quarta-feira, 5 de março de 2025

Que palavras guardaremos quando formos todos mortos?

 

 

 



Para quem sorria à pergunta, lembremos Ahmad Muaddamani, morto. Ou Omar Abu Anas, morto também. E as mais de 700 vítimas, das quais 63 crianças, do massacre de Daraya, perpetrado no Verão de 2012 pelo regime de Damasco, com o apoio do Hezbollah e do Irão. A 25 de Agosto desse ano, enquanto gozávamos férias, o centro de Daraya ficou pejado de cadáveres, muitos dos quais executados sumariamente e a sangue-frio, a tiro ou à baioneta. Dos cerca de 200 corpos descobertos nesse dia, 80 eram civis, massacrados no interior das próprias casas ou perto da mesquita Abu Suleiman Derane, já que então se celebrava o Eid al-Fitr, a data que no calendário islâmico assinala o fim do Ramadão.

No dia 27, o exército regressou para novas atrocidades. Cometidas provavelmente, à mesma hora em que, a partir de Nova Iorque, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, se mostrava consternado por aquele “crime terrível e brutal”, ou que a Alta-Comissária para os Direitos Humanos falava em possíveis “crimes de guerra e contra a humanidade”, exortando a uma “investigação imediata e completa”, que nunca seria feita: no Conselho de Segurança, a Rússia vetou a instauração de um processo no TPI contra Bashar al-Assad, este fugiu do país, vive hoje com a família num apartamento de luxo em Moscovo, e o principal responsável pela matança, Qathan Khalil, cognominado “Carniceiro de Daraya”, encontra-se em lugar incerto. Estima-se que, entre 2011 e 2024, a guerra civil na Síria tenha provocado mais de 600 mil mortos, sendo as forças governamentais responsáveis por 90% das baixas civis.  



 

          Uma fotografia, uma biblioteca

 

Em Outubro de 2015, a jornalista francesa Delphine Minoui, então a residir em Istambul, descobriu no Facebook uma estranha fotografia. A imagem encontrava-se na página de um colectivo de fotojornalistas, os “Humans for Syria”, e mostrava dois homens junto das estantes de uma biblioteca. À primeira vista, nada de mais, não fora o facto de essa biblioteca ficar situada em Daraya, um subúrbio de Damasco cercado pelas tropas governamentais desde 2012. Dos 250 mil habitantes da cidade, ainda nas mãos dos rebeldes, restavam uns 12 mil, não mais.

Através do Skype e do Whatsapp, Delphine conseguiu chegar à fala com o autor da fotografia, Ahmad Muaddami, um antigo estudante de engenharia de 23 anos, que, contra a vontade da família, decidiu permanecer na cidade e juntar-se aos rebeldes. Em finais de 2013, Ahmad e alguns companheiros – cerca de quarenta, todos na casa dos 20 anos –, começaram a resgatar livros dos escombros da cidade, apanhando-os na rua ou no entulho dos prédios bombardeados. Ao fim de uma semana, tinham conseguido salvar seis mil livros. Ao fim de um mês, quinze mil.

Formaram uma biblioteca num lugar secreto, com um gerador eléctrico improvisado e belas estantes feitas por voluntários, que repararam também os livros desfeitos, catalogando-nos pacientemente por ordem alfabética de autor, um a um. Em todos os livros, colocaram a lápis o nome dos proprietários, caso o soubessem, para que aqueles os recuperassem um dia, quando a tormenta passasse. Um comovente sinal de esperança.

