Senhor
Presidente do Tribunal Constitucional,
Senhora
Ministra da Administração Interna,
Senhores
Conselheiros,
Senhores
Professores,
Familiares e Amigos de Pedro Machete,
Senhoras e Senhores,
Muito
bom dia a todos.
Permitam-me, antes de mais, que
explique ou tente explicar as razões da minha presença neste acto de lançamento
do livro de amigos do Pedro Machete, o qual ocorre num espaço e num tempo
carregados de simbolismo.
O
espaço, a Universidade Católica, onde o Pedro fez todo o seu brilhante percurso
académico –licenciatura, mestrado e doutoramento – e o tempo, o dia em que o
Pedro faria, e faz, 60 anos – connosco.
A minha presença nesta cerimónia, para
mim muito honrosa e obviamente imerecida, carece de explicação, como disse. Não
tenho credenciais académicas para discutir ou sequer apresentar muitos dos
textos publicados neste livro, os meus interesses estão hoje situados em
regiões muito diversas do Direito, ainda que por vezes em ligação com ele, e,
importa dizê-lo, conheci o Pedro há muitos, muitos anos – pelas minhas contas,
em 1984, sensivelmente –, mas nunca mantive com ele relações de especial
proximidade ou intimidade.
Em face disto, permitam-me que
justifique a minha presença com base num acordo que fiz com os organizadores
desta obra, em particular com o Miguel Nogueira de Brito, esse sim um grande e
velho amigo do Pedro: sondado para escrever um texto para este livro, e não
tendo capacidades para redigir um artigo jurídico à altura dos que figuram
nesta obra, entendi que seria despropositado publicar algo sobre os temas que
agora me interessam, sobretudo no domínio da História, tal seria o desfasamento
em relação ao sentido geral deste livro.
É
que, sendo o Pedro um homem de harmonias, que gostava de música clássica e que,
segundo aqui nos é contado, chegou a cantar no Coro Bach da Igreja Evangélica
Alemã de Lisboa, tendo toda a vida do Pedro decorrido sob o signo da harmonia, da
harmonia da razão, entendi, e não me arrependo, que não faria sentido
estragar essa harmonia com um texto dissonante e decerto estranho e anómalo
neste conjunto de trabalhos.
Por outro lado, e como disse, apesar
de me considerar amigo do Pedro Machete, e de acreditar que esse sentimento era
recíproco, um justificado pudor e respeito – e a personalidade do Pedro impunha
respeito, amigável respeito, mesmo aos seus próximos – levaram-me a não querer,
digamos, pôr-me «em bicos de pés» e prestar um testemunho pessoal como aqueles
que o Pedro Ravara e o Johannes Laitenberger aqui apresentam, em dois textos extraordinários
cuja leitura muito me comoveu (não fui, aliás, o único a ficar comovido por
estes textos).
Aceitei, pois, o «negócio» que o
Miguel me propôs, que foi o de trocar a escrita de um texto pela apresentação pública
da obra. E da apresentação da obra porque, de todos os presentes, penso ser eu o
que, pela negativa, reúne mais características para o fazer: a garantia que,
desde logo, não iria fazer um comentário jurídico a cada um dos textos ou ao
seu conjunto; e a garantia de que não iria entrar em confidências íntimas ou
pessoais sobre um amigo que jamais me as fez.
Isto dito, o que ocorreu quando fui
convocado para este acto, e quando soube que ele iria ter lugar, muito
justamente, na Universidade Católica, o que me ocorreu, dizia, foi lembrar-me
que conheci o Pedro Machete precisamente por causa da Universidade Católica, há
mais de quarenta anos.
Provavelmente, já o teria encontrado
numa ou noutra ocasião, através, como sempre, do Miguel Nogueira de Brito, um
discreto construtor e fazedor de pontes e cumplicidades. Mas foi na preparação
da candidatura ao então chamado «ano zero» da Católica, em 1983, creio, quando
frequentámos um curso de preparação na residência do n.º 300 do Campo Grande,
que conheci e me aproximei do Pedro.
