quinta-feira, 24 de julho de 2025

Portugal Diplomático.





Um grupo fantástico de antigos alunos – o Bruno Oliveira, a Margarida Melo e o grande Dario Vargas – lançou no ano passado uma revista não menos fantástica, o Portugal Diplomático. Gratuita e online, actualidade da diplomacia e das relações internacionais. Já vai na 15ª edição, e agradece – e merece – a sua visita.

 

                                                                                    António Araújo 



terça-feira, 22 de julho de 2025

Carta de Bruxelas.

 







                                                                          Fotografias de João Tiago Proença





sexta-feira, 11 de julho de 2025

Apresentação de Pedro Machete – Pessoa, Académico, Juiz.

 


 

  

Senhor Presidente do Tribunal Constitucional,

Senhora Ministra da Administração Interna,

Senhores Conselheiros,

Senhores Professores, 

Familiares e Amigos de Pedro Machete,

Senhoras e Senhores,

Muito bom dia a todos.

 

 

 

 

          Permitam-me, antes de mais, que explique ou tente explicar as razões da minha presença neste acto de lançamento do livro de amigos do Pedro Machete, o qual ocorre num espaço e num tempo carregados de simbolismo.

 

O espaço, a Universidade Católica, onde o Pedro fez todo o seu brilhante percurso académico –licenciatura, mestrado e doutoramento – e o tempo, o dia em que o Pedro faria, e faz, 60 anos – connosco.

 

          A minha presença nesta cerimónia, para mim muito honrosa e obviamente imerecida, carece de explicação, como disse. Não tenho credenciais académicas para discutir ou sequer apresentar muitos dos textos publicados neste livro, os meus interesses estão hoje situados em regiões muito diversas do Direito, ainda que por vezes em ligação com ele, e, importa dizê-lo, conheci o Pedro há muitos, muitos anos – pelas minhas contas, em 1984, sensivelmente –, mas nunca mantive com ele relações de especial proximidade ou intimidade.

 

          Em face disto, permitam-me que justifique a minha presença com base num acordo que fiz com os organizadores desta obra, em particular com o Miguel Nogueira de Brito, esse sim um grande e velho amigo do Pedro: sondado para escrever um texto para este livro, e não tendo capacidades para redigir um artigo jurídico à altura dos que figuram nesta obra, entendi que seria despropositado publicar algo sobre os temas que agora me interessam, sobretudo no domínio da História, tal seria o desfasamento em relação ao sentido geral deste livro.

 

É que, sendo o Pedro um homem de harmonias, que gostava de música clássica e que, segundo aqui nos é contado, chegou a cantar no Coro Bach da Igreja Evangélica Alemã de Lisboa, tendo toda a vida do Pedro decorrido sob o signo da harmonia, da harmonia da razão, entendi, e não me arrependo, que não faria sentido estragar essa harmonia com um texto dissonante e decerto estranho e anómalo neste conjunto de trabalhos.

 

          Por outro lado, e como disse, apesar de me considerar amigo do Pedro Machete, e de acreditar que esse sentimento era recíproco, um justificado pudor e respeito – e a personalidade do Pedro impunha respeito, amigável respeito, mesmo aos seus próximos – levaram-me a não querer, digamos, pôr-me «em bicos de pés» e prestar um testemunho pessoal como aqueles que o Pedro Ravara e o Johannes Laitenberger aqui apresentam, em dois textos extraordinários cuja leitura muito me comoveu (não fui, aliás, o único a ficar comovido por estes textos).

 

          Aceitei, pois, o «negócio» que o Miguel me propôs, que foi o de trocar a escrita de um texto pela apresentação pública da obra. E da apresentação da obra porque, de todos os presentes, penso ser eu o que, pela negativa, reúne mais características para o fazer: a garantia que, desde logo, não iria fazer um comentário jurídico a cada um dos textos ou ao seu conjunto; e a garantia de que não iria entrar em confidências íntimas ou pessoais sobre um amigo que jamais me as fez.

 

          Isto dito, o que ocorreu quando fui convocado para este acto, e quando soube que ele iria ter lugar, muito justamente, na Universidade Católica, o que me ocorreu, dizia, foi lembrar-me que conheci o Pedro Machete precisamente por causa da Universidade Católica, há mais de quarenta anos.

 

          Provavelmente, já o teria encontrado numa ou noutra ocasião, através, como sempre, do Miguel Nogueira de Brito, um discreto construtor e fazedor de pontes e cumplicidades. Mas foi na preparação da candidatura ao então chamado «ano zero» da Católica, em 1983, creio, quando frequentámos um curso de preparação na residência do n.º 300 do Campo Grande, que conheci e me aproximei do Pedro.

 

          Na altura, penso que por razões de logística familiar estival, a família Nogueira de Brito ainda estava de férias em São Martinho ou em Ponte de Lima, e o Miguel passou uma temporada em casa da família Machete, na Avenida do Brasil, ambos em preparação para a entrada no «ano zero» da Católica.

 

          Penso que não cometerei uma inconfidência se contar o que o Miguel, meu amigo desde os 4, 5 anos de idade, me descreveu sobre o que era partilhar uma jornada de trabalho com o Pedro.

 

O Pedro acordava, começava a estudar, estudava a manhã inteira, almoçava, almoçava abundantemente – e para o Miguel dizer isso, era, de facto, muito abundantemente… –, voltava a estudar a tarde inteira, hora a hora, horas a fio, sem falhas nem sobressaltos, sem pausas excessivas, sem conversas laterais. Estamos a falar de alguém que teria então uns 16 anos, e por aqui já se vê muito do que foi o Pedro ao longo da sua existência: uma maturidade muito precoce e uma férrea dedicação ao trabalho (e permitam-me outra inconfidência, mas que todos sabem: o que animava o Pedro nos seus últimos tempos de vida, além da fé e da proximidade dos familiares e amigos, o que o animava, dizia, era o trabalho, o estudo, a escrita – que manteve praticamente até morrer, o que não pode deixar de nos regozijar a todos. Poderemos e deveremos lamentar a partida precoce e prematura do Pedro Machete, a sua vita brevis, mas devemos pensar que, praticamente até ao fim, manteve intactas as excepcionais capacidades que lhe permitiam fazer algo que lhe trazia um enorme conforto intelectual e espiritual).        

