolhido no bordel da Tia Lola, e rapidamente Brito deixa o leitor em riste, a narrativa parte desembalada, uma narrativa em que cada capítulo começa por mais uma etapa de uma minimaratona, sempre com definições, palavras nuas e cruas. Sagal começa por ser Emiliano Salgado, tem direito a batismo, manda a moral vigente que fosse transferido para um orfanato, mais crueza naquela aprendizagem dura, a Casa Pia impõe brutais regras de sobrevivência, andam por ali à volta uns predadores de crianças, sai da Casa Pia e vive de expedientes, chega a hora do serviço militar, prepara-se para ser caçador paraquedista. Temos aqui texto clarificador:

“No curso de paraquedismo, espremeram-me o como massa de pasteleiro, levando-o ao limite. Esticaram o cavername e a resistência para lá do que um cristão-novo pode suportar na tortura da Inquisição. Comparado com isto, os tratos de polé não passam de aquecimento suave. Acabava os dias coberto de golpes e nódoas negras, as nádegas em sangue coladas às calças por causa dos rolamentos a pé firme. Repetia ad nauseam os mesmos gestos e movimentos até conseguir aterrar sem partir as pernas à chegada do paraquedas ao solo. Descobri que o cogumelo de nylon verde-azeitona com tiras e cordões era mais importante que um seguro de vida com prémio VIP. Safar o couro defecado das nuvens pelo avião tinha tanto de temerário como de ciência feita. E a torre de saltos a ensombrar-me todos dias. Mais treino de subir à torre: Jááááá!”

Ei-lo em Moçambique, surge uma figura de um mau da fita que pontuará a narrativa até ao fim, o Educador, apresentado como obcecado pela superioridade da raça branca, espécie de ideólogo do poder europeu, sabia muito bem o que queria do seu Moçambique: “Quando houver independência, será como na Rodésia, os brancos a governar. Os pretos vivem na Idade da Pedra, são incapazes de se organizar sem a ajuda dos brancos. Vamos tomar conta do nosso destino… E do deles.” Se já tínhamos nomes das meninas do bordel da Tia Lola, da malta da Casa Pia, não há paraquedista sem nome, o Povoador, o Casto, o Trovador, o Mandarim, o Proletário, o Justiceiro, o Magnânimo, o Africano, e muito mais. Guerra sem quartel, Sagal revela-se astuto, faz frente ao Educador, o superior que ele despreza. A FRELIMO encontra pela frente a bravura de Sagal e dos seus camaradas. Em cerimónia ele é batizado como Leão do Sagal, é condecorado. Chega ao 25 de Abril, Sagal estará presente nos acontecimentos do levantamento dos brancos em Lourenço de Marques, no Rádio Clube, vem a independência, Sagal parte para África do Sul, a sua vida está sem destino, aceita uma proposta feita pelo coronel Peter Vorwerk, vai entrar diretamente no conflito que estalou em Angola, formou a equipa Zulu, se toda a narrativa até agora é construída para não dar tréguas ao leitor, toda a operação para retardar e anular o equipamento soviético e um contingente do MPLA é de deixar a garganta seca, o Leão de Sagal sai ferido da refrega, é tratado na África do Sul, regressa a Portugal.

Temos agora a descida aos infernos, o herói transformou-se num pedinte, um sem-abrigo que dorme nas arcadas da estação de Santa Apolónia. Mãos amigas levam-no para a recuperação, vai para um mosteiro de budismo zen, na Serra do Caldeirão, até que chega o tempo de abalar, sente-se refeito, anda à procura de trabalho, temos agora a etapa capital de ir para o Pão de Açúcar na Venda Nova, prepõem-lhe a tarefa de repositor, alomba com caixas, embrulhos, o ambiente envolvente é de grande hostilidade, vivia-se o PREC, havia roubos e muitas faltas, abundavam as pichagens de um grupelho que se intitulava FNP – Frente Nacionalista Popular. Destemido, o Leão de Sagal monta uma armadilha à Quadrilha do Cigano, impõe-se junto dos seus superiores, lembra-lhes do seu currículo: “Sagal, o sacana que impediu que a vossa caixa-de-merda a que chamam supermercado fosse saqueada e incendiada. O mesmo Sagal combateu e matou filhos da puta no planalto dos macondes, na estrada de Marracuene, no deserto de Moçâmedes e nas margens do rio Cunene. Esse sacana enfrentou comunas bem piores que os piolhosos que vos estragam o negócio. É o único que pode salvar esta vossa trampa atulhada de destroços.” Reunido com os seus superiores, faz-se nomear gerente-chefe, com plenos poderes. O supermercado da Venda Nova enfrenta a Quadrilha do Cigano, desmonta a operação da FNP, está ao serviço de um projeto imobiliário secreto, manda embora o piquete de segurança, inútil, apercebe-se que alguém no interior montou uma outra operação para estragar produtos, como é próprio das sagas, o Leão de Sagal rodeia-se dos antigos camaradas de guerra, obtém-se o radical controlo dos furtos, fica-se a saber que a Quadrilha do Cigano é o braço armado da FNP, o Educador anda por ali, Sagal obtém informação de que os arruaceiros preparam um ataque em grande escala, a resposta é brutal, o cigano é abatido, a minimaratona está praticamente concluída, é desmascarado o bandalho que andava a sabotar os produtos, coisas como pôr cigarros na margarina. E como em todas as sagas, e quase como uma homenagem aos romances de Mickey Spillane, o badalhoco do Educador é batido à boa maneira, mais truculento não podia ser:

“O vulto emergiu por entre os carros estacionados no parque. Avançou agachado para as minhas costas. Enquanto eu rodava, levei a mão ao .38 entalado no cinto das calças. Quando o vulto disparou, eu disparei. A bala do cabrão entrou-me bela antiga cicatriz da coxa, furando a perna e a chapa do Honda Civic.

A minha bala acertou-lhe no pescoço. Um tiro de sorte. Levou as mãos ao rasgão nas goelas, por onde fervilhava sangue a espirrar para os lados. Deixou-se tombar entre os carros, escorregando até ao chão, sem pressa. Esticou o pernil sem o ai, os olhos abertos, o espanto, a surpresa vincada num olhar – o olhar apagado do líder da FNP, o corpo imóvel e sem vida do Educador.”

António Brito é exímio nesta literatura de um justiceiro duro, bem à portuguesa. 


                                                                            Mário Beja Santos 


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