Na altura, penso que por razões de
logística familiar estival, a família Nogueira de Brito ainda estava de férias em São
Martinho ou em Ponte de Lima, e o Miguel passou uma temporada em casa da
família Machete, na Avenida do Brasil, ambos em preparação para a entrada no
«ano zero» da Católica.
Penso que não cometerei uma
inconfidência se contar o que o Miguel, meu amigo desde os 4, 5 anos de idade,
me descreveu sobre o que era partilhar uma jornada de trabalho com o Pedro.
O
Pedro acordava, começava a estudar, estudava a manhã inteira, almoçava,
almoçava abundantemente – e para o Miguel dizer isso, era, de facto, muito
abundantemente… –, voltava a estudar a tarde inteira, hora a hora, horas a fio,
sem falhas nem sobressaltos, sem pausas excessivas, sem conversas laterais.
Estamos a falar de alguém que teria então uns 16 anos, e por aqui já se vê
muito do que foi o Pedro ao longo da sua existência: uma maturidade muito
precoce e uma férrea dedicação ao trabalho (e permitam-me outra inconfidência,
mas que todos sabem: o que animava o Pedro nos seus últimos tempos de vida,
além da fé e da proximidade dos familiares e amigos, o que o animava, dizia,
era o trabalho, o estudo, a escrita – que manteve praticamente até morrer, o
que não pode deixar de nos regozijar a todos. Poderemos e deveremos lamentar a
partida precoce e prematura do Pedro Machete, a sua vita brevis, mas
devemos pensar que, praticamente até ao fim, manteve intactas as excepcionais capacidades
que lhe permitiam fazer algo que lhe trazia um enorme conforto intelectual e
espiritual).
Além do trabalho em si mesmo, as
descrições que o Miguel me fazia, algo abismado, do que eram os dias passados
na residência da família Machete, evidenciam outra das grandes qualidades do
Pedro, uma imensa e esmagadora capacidade de concentração.
No plano intelectual e académico, mas
também no plano pessoal, existencial, o Pedro destacou-se sempre – e, reparem,
desde muito novo – por uma concentração absoluta, sem desvios nem atalhos,
naquilo que para ele era o essencial: o trabalho, a família, a fé religiosa.
O Pedro Machete nunca foi alguém que
se evidenciasse pela retórica flamejante, por foguetórios de improviso, pelas
«tiradas» verbais retumbantes, muito ao gosto latino, pela oratória de
circunstância, pelos rasgos imprevistos. O brilho que indiscutivelmente teve era de
ouro verdadeiro, não de imitação ou de empréstimo; era profundo, estruturado, pensado,
reflectido; em suma, era de uma extrema exigência para consigo mesmo e de uma
implacável honestidade intelectual e, sobretudo, moral.
Se
quiséssemos fazer uma «nuvem de palavras» para descrever o nosso Amigo, creio
que todos concordarão nas seguintes:
- maturidade – desde muito novo, o Pedro
foi uma pessoa excepcionalmente madura, pautado por uma ética da
responsabilidade que o distinguia mesmo entre os seus pares e amigos;
- coerência – o Pedro teve um percurso de
vida de uma linearidade e de uma transparência absolutas, luminosas: licenciatura,
mestrado, doutoramento, professor de Direito, passagem pela advocacia, juiz do
Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo. Não houve aqui
desvios no caminho, nem acidentes de percurso. E, ao longo das diversas etapas
que percorreu, nunca abandonou ou alienou os princípios com que foi educado.