  

          Além do trabalho em si mesmo, as descrições que o Miguel me fazia, algo abismado, do que eram os dias passados na residência da família Machete, evidenciam outra das grandes qualidades do Pedro, uma imensa e esmagadora capacidade de concentração.

 

          No plano intelectual e académico, mas também no plano pessoal, existencial, o Pedro destacou-se sempre – e, reparem, desde muito novo – por uma concentração absoluta, sem desvios nem atalhos, naquilo que para ele era o essencial: o trabalho, a família, a fé religiosa.

 

          O Pedro Machete nunca foi alguém que se evidenciasse pela retórica flamejante, por foguetórios de improviso, pelas «tiradas» verbais retumbantes, muito ao gosto latino, pela oratória de circunstância, pelos rasgos imprevistos.  O brilho que indiscutivelmente teve era de ouro verdadeiro, não de imitação ou de empréstimo; era profundo, estruturado, pensado, reflectido; em suma, era de uma extrema exigência para consigo mesmo e de uma implacável honestidade intelectual e, sobretudo, moral.      

 

          Se quiséssemos fazer uma «nuvem de palavras» para descrever o nosso Amigo, creio que todos concordarão nas seguintes:

 

- maturidade – desde muito novo, o Pedro foi uma pessoa excepcionalmente madura, pautado por uma ética da responsabilidade que o distinguia mesmo entre os seus pares e amigos;  

 

- coerência – o Pedro teve um percurso de vida de uma linearidade e de uma transparência absolutas, luminosas: licenciatura, mestrado, doutoramento, professor de Direito, passagem pela advocacia, juiz do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo. Não houve aqui desvios no caminho, nem acidentes de percurso. E, ao longo das diversas etapas que percorreu, nunca abandonou ou alienou os princípios com que foi educado. Nunca teve a avidez do dinheiro nem a tentação do poder. Com as suas qualidades, com o seu saber e com a sua entrega ao trabalho, com a sua rede de sociabilidades, o Pedro poderia ter sido um advogado de sucesso ou enveredado por uma carreira política (nesta, contudo, já não creio que tivesse tido tanto sucesso, dada a forma tão firme, por vezes inflexível, como se batia pelas suas convicções). Além desse percurso cristalino, admiravelmente coerente, o Pedro Machete sempre manteve o essencial da sua crença nas virtudes da social-democracia, da economia de mercado, de um Estado Social interventivo, da justiça social – um texto neste livro, de Gonçalo Almeida Ribeiro, ilustra bem até que ponto o Pedro tinha preocupações sociais muito claras e fundadas, mas, como sempre, prosseguia-as sem alarde, sem dar nas vistas.   

 

          Muitas outras palavras se poderiam acrescentar – a racionalidade, a solidez, a confiança, o rigor, a discrição, a honestidade.

 

Falarei apenas de mais uma: a lealdade. O Pedro era de uma lealdade absoluta nos seus compromissos. Todos os que se encontram nesta sala poderão testemunhá-lo: os colegas da universidade, os seus pares no Tribunal Constitucional. Uma vez dada a palavra, assumido um compromisso, o Pedro não voltava atrás nem tergiversava, não se adaptava às circunstâncias e aos auditórios. Era, em suma, das pessoas mais fiáveis e mais confiáveis que conheci na vida.  

 

E agora, pela negativa, no Pedro não encontrávamos a tirada fácil, a piada de salão, o improviso, o facilitismo, o deixa andar, o dolce fare niente, o adiamento, a ousadia e a audácia impensadas, a eloquência de circunstância.

 

 O mais espantoso é que a sua personalidade era una, se quisermos era um bloco maciço, inteiriço, compacto, mas não se impunha pela arrogância ou pela sobranceria, aliás não se impunha de todo nem a ninguém. O Pedro era como era sem fazer alarde disso, sem impor e sem nos impor a sua indiscutível grandeza intelectual e humana. E, como disse, as características que singularizavam o Pedro – a maturidade, a confiança, o rigor – atravessavam e projectavam-se sobre todos os planos da sua existência: o familiar e pessoal, o académico e profissional, o religioso e moral.

 

Ao contrário do que sucede a alguns, ou muitos, o Pedro não era rigoroso numa esfera e facilitista na outra, não mudava de registo consoante os lugares, as situações ou solicitações. Porque, no fundo, tudo o que era e fazia brotava da mesma e única personalidade e o Pedro, que tinha uma consciência aguda e muito nítida do que para ele era essencial, não fazia concessões a ninguém, nem sequer a ele próprio. 

 

No belíssimo texto com que abre este livro, o Pedro Ravara conta-nos um passeio em São Martinho, nos já muito idos de 1981, e descreve que, às tantas, o Pedro Machete e o Miguel Nogueira de Brito se envolveram numa discussão sobre a República de Platão.

 

O Pedro Machete, que nasceu e cresceu num meio de elite – de elite intelectual – e que sempre pertenceu à escassa elite intelectual do seu país, correspondeu certamente ao ideal platónico de um rei-filósofo virtuoso, que até ao fim manteve as convicções, os princípios e os valores que herdara dos seus pais e que cultivou pela vida fora: a crença na família, a fé em Deus, vivida criticamente, e a adesão à social-democracia fundadora do Partido Popular Democrático.

 

Num certo sentido, porém, o seu espaço e o seu tempo já desapareceram.

 

Quanto ao espaço, o Pedro não pertencia, digamos, ao universo mental do que se convenciona chamar «Portugal», sempre teve como referência uma realidade-outra, claramente não latina, mas também, note-se, não totalmente germânica.

 

Quanto ao tempo, o tempo de Pedro Machete era, nos seus alvores, o da burguesia meritocrática do Estado Novo, que começou a afastar-se do regime ainda antes do 25 de Abril e, por isso, pôde fornecer os quadros, os melhores quadros, do pessoal político da área democrática do pós-revolução. Foi nesse tempo que o Pedro foi formado, e o texto do Johannes mostra-nos, por exemplo, como acompanhou já com o maior interesse, por exemplo, a revisão constitucional de 1982.

