quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Scorsese em estado de graça e para quem qualquer rosto humano tem um direito sobre nós.




Tudo terá começado em 3 de março de 2016, em Nova Iorque, um jesuíta e teólogo, Padre Antonio Spadaro, encontrou-se com Martin Scorsese em sua casa para discutir Silêncio, filme que o realizador italo-americano dedicou à perseguição aos jesuítas no Japão, e a relação do cineasta com a fé. Este livro compendia um conjunto de conversas sobre as motivações do cineasta, ele é questionado sobre a fé e a graça que, mais ou menos subtilmente, emergem das suas obras. O mínimo que se pode dizer do todo desta obra é que ficamos com o retrato de uma das principais figuras contemporâneas da sétima arte, Conversas Sobre a Fé, Casa das Letras, 2024.

Nesse primeiro encontro de 2016, Scorsese fala da sua juventude, era acólito e por vezes ao sair para a rua no fim da missa perguntava a si próprio: “Como é possível que a vida continue como se nada tivesse acontecido? Porque é que o mundo não é abalado pelo corpo e pelo sangue de Cristo?” Questão que o realizador tratou no cinema em filmes como O Touro Enraivecido, A Última Tentação de Cristo e o Silêncio. Padre e realizador irão encontrar-se durante o período da pandemia, falarão de pessoas e livros que influenciaram o realizador que continua obcecado em filmar sobre Jesus.

Fala-se inicialmente de Silêncio, dos jesuítas perseguidos no Japão. Scorsese é assumidamente católico, inquieta-o a questão da graça, algo acontece ao longo da vida e comenta: “Não se consegue ver através da experiência de outra pessoa, apenas da nossa. Por isso, pode parecer paradoxal, mas relacionei-me com o romance de Shūsaku Endō.” Contará ao entrevistador o que pensa das fascinantes e intrigantes personagens do romance, padres que perderam a sua fé, padres que descobriram o rosto de Cristo. Questionado se a compaixão é instinto ou humor, responde que a chave é a negação de nós mesmos, ele dá-se como obcecado pelo espiritual. “Estou obcecado com a questão do que somos. E isso significa olhar para nós de perto, para o bom e para o mau. Será que podemos cultivar o bem para que, num momento futuro da evolução da humanidade, a violência possa, possivelmente, deixar de existir? Mas, neste momento, a violência está cá. É importante mostrar isso. Para que não se cometa o erro de pensar que a violência é algo que os outros fazem.” Reflete demoradamente sobre o tempo da pandemia, os livros que releu, os filmes que viu e fala do que ressoou em si a mensagem do Papa Francisco:

“Durante muitos anos, tentei compreender como Jesus vive no mundo que o rodeia e como a sua presença pode viver em mim e ser expressa por mim. Durante muito tempo cometi o erro de pensar que estava a exprimir Jesus quando, na verdade, estava a estragar as coisas – era uma questão de orgulho e de ego, de me deixar levar pelo papel de grande realizador de cinema e pelo poder de fazer arte. Lendo o texto do Papa Francisco, fiquei entusiasmado.” E fala do seu passado e da sua juventude, em Little Italy¸ Nova Iorque, zona de crime organizado, frequentou uma escola católica, conheceu o padre Francisco Príncipe, influenciou-o muito. “Ele representava uma forma de pensar e uma forma de lidar com a vida que era muito, muito diferente do mundo cruel, duro e julgador que me rodeava. Olhava para nós e dizia: ‘Não têm de viver assim’.” Era uma época de movimentos de direitos civis e o padre Príncipe dera-lhe uma abertura para o mundo, teve um efeito poderoso sobre Scorsese. Pensou que estava destinado a seguir a vida sacerdotal, cedo descobriu que estava a tentar esconder-se da vida e do medo, apercebeu-se que queria estar com os outros, e então apareceu a paixão pelo cinema.