Nunca teve a avidez do dinheiro nem a tentação do poder. Com as suas
qualidades, com o seu saber e com a sua entrega ao trabalho, com a sua rede de
sociabilidades, o Pedro poderia ter sido um advogado de sucesso ou enveredado
por uma carreira política (nesta, contudo, já não creio que tivesse tido tanto
sucesso, dada a forma tão firme, por vezes inflexível, como se batia pelas suas
convicções). Além desse percurso cristalino, admiravelmente coerente, o Pedro Machete
sempre manteve o essencial da sua crença nas virtudes da social-democracia, da
economia de mercado, de um Estado Social interventivo, da justiça social – um
texto neste livro, de Gonçalo Almeida Ribeiro, ilustra bem até que ponto o
Pedro tinha preocupações sociais muito claras e fundadas, mas, como sempre, prosseguia-as
sem alarde, sem dar nas vistas.
Muitas outras palavras se poderiam
acrescentar – a racionalidade, a solidez, a confiança, o rigor, a discrição, a
honestidade.
Falarei
apenas de mais uma: a lealdade. O Pedro era de uma lealdade absoluta nos seus
compromissos. Todos os que se encontram nesta sala poderão testemunhá-lo: os
colegas da universidade, os seus pares no Tribunal Constitucional. Uma vez dada
a palavra, assumido um compromisso, o Pedro não voltava atrás nem tergiversava,
não se adaptava às circunstâncias e aos auditórios. Era, em suma, das pessoas
mais fiáveis e mais confiáveis que conheci na vida.
E
agora, pela negativa, no Pedro não encontrávamos a tirada fácil, a piada de
salão, o improviso, o facilitismo, o deixa andar, o dolce fare niente, o
adiamento, a ousadia e a audácia impensadas, a eloquência de circunstância.
O mais espantoso é que a sua personalidade era
una, se quisermos era um bloco maciço, inteiriço, compacto, mas não se impunha
pela arrogância ou pela sobranceria, aliás não se impunha de todo nem a
ninguém. O Pedro era como era sem fazer alarde disso, sem impor e sem nos impor
a sua indiscutível grandeza intelectual e humana. E, como disse, as
características que singularizavam o Pedro – a maturidade, a confiança, o rigor
– atravessavam e projectavam-se sobre todos os planos da sua existência: o
familiar e pessoal, o académico e profissional, o religioso e moral.
Ao contrário do que sucede a alguns, ou muitos, o Pedro não era rigoroso numa esfera e facilitista
na outra, não mudava de registo consoante os lugares, as situações ou
solicitações. Porque, no fundo, tudo o que era e fazia brotava da mesma e única
personalidade e o Pedro, que tinha uma consciência aguda e muito nítida do que
para ele era essencial, não fazia concessões a ninguém, nem sequer a ele
próprio.
No
belíssimo texto com que abre este livro, o Pedro Ravara conta-nos um passeio em
São Martinho, nos já muito idos de 1981, e descreve que, às tantas, o Pedro
Machete e o Miguel Nogueira de Brito se envolveram numa discussão sobre a República de Platão.
O
Pedro Machete, que nasceu e cresceu num meio de elite – de elite intelectual –
e que sempre pertenceu à escassa elite intelectual do seu país, correspondeu
certamente ao ideal platónico de um rei-filósofo virtuoso, que até ao fim
manteve as convicções, os princípios e os valores que herdara dos seus pais e
que cultivou pela vida fora: a crença na família, a fé em Deus, vivida
criticamente, e a adesão à social-democracia fundadora do Partido Popular
Democrático.
Num
certo sentido, porém, o seu espaço e o seu tempo já desapareceram.
Quanto
ao espaço, o Pedro não pertencia, digamos, ao universo mental do que se
convenciona chamar «Portugal», sempre teve como referência uma realidade-outra,
claramente não latina, mas também, note-se, não totalmente germânica.
Quanto
ao tempo, o tempo de Pedro Machete era, nos seus alvores, o da burguesia meritocrática
do Estado Novo, que começou a afastar-se do regime ainda antes do 25 de Abril
e, por isso, pôde fornecer os quadros, os melhores quadros, do pessoal político
da área democrática do pós-revolução. Foi nesse tempo que o Pedro foi formado,
e o texto do Johannes mostra-nos, por exemplo, como acompanhou já com o maior interesse, por
exemplo, a revisão constitucional de 1982.