 

Por razões familiares, o Pedro cresceu num meio em que a política foi vivida como muita intensidade, a intensidade do PREC, é certo, mas também ou sobretudo a intensidade da construção da democracia, de Sá Carneiro e da AD, da primeira revisão constitucional, dos alvores do Bloco Central, da adesão à Europa.

 

O Pedro acompanhou tudo isso de perto – e ao mais alto nível –, o que contribuiu certamente para a sua formação política, mas também para o seu amadurecimento precoce, digamos, na observação da vida e dos outros. É aliás sintomático que, tendo vivido a política de tão perto e tão intensamente desde muito novo, o Pedro nunca se tenha tentado seduzir por ela, talvez porque tenha pressentido que ela é, ou poderia ser, fonte de muitas desilusões, ou, o que é mais provável, porque não tenha querido desviar-se do rumo que traçou para si próprio: ser professor de Direito e jurisconsulto.  

 

Como referi, o tempo de Pedro Machete – como o nosso – já desapareceu em muitas das suas dimensões. A nossa incompreensão perante muito do que hoje está ocorrendo, o comportamento irracional dos eleitores, o facto de estes fazerem escolhas que gritantemente ferem os seus interesses, as mil explicações que ensaiamos para tal desconcerto – seja o peso das redes sociais, seja o declínio das classes médias, sejam os defeitos do «sistema», seja o solipsismo das elites ou a sua indiferença perante os deserdados de um Estado social em crise –, todas essas explicações radicam, no fundo, no nosso desfasamento em relação ao tempo em que vivemos, ou pelo menos a significativas parcelas dele.

 

Dir-se-á que ainda somos demasiado novos para sermos assaltados por sentimentos como esses, mais próprios da senectude e da idade maior, que na reprovação moral do presente, na perplexidade e no nojo ético que ele nos provoca, vai implicada uma indisfarçável nostalgia de uma ordem pretérita que, bem vistas as coisas, era mais imaginada do que real.

 

Na verdade, e se quisermos, não fomos nós que envelhecemos, foi o tempo que acelerou, e acelerou a uma velocidade tal que tornou velhas mesmo pessoas jovens e muito inteligentes, como o Gonçalo Almeida Ribeiro. Velhas no sentido de terem perdido as coordenadas de racionalidade e as grelhas com que analisavam o mundo, e que tinham uma lógica clara – se eu estudar, vou ter uma profissão bem remunerada e uma vida confortável; ou, se um partido ou um líder mentirem serão punidos pelos eleitores; ou deve acreditar-se na ciência e nos consensos científicos; ou, ainda, o reconhecimento público de A ou de B é um correlato e uma consequência do seu mérito e, por isso, a sua presença na esfera pública é uma garantia da credibilidade e da fiabilidade das suas opiniões.   

 

Foram estas as coordenadas com que Pedro construiu a sua vida, a sua carreira, e se posicionou no mundo: o valor do trabalho, a crença na democracia, o culto da verdade, da verdade política e da verdade científica, a convicção de que, numa sociedade justa, o mérito é premiado, a noção de que a informação é transmitida de cima para baixo, não de baixo para cima, e que as fontes de informação escrutinam os seus conteúdos através de diversos mecanismos públicos: na academia, através da revisão pelos pares; no jornalismo, através do espírito crítico de leitores também eles esclarecidos e informados.

 

Tudo isso, em larga medida, pertence ao passado. Daí que tenhamos grandes dificuldades em compreender o presente, ou uma sua parcela significativa, e, mais ainda, tenhamos grande dificuldade em discernir no presente como será o futuro. Resta-nos, pois, e tão-somente, acreditarmos e confiarmos no tempo, recordando aquele velho provérbio cigano que diz: «depois de amanhã, o amanhã será ontem.»

 

Compreende-se, assim, que o Pedro muitas vezes observasse a realidade com um olhar irónico, até mordaz, e que não tivesse contemplações para com a mediocridade e para com o facilitismo ou para a vertigem do mediatismo.  

 

Mantendo um elevado criticismo em relação ao evoluir do seu país – ou, se quisermos, ao evoluir do tempo no seu país e no mundo –, o Pedro teve, contudo, o bom senso de não cair em duas atitudes muito óbvias, muito clássicas e muito fáceis: a primeira seria a de cair numa espécie de ennui e desalento em relação à pátria; a segunda seria a de olhar com nostalgia para um passado que, convenhamos, verdadeiramente nunca existiu, e no qual o Pedro sempre teve a clarividência de não figurar como seu lugar de refúgio.

 

Até nisto, como vêem, ele foi exemplar. Ou, em poucas palavras, nesta sua passagem pelo mundo, mais efémera do que desejaríamos, mas ainda assim suficientemente longa e activa para deixar uma marca indelével em todos quantos o conheceram, nessa passagem pelo mundo, dizia, o Pedro Machete tornou-nos a todos um pouco melhores ou, pelo menos, um pouco menos maus.  

 

Hoje não teremos o Pedro-físico, e por isso o recordamos com saudades, mas temo-lo no que ele teve de essencial, o seu legado exemplar como ser humano, como académico e como cidadão.

 

Dirão que é fraco lenitivo para nos compensar pela sua perda, ainda que devamos perguntar-nos até que ponto o que lamentamos na morte do Pedro Machete não seja também, em larga medida, um pouco da nossa morte.

 

É inevitável falar disto, mesmo nesta ocasião, desde logo para exaltarmos a beleza, a beleza suave, de um grupo de amigos, sob a égide do Miguel Nogueira de Brito, do Rui Medeiros, do Gonçalo Almeida Ribeiro e do José António Teles Pereira ter-se-reunido para escrever um livro que, segundo se diz no proémio, não é um in memoriam, mas um liber amicorum. Um livro escrito na certeza de que, se o mesmo fosse feito para qualquer um de nós, o Pedro estaria na primeira linha para prestar o seu depoimento. Aliás, o primeiro dos testemunhos ou depoimentos deste livro é feito pelo próprio Pedro. Este é o seu depoimento, o seu testemunho de vida, um livro em que o Pedro está presente em cada linha, falando connosco através das palavras dos seus amigos. Assim, mais do que o livro dos amigos do Pedro Machete, este é, ou será, o livro do Pedro Machete e dos seus amigos.