Debaixo de bombas e de fogo constante, de ataques com gás sarin e napalm, a biblioteca de Daraya sobreviveu vários anos, abrindo todos os dias, excepto às sextas, das nove da manhã às cinco da tarde. Com cerca de vinte leitores presenciais por dia e empréstimos domiciliários, a biblioteca espalhou milhares, milhões de palavras entre os sitiados da cidade, servindo também de centro de debates e de universidade clandestina. Com uma fotocopiadora resgatada do entulho, os rebeldes produziram também um jornal de tiragem reduzida, 500 exemplares, com ensinamentos sobre como recolher a água da chuva ou cultivar verduras nos logradouros dos prédios. O Karkabeth, assim se chamava o periódico, tinha até crítica de cinema, palavras cruzadas e um horóscopo humorístico, com tiradas mordazes sobre a catástrofe em curso (“impossível trabalhar, as estradas estão todas cortadas”, dizia uma).

A biblioteca de Daraya foi, em suma, e nas certeiras palavras de Delphine Minoui, uma “arma de instrução maciça”. Entre as suas obras mais requisitadas, O Alquimista de Paulo Coelho, mas também Saint-Exupéry, O Príncipe de Maquiavel, Os Miseráveis de Vítor Hugo. Também muito populares os livros de autoajuda, com conselhos práticos de bem-estar e de ânimo, talvez porque, no meio daquele caos e da fome, eles transmitissem uma reconfortante sensação de normalidade e de que a vida continuava.






Alguns dos voluntários, como Ahmad Muaddamani ou Omar Abu Anas, acabaram sendo mortos pelas tropas de al-Assad, mas a biblioteca permaneceu aberta, pese ter sido alvo, em finais de 2015, de uma bomba que destruiu dois dos seus pisos.

Em Dezembro de 2014, um dos rebeldes, Shadi, conseguiu que lhe trouxessem uma Canon 70D. Foi levada por uma mulher, de que ele nunca soube o nome, que escondeu a máquina nas vestes e percorreu de noite o caminho até Daraya, uma das estradas mais perigosas e mais mortíferas da Síria. Graças a este gesto de tremenda coragem, Shadi pôde fotografar e filmar as bombas ainda no ar, prestes a explodir, ou os seus devastadores efeitos no solo, imagens depois transmitidas para o exterior através da Internet ou das redes sociais.

Em 2016, depois de 1.352 dias debaixo de bombas, sem água potável nem electricidade, e após umas breves tréguas, as tropas de al-Assad entraram finalmente na cidade. A biblioteca de Daraya teria o mesmo destino de outras livrarias-mártires: a de Sarajevo, em 1992, com perda de um milhão e meio de livros; a de Tombuctu, em 2013, 20 mil manuscritos destruídos pelas milícias islâmicas; a de Mosul, arrasada pelo Daesh em 2015; as mais de 700 bibliotecas da Ucrânia devastadas pelos russos e, há pouco, todas as treze bibliotecas de Gaza, destruídas ou seriamente danificadas.




Na sequência de um acordo precário, os rebeldes foram evacuados em três dezenas de autocarros rumo a Idlib, no noroeste do país. Ahmad e os seus companheiros levaram consigo o tesouro mais precioso que tinham – livros – e, mantendo o vício das palavras, ali montaram uma biblioteca itinerante, muito popular e sempre muito concorrida. A seguir, partiram para lugares longínquos. Residem hoje na Turquia e em França, por aí. Centenas de outros, mais de 700, entre os quais 63 crianças, tiveram menos sorte. Com que palavras morreram? 



 

          O mundo de ontem

 

Em 2017, um ano depois do fim do cerco, Delphine Minoui publicou em livro a história extraordinária da biblioteca de Daraya. Desde que o comprei há pouco, na livraria Palavra de Viajante (obrigado, Ana Coelho), tenho-me perguntado se um dia também ele não será resgatado por um grupo de jovens rebeldes das ruínas e dos escombros de uma guerra a cada hora mais iminente. Que palavras guardaremos quando formos todos mortos?