Por
razões familiares, o Pedro cresceu num meio em que a política foi vivida como
muita intensidade, a intensidade do PREC, é certo, mas também ou sobretudo a
intensidade da construção da democracia, de Sá Carneiro e da AD, da primeira
revisão constitucional, dos alvores do Bloco Central, da adesão à Europa.
O
Pedro acompanhou tudo isso de perto – e ao mais alto nível –, o que contribuiu
certamente para a sua formação política, mas também para o seu amadurecimento
precoce, digamos, na observação da vida e dos outros. É aliás sintomático que,
tendo vivido a política de tão perto e tão intensamente desde muito novo, o
Pedro nunca se tenha tentado seduzir por ela, talvez porque tenha pressentido
que ela é, ou poderia ser, fonte de muitas desilusões, ou, o que é mais
provável, porque não tenha querido desviar-se do rumo que traçou para si
próprio: ser professor de Direito e jurisconsulto.
Como
referi, o tempo de Pedro Machete – como o nosso – já desapareceu em muitas das
suas dimensões. A nossa incompreensão perante muito do que hoje está ocorrendo, o
comportamento irracional dos eleitores, o facto de estes fazerem escolhas que
gritantemente ferem os seus interesses, as mil explicações que ensaiamos para
tal desconcerto – seja o peso das redes sociais, seja o declínio das classes
médias, sejam os defeitos do «sistema», seja o solipsismo das elites ou a sua indiferença perante os deserdados de um Estado social em crise –, todas essas explicações radicam,
no fundo, no nosso desfasamento em relação ao tempo em que vivemos, ou pelo
menos a significativas parcelas dele.
Dir-se-á
que ainda somos demasiado novos para sermos assaltados por sentimentos como
esses, mais próprios da senectude e da idade maior, que na reprovação moral do
presente, na perplexidade e no nojo ético que ele nos provoca, vai implicada
uma indisfarçável nostalgia de uma ordem pretérita que, bem vistas as coisas,
era mais imaginada do que real.
Na
verdade, e se quisermos, não fomos nós que envelhecemos, foi o tempo que
acelerou, e acelerou a uma velocidade tal que tornou velhas mesmo pessoas
jovens e muito inteligentes, como o Gonçalo Almeida Ribeiro. Velhas no sentido
de terem perdido as coordenadas de racionalidade e as grelhas com que
analisavam o mundo, e que tinham uma lógica clara – se eu estudar, vou ter uma
profissão bem remunerada e uma vida confortável; ou, se um partido ou um líder
mentirem serão punidos pelos eleitores; ou deve acreditar-se na ciência e nos
consensos científicos; ou, ainda, o reconhecimento público de A ou de B é um
correlato e uma consequência do seu mérito e, por isso, a sua presença na
esfera pública é uma garantia da credibilidade e da fiabilidade das suas
opiniões.
Foram
estas as coordenadas com que Pedro construiu a sua vida, a sua carreira, e se
posicionou no mundo: o valor do trabalho, a crença na democracia, o culto da
verdade, da verdade política e da verdade científica, a convicção de que, numa
sociedade justa, o mérito é premiado, a noção de que a informação é transmitida
de cima para baixo, não de baixo para cima, e que as fontes de informação
escrutinam os seus conteúdos através de diversos mecanismos públicos: na
academia, através da revisão pelos pares; no jornalismo, através do espírito
crítico de leitores também eles esclarecidos e informados.
Tudo
isso, em larga medida, pertence ao passado. Daí que tenhamos grandes
dificuldades em compreender o presente, ou uma sua parcela significativa, e,
mais ainda, tenhamos grande dificuldade em discernir no presente como será o
futuro. Resta-nos, pois, e tão-somente, acreditarmos e confiarmos no tempo,
recordando aquele velho provérbio cigano que diz: «depois de amanhã, o amanhã
será ontem.»