 

A sua morte tão prematura, tão adversa à ordem natural das coisas, confrontou-nos todos, como é evidente – e de forma brutal –, com a nossa própria finitude, com a possibilidade de ocorrência de um imprevisto inexplicável que altera tão radicalmente aquilo que temos por natural e expectável e, sobretudo, aquilo que temos por justo. Ocorre-me à lembrança uma frase de Guicciardini, contemporâneo de Maquiavel, «é um facto notório que todos vamos morrer. E, no entanto, vivemos como se fôssemos viver para sempre», convicção que uma morte tão precoce como a do Pedro naturalmente abalou – e, por isso, tanto nos abalou.  

 

Contudo, e mesmo sendo é óbvio que tudo isto foi uma inversão das nossas expectativas, das expectativas quanto aquilo que é, ou deveria ser, o curso normal da vida e das coisas, deveremos ter presente que o Pedro, pese ter morrido novo, cumpriu e viu serem cumpridas as expectativas que tinha para a sua existência: o cumprimento do legado moral dos seus pais, ambos vivos; a presença da Margarida, companheira até ao fim; três filhas que cumprem e superam as expectativas de qualquer pai, mesmo de um pai exigente como o Pedro era; irmãos e cunhados, sobrinhos, dois genros e um neto, Pedro como ele.

 

No plano académico, fez um brilhantíssimo mestrado, a que assisti, e um não menos brilhante doutoramento, a que também assisti, com a Joana muito ansiosa, amoravelmente ansiosa, ante o resultado da prova, que só para ela poderia ter algum mistério... O Pedro deixou escritos marcantes, importando dizê-lo que alguns deles foram logo os relatórios que elaborou no mestrado, ainda hoje estudados e citados, a prova mais concludente da sua esmagadora densidade intelectual. Por fim, mas não por último, foi juiz e vice-presidente do Tribunal Constitucional por mérito absoluto, sem favores políticos ou sem pertencer a tribos ou côteries de espécie alguma e teve ainda a ventura de realizar o velho sonho de ser juiz do Supremo Tribunal Administrativo, após uma cerimónia em que muitos dos presentes compareceram. Além da família, lembro-me do Miguel, o velho amigo sempre presente, do Pedro Mendes Pinto e do Joaquim Pedro Cardoso da Costa, que nunca perde uma ocasião para estar com os outros e para lhes mostrar que há esperança na humanidade.

 

No Tribunal Constitucional, o Pedro Machete deixou a sua marca, a sua inolvidável marca, e não falo dos acórdãos que relatou ou das declarações de voto que subscreveu, aqui analisados por muitos dos seus pares: Maria Lúcia Amaral, João Caupers, Maria José Rangel de Mesquita, José João Abrantes, Gonçalo de Almeida Ribeiro, José António Teles Pereira, Cláudio Monteiro.  

 

A marca do Pedro no Tribunal, e peço que compreendam que não fale tanto da que deixou na Universidade Católica, que conheço pior, a marca que o Pedro Machete deixou no Tribunal Constitucional evidencia-se nisto, numa coisa tão singela: o índice deste livro. É assombroso e comovente ver que, ao lado dos académicos distintos que foram seus mestres ou colegas, e ao lado de dois dos seus grandes amigos, o Pedro Ravara e o Joahnnes Laitenberger – e reparem, o amigo de São Martinho e o amigo da Escola Alemã –, surjam tantos juízes ou ex-juízes do Palácio Ratton, alguns dos quais não hesitam sequer em contar um ou outro episódio de cariz mais pessoal, como sucede com o texto do Presidente João Caupers.

 

Esta obra tem isso de tão singular, que só alguém como o Pedro poderia mobilizar: a junção singela de um grupo de amigos, uma reunião sem alardes, sem floreados, exactamente como o Pedro gostaria que fosse. Não é, e isso é esclarecido logo no início, um clássico livro de homenagem, com textos de muita gente que, mais do que homenagear o homenageado, quer tantas vezes homenagear-se a ela própria. É um livro de amigos, que, por acaso, ou não por acaso, também mantêm entre si, na esmagadora maioria dos casos, laços de amizade. Ou seja, não é apenas um livro dos amigos do Pedro Machete, é também um livro de pessoas que, em muitos, muitos casos, são amigas ou muito próximas, seja porque tiveram percursos comuns, seja porque partilham afinidades electivas, seja enfim porque sim, e isso basta. O facto de os amigos do Pedro Machete serem também amigos uns dos outros não será decerto uma coincidência – e o facto de terem querido celebrar a sua memória não pode deixar de ser visto como prova do seu carácter e de um certo modo de ver o mundo.   

 

Haverá outras esferas aqui não presentes, nomeadamente a familiar e a religiosa, mas, até por isso, porque elas respeitam a um núcleo mais pessoal e íntimo, que o Pedro sempre fez questão de preservar, compreende-s0e que sejam reservadas para outros lugares.  O livro, aliás, é muito o retrato dos seus organizadores, quer na forma discreta e despretensiosa com que se apresenta, quer na opção, que é muito típica destes nossos amigos, de falarem através do silêncio.

 

Ao invés de um prefácio evocativo, sentimental, o livro abre com três parágrafos brevíssimos, que dizem tudo. A evocação está pressuposta nos textos que seguem, a dor da perda nem sequer necessita ser explicitada, tudo é, enfim, do domínio da reserva, da contenção, exactamente como o Pedro gostaria que fosse.

 

Pedindo desculpas por o tempo que vos estou a tomar, não resisto, quase a concluir, a mencionar um breve e extraordinário ensaio há pouco publicado por Maria João Mayer Branco, intitulado Expectatio e dedicado a uma imagem escultórica belíssima, a Virgem da Expectação, atribuída a Mestre Pero e hoje patente no Museu Nacional de Arte Antiga.

 

Poderá parecer estranho, e talvez o seja, falar da expectação de Maria a propósito de um amigo falecido jovem, na força da idade, que em seu redor ainda congregava tantas e tão merecidas esperanças e expectações.

 

Mas talvez por essa via se possa chegar ao ponto que eu queria alcançar, o fio invisível que une o Pedro-avô e o Pedro-neto.