Muitas, decerto, pois o Zeitgeist é verboso, palavroso e, sobretudo nos últimos tempos, a incompreensão e o medo impelem-nos a falar em excesso, talvez como resposta à torrente de impropérios e desvergonhas que, num caudal demencial, aflui diariamente do outro lado do Atlântico, numa estratégia de “choque e pavor” a que inelutavelmente cedemos, pois, com as debilidades que acumulámos ao longo de décadas (v.g., na defesa, na economia, na tecnologia), outro remédio não temos. É espantoso observar como, em poucos dias ou semanas, as antigas batalhas das palavras, “woke” de um lado, “fascista” do outro, pertencem agora a um mundo de ontem, aquele em que éramos felizes e não sabíamos.

Enquanto a Oriente impera o mais loquaz dos silêncios, com a potência ascendente à espreita, sempre sábia, na Europa e no que resta da América os intelectuais e os opinion-makers concorrem entre si para encontrar o melhor qualificativo para o inqualificável, recorrendo a expressões como “autoritarismo democrático”, “autoritarismo competitivo”, “tecno-oligarquia” ou até “neofascismo”. Mesmo conceitos como “populismo” ou “polarização”, outrora tão em voga, parecem ter caído em desuso, ultrapassados que foram na voragem das palavras, a cada dia mais contundentes – e alarmantes.

Os mais eufemísticos falam de “um presidente transacional”, apresentando Trump como um fala-barato disposto a tudo negociar, até a mãe ou a Ucrânia, com isso ocultando o que de mais sinistro nele existe, um ditador em potência e já em acto. Outros, porventura mais ingénuos ou insensatos, referem-se um momento “disruptivo”, como se tudo não passasse afinal de um sonho mau, mas passageiro, do qual em breve todos acordaremos.

A desfaçatez vai ao ponto de nos quererem convencer de que estamos perante uma orteguiana “rebelião das massas”, um natural e saudável movimento contra as “elites” e as “oligarquias”, só por acaso protagonizado por um milionário corrupto várias vezes falido, com a cumplicidade submissa e interesseira dos homens mais ricos do planeta, aqueles de quem mais se esperaria coragem e independência, que nos venderam ser as grandes virtudes dos “empreendedores”.

Em todo este desconcerto, há, contudo, uma lógica e um propósito precisos, evidentes: quanto mais acreditarmos no inverosímil, mais este se torna real e assim tudo será permitido, até sair imune de um homicídio na 5.ª Avenida em pleno dia, de um assalto ao Capitólio ou de 34 condenações judiciais por fraude, uma das quais envolvendo o silêncio pago de uma actriz hard-core.

De facto, não precisa ser verdade, basta só que acreditemos. Que acreditemos no vice-presidente dos EUA quando este, num cúmulo de cinismo e hipocrisia, se arvora em paladino da “liberdade de expressão” na Europa, enquanto na Casa Branca impedem o acesso dos jornalistas que não adiram ao novel “golfo da América”. Ou que acreditemos em Musk, que em 2016 prometeu voos tripulados para Marte em 2022, três anos antes da data prevista, depois adiada para 2024, para 2025 e agora para… 2028. Não precisa ser verdade, basta só que acreditemos.

Por tudo isto, e o muito mais que ainda veremos, é hoje muito grande, e muito avassaladora, a sensação de cerco e sequestro, experienciada por cada qual no seu íntimo, na solidão do seu eu, no interior da família, no apertado círculo dos mais próximos. É como se estivéssemos todos na biblioteca clandestina de uma cidade sitiada pelos bárbaros, sem outro amparo que não o das palavras e das imagens, dos livros, dos jornais. Assim morramos com eles.

 

            António Araújo   




3 comentários:

  1. Mais um belíssimo e comovente texto, obrigado António!

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  2. Muito obrigado por este post tão bom. Gostei tanto de ler. Como se chama o livro da biblioteca de Daraya?

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  3. Caro António, o último parágrafo de seu lúcido texto não poderia melhor descrever a sensação que experimento. Ainda bem que possuo biblioteca em casa, último refúgio antes do armagedon.

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