Compreende-se,
assim, que o Pedro muitas vezes observasse a realidade com um olhar irónico,
até mordaz, e que não tivesse contemplações para com a mediocridade e para com
o facilitismo ou para a vertigem do mediatismo.
Mantendo
um elevado criticismo em relação ao evoluir do seu país – ou, se quisermos, ao
evoluir do tempo no seu país e no mundo –, o Pedro teve, contudo, o bom senso
de não cair em duas atitudes muito óbvias, muito clássicas e muito fáceis: a
primeira seria a de cair numa espécie de ennui e desalento em relação à
pátria; a segunda seria a de olhar com nostalgia para um passado que,
convenhamos, verdadeiramente nunca existiu, e no qual o Pedro sempre teve a
clarividência de não figurar como seu lugar de refúgio.
Até
nisto, como vêem, ele foi exemplar. Ou, em poucas palavras, nesta sua passagem
pelo mundo, mais efémera do que desejaríamos, mas ainda assim suficientemente
longa e activa para deixar uma marca indelével em todos quantos o conheceram,
nessa passagem pelo mundo, dizia, o Pedro Machete tornou-nos a todos um pouco
melhores ou, pelo menos, um pouco menos maus.
Hoje
não teremos o Pedro-físico, e por isso o recordamos com saudades, mas temo-lo
no que ele teve de essencial, o seu legado exemplar como ser humano, como
académico e como cidadão.
Dirão
que é fraco lenitivo para nos compensar pela sua perda, ainda que devamos
perguntar-nos até que ponto o que lamentamos na morte do Pedro Machete não seja
também, em larga medida, um pouco da nossa morte.
É
inevitável falar disto, mesmo nesta ocasião, desde logo para exaltarmos a
beleza, a beleza suave, de um grupo de amigos, sob a égide do Miguel Nogueira
de Brito, do Rui Medeiros, do Gonçalo Almeida Ribeiro e do José António Teles
Pereira ter-se-reunido para escrever um livro que, segundo se diz no proémio,
não é um in memoriam, mas um liber amicorum. Um livro escrito na
certeza de que, se o mesmo fosse feito para qualquer um de nós, o Pedro estaria
na primeira linha para prestar o seu depoimento. Aliás, o primeiro dos
testemunhos ou depoimentos deste livro é feito pelo próprio Pedro. Este é o seu
depoimento, o seu testemunho de vida, um livro em que o Pedro está presente em
cada linha, falando connosco através das palavras dos seus amigos. Assim, mais
do que o livro dos amigos do Pedro Machete, este é, ou será, o livro do Pedro
Machete e dos seus amigos.
A
sua morte tão prematura, tão adversa à ordem natural das coisas, confrontou-nos
todos, como é evidente – e de forma brutal –, com a nossa própria finitude, com
a possibilidade de ocorrência de um imprevisto inexplicável que altera tão
radicalmente aquilo que temos por natural e expectável e, sobretudo, aquilo que
temos por justo. Ocorre-me à lembrança uma frase de Guicciardini, contemporâneo
de Maquiavel, «é um facto notório que todos vamos morrer. E, no entanto, vivemos
como se fôssemos viver para sempre», convicção que uma morte tão precoce como a do Pedro naturalmente
abalou – e, por isso, tanto nos abalou.
Contudo,
e mesmo sendo é óbvio que tudo isto foi uma inversão das nossas expectativas,
das expectativas quanto aquilo que é, ou deveria ser, o curso normal da vida e
das coisas, deveremos ter presente que o Pedro, pese ter morrido novo, cumpriu
e viu serem cumpridas as expectativas que tinha para a sua existência: o
cumprimento do legado moral dos seus pais, ambos vivos; a presença da Margarida,
companheira até ao fim; três filhas que cumprem e superam as expectativas de
qualquer pai, mesmo de um pai exigente como o Pedro era; irmãos e cunhados,
sobrinhos, dois genros e um neto, Pedro como ele.