 

O livro de Maria João Mayer Branco começa com uma frase cortante, porventura terrível, de Jorge de Sena, «não foi para morrer que nós nascemos.»

 

Mas, depois, lá pelo meio, cita uma frase de Hannah Arendt que, partindo da mesmíssima ideia de Sena, dá-lhe um outro significado, completamente distinto. Escreveu Hannah Arendt, na Vida do Espírito, «embora devam morrer, os homens não nascem para morrer, mas para começar.»

 

É curiosíssimo que duas pessoas que muito provavelmente nunca se conheceram, mas que escreveram mais ou menos em simultâneo, tenham partido de uma mesma ideia – não foi para morrer que nós nascemos –, mas acabem por dar-lhe uma tonalidade tão diferente. No caso de Sena, a desesperança absoluta; no de Hannah Arendt, o inciso luminoso, radioso, de que toda a vida tem um fim, decerto, mas que antes de o ter tem um começo.

 

Na vida do Pedro houve vários começos e recomeços, e muitos princípios concretizados – o doutoramento, o Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal Administrativo. Nenhum, porém, foi tão grande como o das suas filhas e o do seu neto.

 

É que, como escreveu também Hannah Arendt, «o milagre que salva o mundo é o facto do nascimento e a possibilidade do nascimento, pois só eles, só o poder de começar, permitem “fé e esperança” nos assuntos humanos.»

 

E acrescenta Hannah Arendt, judia, que várias vezes se proclamou agnóstica: «Esta fé e esta esperança no mundo talvez nunca tenham sido expressas de modo tão sucinto e glorioso como nas breves palavras com as quais os Evangelhos anunciaram a "boa nova": Nasceu uma criança entre nós

 

Ou seja, e em suma, no Pedro-neto celebramos um novo começo, que o Pedro-avô ainda viu começado.

 

E a propósito, ou despropósito, de esperanças e expectações, dos começos que toda a vida encerra, gostaria de recordar-vos, a terminar, o sermão que o Padre António Vieira dedicou ao culto da Senhora do Ó.

 

Não irei maçar-vos com as subtilezas argumentativas do Padre António Vieira, nem com o poder refulgente da sua oratória barroca, que o livro de Maria João Mayer Branco tão bem explica.

 

Retenhamos apenas uma frase de Vieira, que diz: «a presença, para ser presença, há-de ter alguma coisa de ausência.»

 

Com este livro, os amigos de Pedro Machete tornaram presente o ausente, um ausente que continua e continuará presente – enquanto nós formos e o quisermos.

 

Muito obrigado.   

           

                                                    António Araújo




quarta-feira, 9 de julho de 2025

Se o público não pode vir ao museu, o museu entra em casa do público.

 




 

          O ensaio de Emília Ferreira, historiadora de arte entre dezembro de 2017 e fevereiro de 2025, dirigiu o Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), é uma história de assertividade em tempos de Covid-19 e confinamento, o país em casa, mas este museu manteve-se online, disponibilizando conteúdos numa nova e bem-sucedida estratégia de coligação. Assim nasceu Quando o museu fechou, Fundação Francisco Manuel dos Santos, maio 2025.

          Não entendo muito bem porque nos mantemos silenciosos sem contar as nossas histórias em tempos tão calamitosos como os que vivemos em 2020 e 2021. Houve instituições que ofereceram uma inusitada companhia a quem estava confinado. Guardo o remorso de ainda não ter enviado uma carta de gratidão para o Metropolitan Opera House, de Nova Iorque, todas as noites tínhamos direito a um espetáculo gratuito do soberbo arquivo desta lendária sala de espetáculos nos Estados Unidos, récitas de sonho, uma deslumbrante companhia para quem não devia sair de casa; e outras famosas casas de ópera também abriram os seus tesouros ao público, não faltou solidariedade, é bom não esquecer como se reinventaram laços nesse tenebroso período.

          O que nos conta Emília Ferreira? Passado o choque inicial, uma equipa pôs-se em movimento, organizaram-se conteúdos, deram-se aulas de desenho através do Youtube, deram-se informações sobre obras e artistas da coleção do MNAC, entre outras iniciativas. “Passar do real para o digital não foi um caminho fácil ou óbvio.” E quando se lançaram iniciativas ninguém sabia o tempo do confinamento nem muito menos que iríamos atravessar dois confinamentos. Naquele ano de 2020, inspirados numa das exposições, intitulada Sarah Affonso: Os Dias das Pequenas Coisas criou-se um diário online com o nome de Diário das Pequenas Coisas; apareceu também o Diário de Dilemas Quotidianos. E assim arrancaram formas de convívio num total de 137 dias. A autora dá-nos uma narrativa entusiasta do que se pôs em marcha, o que pedia o serviço educativo, como se utilizou a página do Facebook, como se foi adaptando a linguagem, a opção de conteúdos. É nos apresentado o MNAC, nascido em 1911, ficou instalado numa parte do antigo Convento de São Francisco da Cidade, e começou-se a falar das obras da coleção, das histórias que acompanham as obras, criou-se mesmo um glossário que era semanalmente publicado, em que se esclarecia o que em arte quer dizer quando falamos de abstração, assemblagem, instalação, performance, ready-made ou suporte, fizeram-se pequenos filmes, preparou-se a interação, mostrou-se o interior e o funcionamento do MNAC.