Há um outro momento decisivo na sua vida quando, em 1964, viu o filme Evangelho Segundo Mateus, de Pasolini, o filme era para ele num planeta diferente, o rosto de Jesus aparecia nada que tinha visto antes. “Os outros filmes sobre Jesus que tinha sido feitos até essa altura eram muito, muito piedosos, e sempre que Jesus aparece é o centro das atenções em todos os sentidos. É destacado do resto da humanidade na sua maneira de falar, na sua maneira de se mover, na sua perfeição física e no enquadramento, na encenação, na encenação, na iluminação. Mantém uma longa tradição de representar Jesus na pintura de forma absolutamente idealizada. Mas o que Pasolini fez foi tornar Jesus um ser humano, uma pessoa, alguém que se pudesse conhecer e com quem se pudesse falar.”

Respondendo a comentários sobre os seus filmes lembra que A Última Tentação de Cristo toca em toda a iconografia da igreja. “Apercebi-me que tinha de ir mais longe na história de Jesus quando fiz este filme. Havia uma parte de mim que se sentia compelida a lidar com a iconografia – tinha de criar a crucificação, tinha de criar a ressurreição de Lázaro, tinha de criar o sermão da montanha, mas acho que essa não é realmente a história de Jesus.” E, mais adiante: “Jesus abraça toda a humanidade, e Jesus é realmente toda a humanidade. Mostra-nos a todos o caminho, a forma de viver, de lidar com a raiva, a vingança e a retribuição, com o amor, o perdão, a redenção e tudo o mais que existe em nós e entre nós.”

E conta-nos o que o acicatou a filmar Assassinos da Lua das Flores. “Por volta do início do século XX, os Osage descobriram petróleo na sua reserva. Rapidamente, tornaram-se o povo mais rico do mundo. Depois, como é óbvio, os brancos especuladores e vigaristas e oportunistas e ladrões e assassinos desceram. Sentiram o cheiro do dinheiro fácil. Houve um esforço concentrado para matar praticamente toda a comunidade Osage em troca do dinheiro do petróleo, por todos os meios imagináveis: tiroteios, atentados à bomba, a bebidas alcoólicas e envenenamento lento.” Confessa que procura compreender e aceitar a violência que existe em nós, procura aprender sobre a vida interior dos outros observando o seu comportamento exterior. Volta a falar sobre a hecatombe que caiu sobre os Osage: “O reinado de terror dos Osage foi uma questão de poder e ganância. Foi muito fácil para Bill Hale e todos os outros assassinos desumanizarem os Osage, mas estes homens e mulheres não foram assassinados por serem Osage, foram assassinados pelo seu dinheiro. No final, os assassinos não escaparam com nada a não ser dinheiro. Os Osage têm a sua cultura extraordinária, agora em processo de renascimento e reconstrução.

E Scorsese despede-se deixando um argumento para um possível filme sobre Jesus, belíssimo texto a coroar esta longa conversa sobre a fé, medos e inspirações, sempre presentes no cinema de um dos maiores realizadores do nosso tempo. 


                                                                        Mário Beja Santos



 

1 comentário:

  1. Martin Scorsese foi seminarista mas depois descobriu o cinema e logo no seu primeiro filme "Boxcar Bertha" / "Uma Mulher da Rua" de 1972 temos esse final em que David Carradine é crucificado num vagão de mercadorias, depois foi "A Última Tentação de Cristo" baseado no livro de Nikos Kazantzakis, que tanta polímica levantou e que era profundamente religioso e por fim o fabuloso "Silêncio" baseado em Shûsako Endô, uma terceira película que forma uma trilogia religiosa perfeita do mestre Martin Scorsese.
    Em breve irei ler este livro de que fala porque me parece bem interessante para conhecermos ainda melhor o cineasta e ao escrever este comentário depois de ler o seu magnifico texto recordei-me do filme "Os Olhos da Ásia" do João Mário Grilo e de Philippe Sollers e do encontro do escritor francês com o Papa João Paulo II.
    Os melhores cumprimentos
    Muito boa tarde!

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