No
plano académico, fez um brilhantíssimo mestrado, a que assisti, e um não menos
brilhante doutoramento, a que também assisti, com a Joana muito ansiosa,
amoravelmente ansiosa, ante o resultado da prova, que só para ela poderia ter
algum mistério... O Pedro deixou escritos marcantes, importando dizê-lo que
alguns deles foram logo os relatórios que elaborou no mestrado, ainda hoje
estudados e citados, a prova mais concludente da sua esmagadora densidade
intelectual. Por fim, mas não por último, foi juiz e vice-presidente do
Tribunal Constitucional por mérito absoluto, sem favores políticos ou sem
pertencer a tribos ou côteries de espécie alguma e teve ainda a ventura
de realizar o velho sonho de ser juiz do Supremo Tribunal Administrativo, após
uma cerimónia em que muitos dos presentes compareceram. Além da família,
lembro-me do Miguel, o velho amigo sempre presente, do Pedro Mendes Pinto e do Joaquim Pedro Cardoso
da Costa, que nunca perde uma ocasião para estar com os outros e para lhes mostrar
que há esperança na humanidade.
No
Tribunal Constitucional, o Pedro Machete deixou a sua marca, a sua inolvidável
marca, e não falo dos acórdãos que relatou ou das declarações de voto que
subscreveu, aqui analisados por muitos dos seus pares: Maria Lúcia Amaral, João
Caupers, Maria José Rangel de Mesquita, José João Abrantes, Gonçalo de Almeida
Ribeiro, José António Teles Pereira, Cláudio Monteiro.
A
marca do Pedro no Tribunal, e peço que compreendam que não fale tanto da que
deixou na Universidade Católica, que conheço pior, a marca que o Pedro Machete
deixou no Tribunal Constitucional evidencia-se nisto, numa coisa tão singela: o
índice deste livro. É assombroso e comovente ver que, ao lado dos académicos
distintos que foram seus mestres ou colegas, e ao lado de dois dos seus grandes
amigos, o Pedro Ravara e o Joahnnes Laitenberger – e reparem, o amigo de São
Martinho e o amigo da Escola Alemã –, surjam tantos juízes ou ex-juízes do
Palácio Ratton, alguns dos quais não hesitam sequer em contar um ou outro
episódio de cariz mais pessoal, como sucede com o texto do Presidente João
Caupers.
Esta
obra tem isso de tão singular, que só alguém como o Pedro poderia mobilizar: a
junção singela de um grupo de amigos, uma reunião sem alardes, sem floreados,
exactamente como o Pedro gostaria que fosse. Não é, e isso é esclarecido logo
no início, um clássico livro de homenagem, com textos de muita gente que, mais
do que homenagear o homenageado, quer tantas vezes homenagear-se a ela própria.
É um livro de amigos, que, por acaso, ou não por acaso, também mantêm entre si,
na esmagadora maioria dos casos, laços de amizade. Ou seja, não é apenas um
livro dos amigos do Pedro Machete, é também um livro de pessoas que, em muitos,
muitos casos, são amigas ou muito próximas, seja porque tiveram percursos
comuns, seja porque partilham afinidades electivas, seja enfim porque sim, e
isso basta. O facto de os amigos do Pedro Machete serem também amigos uns dos
outros não será decerto uma coincidência – e o facto de terem querido celebrar
a sua memória não pode deixar de ser visto como prova do seu carácter e de um
certo modo de ver o mundo.
Haverá
outras esferas aqui não presentes, nomeadamente a familiar e a religiosa, mas,
até por isso, porque elas respeitam a um núcleo mais pessoal e íntimo, que o
Pedro sempre fez questão de preservar, compreende-s0e que sejam reservadas para
outros lugares. O livro, aliás, é muito
o retrato dos seus organizadores, quer na forma discreta e despretensiosa com
que se apresenta, quer na opção, que é muito típica destes nossos amigos, de
falarem através do silêncio.