          A missão parecia dada por acabada com o fim do primeiro confinamento, o de 2020, depois anunciou-se o segundo confinamento, em janeiro do ano seguinte, o número de seguidores online não parava de crescer, houve que desdobrar as atividades, os projetos. Lançou-se o desafio de um programa para a academia, via Youtube, um ciclo de conferências, rubricas com entrevistas de ativistas, os seus depoimentos, contou-se a história do bairro, o Chiado cultural e elegante, o Facebook ia possibilitando a publicação e a antecipada comunicação dos conteúdos. Foram enviados convites para as revistas, houve grande adesão, de 1 de fevereiro até ao outono de 2021 publicaram-se 180 depoimentos de artistas contemporâneos. Se havia o Fungagá da Bicharada, programa para crianças desenvolvido por Júlio Isidro, em sua homenagem criou-se o Fungagá das Artes, concebido como uma programação específica pensada para crianças e jovens, ofereciam-se vários jogos e cursos de desenho. O curso foi coordenado por Nelson Ferreira, resultou em cheio, o auditório crescia, contou-se a história de uma das mais famosas pinturas portuguesas, o Grupo do Leão, pintado por Columbano Bordalo Pinheiro. “Um dos propósitos de trabalhar o Grupo do Leão fora o de abordar o tema da relação. Os amigos à mesa, trocando ideias e gizando planos. Sendo essa uma das coisas simples que nos estava então vedada, o assunto tornava-se aliciante por si mesmo. Dar informações sobre o artista e quem o acompanhava nessa pintura apresentou o autor e os seus amigos, que frequentavam a cervejaria Leão d’Ouro, para a qual a pintura foi originalmente criada. À mesa do Leão d’Ouro, Columbano representara o seu clube de amigos pintores. Eram todos mais ou menos da mesma idade. Mas e os nossos seguidores? Quem representariam? Lembrámos que, dada a liberdade do desenho, podiam convidar para essa mesa toda a gente, independentemente da idade, género, nacionalidade, profissão, cor de pele, religião, etc. Depois pedimos que enviassem os desenhos para o MNAC, porque queríamos preparar-lhes uma surpresa que já teria lugar no museu.”

          Um dia, findo o segundo confinamento, na reabertura do museu criou-se uma exposição com os trabalhos inspirados no Grupo do Leão. Muitos dos miúdos que apresentaram os seus desenhos queriam conhecer o Nelson, adoraram falar com ele, afinal no online pode haver um milagre de relação humana.

          Há muitas razões para ler esta obra de empenho e dádiva profissional, e tomar nota das conclusões da autora. Digitalizar não basta, diz ela. É preciso fazer muito mais no sentido do estudo, da divulgação das coleções, da educação e fruição pública. O Serviço Educativo de um museu é o eixo da comunicação científica da instituição para o exterior. Incompreensivelmente, em Portugal continua a sofrer de desinvestimento. O mesmo se aplica à comunicação, sendo necessária e urgente a formação de equipas com competências técnicas específicas. No MNAC, o que ficou daquele tempo? Nas redes sociais, uma linguagem direta e próxima. Isso não voltou atrás. E ficamos felizes quando alguém nos escreve para dizer que gosta de nos seguir no Facebook. Que mais nos ficou? O desejo de maior proficiência e abrangência.

          Os números falam por si, passou-se de 5 mil para 130 mil seguidores, chegou-se a pessoas em todo o mundo que se puseram a desenhar. Porquê contar esta história? Com a poeira assente, feitos os balanços com a cabeça fria, o que aqui se conta é que a presença online de um museu, mesmo decorrente de uma situação verdadeiramente excecional, pode contribuir para reinventar metodologias, linguagens e recursos, alargar públicos, aproximar os artistas do público, tornar a visita aos museus, às suas coleções e exposições, um acontecimento para as nossas vidas, sabendo de antemão que quer pelo online quer pela digressão pelo museu ficamos melhores, mais livres.

 

                                                                        Mário Beja Santos


quarta-feira, 2 de julho de 2025

A terna viagem por vários Tejos, não faltam avieiros, campinos, fragateiros e Nossa Senhora.

 



 

Tejo, Um cruzeiro religioso e cultural, por Ana da Cunha, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2025, desvenda-nos uma assombrosa viagem que ocorre todos os anos em maio, Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo vem em cruzeiro, percorre 325 quilómetros e o leitor vai de surpresa em surpresa percorrer comunidades ribeirinhas, um universo onde pairam os saberes e a cultura dos pescadores avieiros, tudo começa num interior raiano, ainda espanhol, a última etapa será Porte Brandão, Paço de Arcos e Oeiras, ouviremos depoimentos tocantes de familiares avieiros e nascidos dessa cultura palafítica, não faltarão belas paisagens que atestam a diversidade do Tejo, boa comezaina, danças e cantares, e, de um modo geral, Nossa Senhora é acolhida em triunfo e com carinho. Atenda-se ao que a autora nos procura elucidar: “O Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo tem por missão preservar a cultura dos pescadores vindos da Praia da Vieira. A viagem, que percorre 325 quilómetros pelo Tejo, surgiu em 2012, no âmbito da candidatura da cultura avieira a património nacional e da UNESCO. O cruzeiro não passa só pela cultura avieira. ‘Unir margens’ é o mote da viagem, que procura contribuir para consolidar a identidade das culturas ribeirinhas do Tejo, levando-lhes uma imagem que simboliza essa união entre povos e margens: a Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo, concebida a partir dos contributos das comunidades avieiras.”

A leitura que acompanha do princípio ao fim toda esta viagem é o romance Avieiros, de Alves Redol, para conhecer melhor esta cultura viveu na aldeia avieira da Palhota. E começa a viagem, vai-se de comboio em direção a Castelo Branco, o destino é Vila Velha de Ródão, a autora tem à sua espera João Serrano, ele é um dos voluntários que todos os anos põe de pé este cruzeiro religioso, Serrano constituiu a Confraria Ibérica do Tejo, foi aqui que se iniciou a luta pela elevação da cultura avieira a património nacional. Percorre-se a localidade, é obrigatória a visita ao Castelo de Ródão, a viagem prossegue para o Rosmaninhal, uma das freguesias de Idanha-a-Nova, infelizmente hoje localidade com pouca gente, dos 437 habitantes que restam, 248 têm mais de 65 anos. Faz-se a visita à imagem de Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo, coroada de flores e segurando um terço na mão.

Na manhã seguinte, a imagem embarca na grande viagem, o destino é Alcántara e Santiago de Alcántara, no Parque Natural del Tajo Internacional, imagem descarregada para uma pequena embarcação, ouvem-se exclamações, dizem que a Santa é muito bonita. No cais de Sever-Cedillo, que liga o município de Nisa ao município de Cedillo, a comitiva é recebida com cânticos “Miraculosa Rainha dos Céus”, não há fronteiras que separem os povos. Nova fase da viagem, cais de Alvega, uma povoação do concelho de Abrantes, a Santa vai ser recebida com grande alegria, a banda filarmónica recebe-a com tambores, tubas, saxofones e clarinetes. O próximo destino: Mouriscas, vão em bateiras, há uma despedida em que a comunidade acena com lenços brancos. Chegou a hora de falar da boa comida, o comer será acompanhado de vinho tinto, a sobremesa também obedece às tradições: a tigelada, a palha de Abrantes, o bolo lêvedo e as passas de figo fritas. Vêm a propósito falar de histórias de amor e avieiros, chega-se ao Travessão do Pego, sai-se da bateira, a imagem da Senhora é içada pela grua, na Barca do Pego assiste-se a uma missa e depois à pândega, entra em ação o rancho folclórico da casa do Pego.

No dia seguinte os excursionistas encontram-se em Rio de Moinhos, o destino é o Tramagal, há muitos testemunhos de quem aqui nasceu e viveu, saudades não faltam. Do Tramagal vai-se a Constância, a autora percorre a povoação, sente-se que está feliz, e depois a bateira encaminha-se para o Castelo de Almourol. Agora sim, entra-se em território de avieiros, é o Tejo dos mouchões e das culturas agrícolas, é o Tejo de Lezíria, começa-se pelo Porto das Mulheres, volta-se a falar de Avieiros, de Alves Redol, conta-se a história desta gente oriunda da Praia da Vieira de Leiria, os avieiros construíram barracas em estacas, no Porto das Mulheres havia aldeia avieira, já desapareceu. Temos agora uma viagem atribulada até à Azinhaga, há receção pelo rancho folclórico nesta terra de avieiros, cita-se mesmo José Saramago, que aqui nasceu: “À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterana nada ficou, salvo que lhe passa ao lado (imagino que desde a criação do mundo) e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes.”

No dia seguinte chega-se à praia fluvial do Patacão, a comitiva tem direito a um lanche, fala-se demoradamente das aldeias palafíticas fluviais e das origens da aldeia do Patacão. E a viagem prossegue até ao Vale da Figueira, para-se em Porto Carrapiteiro, nova referência a uma história de amor, desta vez entre Xico, da Barreira da Bica, e Olinda, do Patacão, pouco resta dos avieiros nestas localidades. E depois todos se encaminham para a Ribeira de Santarém, aqui houve a aldeia avieira das Caneiras. A próxima paragem será no Porto dos Cucos, uma antiga aldeia avieira na freguesia de Benfica do Ribatejo, no concelho de Almeirim, nova receção festiva. E na manhã seguinte o novo destino é Porto do Sabugueiro, na freguesia de Muge, em Salvaterra de Magos, mais lembranças históricas destes locais, segue-se Porto de Muge, Valada do Ribatejo e Escaroupim, mais bailarico, em tempos daqui se partia em fragatas, transportando mercadorias para Lisboa. O Escaroupim está hoje gentrificado, a bateira para por momentos em frente da Palhota, na freguesia da Valada, a comunidade junta-se em peso para receber a Santa.

A viagem agora encaminha-se para o concelho da Azambuja, para o Porto da Palha, são citadas mais referências à presença avieira. E depois a viagem prossegue para Vila Franca de Xira. “No dia seguinte à procissão na Azambuja, chego ao Esteiro do Nogueira, um antigo bairro avieiro em Vila Franca de Xira. Vejo os barcos a rasgarem o Tejo e a população a festejar. É uma massa de gente: as mulheres com os lenços na cabeça, os homens com os barretes e as redes de pesca, os pés descalços sobre a calçada na rua.” Estamos agora no cais de Alhandra: “A Santa segue do cais, passando pelos anzóis e pelas embarcações dos pescadores que ainda resistem nesta antiga freguesia de Vila Franca de Xira, até chegar à Rua dos Avieiros, onde a imagem fica a repousar num altar junto à associação de pescadores Rios e Marés.” Lembra-se Soeiro Pereira Gomes, o nadador Batista Pereira e o médico Sousa Martins. Parte-se depois para Póvoa de Santa Iria, daqui para o cais do Trancão (Sacavém), abandona-se o território dos avieiros e entra-se no Tejo dos fragateiros, Sarilhos Pequenos, e depois a Moita, o Barreiro e o Seixal, a Senhora terá direitos a passar por Alfama. E chega-se ao último dia do cruzeiro, vai-se de Porto Brandão até Oeiras.

Fica-se com uma vontade enorme de apanhar o comboio na Gare do Oriente e seguir para Vila Velha de Ródão, Ana da Cunha saliva todo e qualquer viajante para este cruzeiro sem rival onde se unem povos de dois países e se visitam porções tão diversificadas do Tejo e suas gentes, apetece viajar e partilhar a alegria desta espantosa cultura avieira, que continua a marcar as novas gerações.

Uma belíssima reportagem.

 

            Mário Beja Santos

 


As Brigadas Revolucionárias (BR) e o Partido Revolucionário do Proletariado (PRP) nas memórias do seu principal artífice.

 


 

Carlos Antunes, Memórias de um Revolucionário, por Isabel Lindim, Oficina do Livro, 2024, dá-nos a oportunidade de ouvir alguém que entrou na clandestinidade aos 21 anos, que militou no Partido Comunista Português, esteve muito ativo na Roménia e em Paris, lançou mão de métodos que deixaram o Estado Novo em transe, quando passou a destruir equipamento fundamental destinado à guerra colonial. Como observa a autora, o texto resultou da transcrição de duas entrevistas, que decorreram em 2011, uma, outra da realizadora Margarida Gil. É um livro de memórias, sempre escrito na primeira pessoa, sempre mantendo a oralidade de quem possuía o dom de saber contar com uma presença cenográfica única, cativando na conversação com um poder quase mágico, e daí a autora poder dizer que quase se limitou a fazer ajustes ao conteúdo da gravação.

Tudo vai começar numa infância rural, recorda a sua vida na aldeia, na Serra da Cabreira, Vieira do Minho, dá-nos o seu quadro familiar, a sua vida no Porto, o seu ingresso no Partido Comunista, o seu primeiro casamento e o trabalho partidário. “Ganhava o meu salário e tinha uma vida dupla. Controlava a organização clandestina no Minho e para isso tinha de recrutar, tinha de reunir, tinha de organizar as pessoas para estarem atentas às reivindicações dos trabalhadores, promover a unidade dos trabalhadores em cada empresa, fazer crescer as células, fazer novos recrutamentos.” E não esquece o seu amor ao teatro e a admiração que nutria por Óscar Lopes.