Ao
invés de um prefácio evocativo, sentimental, o livro abre com três parágrafos
brevíssimos, que dizem tudo. A evocação está pressuposta nos textos que seguem,
a dor da perda nem sequer necessita ser explicitada, tudo é, enfim, do domínio
da reserva, da contenção, exactamente como o Pedro gostaria que fosse.
Pedindo
desculpas por o tempo que vos estou a tomar, não resisto, quase a concluir, a
mencionar um breve e extraordinário ensaio há pouco publicado por Maria João
Mayer Branco, intitulado Expectatio e dedicado a uma imagem escultórica belíssima,
a Virgem da Expectação, atribuída a Mestre Pero e hoje patente no Museu
Nacional de Arte Antiga.
Poderá
parecer estranho, e talvez o seja, falar da expectação de Maria a propósito de
um amigo falecido jovem, na força da idade, que em seu redor ainda congregava
tantas e tão merecidas esperanças e expectações.
Mas
talvez por essa via se possa chegar ao ponto que eu queria alcançar, o fio invisível
que une o Pedro-avô e o Pedro-neto.
O
livro de Maria João Mayer Branco começa com uma frase cortante, porventura
terrível, de Jorge de Sena, «não foi para morrer que nós nascemos.»
Mas,
depois, lá pelo meio, cita uma frase de Hannah Arendt que, partindo da
mesmíssima ideia de Sena, dá-lhe um outro significado, completamente distinto. Escreveu
Hannah Arendt, na Vida do Espírito, «embora devam morrer, os homens não
nascem para morrer, mas para começar.»
É
curiosíssimo que duas pessoas que muito provavelmente nunca se conheceram, mas
que escreveram mais ou menos em simultâneo, tenham partido de uma mesma ideia –
não foi para morrer que nós nascemos –, mas acabem por dar-lhe uma tonalidade
tão diferente. No caso de Sena, a desesperança absoluta; no de Hannah Arendt, o
inciso luminoso, radioso, de que toda a vida tem um fim, decerto, mas que antes
de o ter tem um começo.
Na
vida do Pedro houve vários começos e recomeços, e muitos princípios
concretizados – o doutoramento, o Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal Administrativo.
Nenhum, porém, foi tão grande como o das suas filhas e o do seu neto.
É
que, como escreveu também Hannah Arendt, «o milagre que salva o mundo é o facto
do nascimento e a possibilidade do nascimento, pois só eles, só o poder de
começar, permitem “fé e esperança” nos assuntos humanos.»
E
acrescenta Hannah Arendt, judia, que várias vezes se proclamou agnóstica: «Esta
fé e esta esperança no mundo talvez nunca tenham sido expressas de modo tão
sucinto e glorioso como nas breves palavras com as quais os Evangelhos
anunciaram a "boa nova": Nasceu uma criança entre nós.»
Ou
seja, e em suma, no Pedro-neto celebramos um novo começo, que o Pedro-avô ainda
viu começado.
E
a propósito, ou despropósito, de esperanças e expectações, dos começos que toda
a vida encerra, gostaria de recordar-vos, a terminar, o sermão que o Padre
António Vieira dedicou ao culto da Senhora do Ó.
Não
irei maçar-vos com as subtilezas argumentativas do Padre António Vieira, nem
com o poder refulgente da sua oratória barroca, que o livro de Maria João Mayer
Branco tão bem explica.
Retenhamos
apenas uma frase de Vieira, que diz: «a presença, para ser presença, há-de ter
alguma coisa de ausência.»
Com este livro, os
amigos de Pedro Machete tornaram presente o ausente, um ausente que
continua e continuará presente – enquanto nós formos e o quisermos.
Muito
obrigado.
António
Araújo