Discorre sobre a vida clandestina, há episódios de um humor faiscante, em Lisboa trabalha em apoio ao secretariado do partido, este num dia é preso num só golpe, foge com a mulher e os filhos, encarregam-no de fazer uma organização de fronteira, deixa-nos uma descrição admirável do que é o seu trabalho numa zona de contrabando. “Os contrabandistas têm uma ordem de solidariedade que é impenetrável. Quando montei o meu primeiro aparelho de fronteira foi ainda para o PC. Fui a primeira pessoa a passar no sítio onde o Cunhal passou a seguir. Para testar o aparelho. Depois com as Brigadas criei outro. O chefe dos contrabandistas de Montalegre é ainda hoje um homem adorado. Morreu. Era um militante extraordinário pela intuição, pela capacidade de organização.” Pensa que o mandaram para a Roménia porque ali havia necessidade de quadros e em nenhumas condições podia ser preso. “Para o Cunhal poder andar com a minha identidade em segurança. O meu nome, a minha carta de condução. Quando cheguei à Roménia, usava o pseudónimo de Sérgio Gomes. O Cunhal é que se chamava Carlos Antunes nessa altura.” A experiência romena não lhe foi feliz, segue então para Paris, não esquece a comoção que teve quando foi ver a Comédie Française.

Começam as suas andanças como clandestino pela Europa, irá visitar a União Soviética, entra num estado de desilusão ideológica, descobre que aquela vida não era o seu ideal, ficará com muito má impressão de gente que vinha do movimento estudantil português, sublinha as contradições da linha partidária. E assim chegamos à invasão da Checoslováquia, aprofunda-se o fosso ideológico, havia já a pressão na base do PC para a necessidade de fazer a ação armada.

Cunhal criou um grupo que ficará conhecido por Pró-Cubanos. “Este grupo era comandado por um indivíduo que tinha sido Comando na guerra colonial na Guiné. Segundo parece, era um fulano que matava depressa e bem e, portanto, tinha criado alguma aura de capacidade junto dos militantes, parecia que a guerrilha era uma coisa especial. Mas não era, como nós provámos à sociedade. Era uma questão de militância e de aprender. Se os outros sabem disparar, se os militares sabem disparar e sabem organizar coisas, porque é que nós não havemos de saber?”

Ocorre então a rutura com o PC, conta-nos a sua vida em Argel, tem aqui comentários e memoráveis. E regressa a Portugal, cria com a Isabel do Carmo as Brigadas Revolucionárias, descreve o debate que se instalou sobre a luta armada, refere a LUAR e a ARA, e como se chegou à definição do que deviam ser as ações armadas.

Entramos agora no mundo das bombas, descreve a primeira ação das Brigadas em 7 de novembro de 1971, na Fonte da Telha, seguir-se-ão ações de sabotagem, ações hilariantes, como largar um porco no Rossio vestido de Almirante Américo Tomás. Lemos as suas memórias e sente-se que ele estava feliz com a sua capacidade de disfarce. “Passei a usar uns óculos que eu dizia que era tipo empregado bancário. Uns oculozinhos assim certinhos. Passei a estar um bocadinho mais louro. Eu nunca cortei o cabelo, nunca fui ao barbeiro nem hoje vou. Eu sempre soube cortar o meu cabelo sozinho. Passei a vestir uma roupinha escura, limpa, elegante, mas que não dava nas vistas. Passei a ser um senhor qualquer igual a toda a gente.” É clandestino e falsário: “Os passaportes quem os arranjava era eu. Era autossuficiente a maquilhar passaportes, mas quando estava todo direitinho, todo bem feito como se tivesse saído do Governo Civil, eu deitava-lhe um bocado de água ou até lhe fazia chichi. Aquilo ficava um bocado esborratado, mas eu queria um pretexto para que o polícia que me encontrasse na fronteira me interrogasse porque é que o passaporte estava assim.” Ao que ele responderia que teria sido um miúdo que tinha feito chichi no passaporte.

Recorda o escritor Nuno Bragança, a aliança que fez com os católicos, Frei Bento Domingues, a Capela do Rato, o Boletim Anti-Colonial. A maneira como ele conta uma história de uma tentativa de ação no Santuário de Fátima é um verdadeiro espanto. E seguem-se as ações bombistas em objetivos militares, destroem-se camiões, sabota-se a Marconi em Sesimbra e Palmela, sabota-se nos serviços de recrutamento militar, no Quartel-General do Porto, assaltam-se bancos, isto até 19 de abril de 1974. É neste ínterim que Carlos Antunes rememora todo o processo da clandestinidade, onde e como habitava, as senhas e encontros, não deixa de mencionar a prisão após o 25 de Abril e despede-se assim:

“No Portugal daquele tempo as pessoas tinham muito medo da PIDE e estavam convencidas de que era uma organização impressionante na sua capacidade de deteção das coisas. Nalguns aspetos era. Para nós o ser capaz não era tanto a importância ou o número de ações que fôssemos capazes de fazer. Era a continuidade na ação. Portanto, não ser preso e continuar a ação era a coisa mais terrível que podíamos fazer ao inimigo e era também aquilo que mais nos podia projetar na consciência dos trabalhadores, no sentido de eles terem autoconfiança para eles se disponibilizarem a correr riscos. Não era infalível uma pessoa ser presa.

E tivemos razão.

Não corríamos riscos desnecessários, éramos contidos, fazíamos as coisas com calma. Por vezes, sobretudo os exilados, queriam que nós andássemos de pressa demais. Queriam que nós fizéssemos coisas extraordinárias e nós dizíamos: ‘Não temos condições para as fazer e não as fazemos!’. O importante era manter essa cadência, esta capacidade de resistir e dar tempo às pessoas de perceberem que alguma coisa estava a nascer.”.

Um belo testemunho sobre as implicações das Brigadas Revolucionárias no esfarelamento da ideia que o regime omnivigilante da PIDE tudo podia sufocar e impedir um país livre.

 

                                                                    Mário Beja Santos