Quem
Cuidará de Mim, ensaio de Ana Paula Gil para a Fundação
Francisco Manuel dos Santos, não ilude que toda a problemática dos cuidados
informais espera por maior atenção e resposta eficiente face a desafios
demográficos, territoriais, económicos, familiares e sociais de grande
envergadura, o decisor político não pode continuar a passar ao lado dessa
bomba-relógio que se chama o envelhecimento.
Este
ensaio, se bem que centrado num leitor de algum modo selecionado, pretende
contribuir para uma melhor compreensão dos cuidados informais, identifica as
problemáticas sociais que estão associadas a quem cuida, é matéria muito mais
extensa do que aquela que cabe nas medidas de política de saúde e solidariedade
social. Põe-nos a refletir sobre o significado de cuidar, algo que abarca mais
a mulher do que o homem, matéria dinâmica que não pode abstrair da complexidade
das relações familiares; é facto que há hoje muito mais reflexão quanto ao
reconhecimento social de quem presta cuidados, releva a maior longevidade, o
crescimento contínuo de indivíduos com mais de 80, 90 e 100 anos. A autora
observa: “A disponibilidade dos cuidadores informais está dependente não só das
mutações sociais das estruturas familiares que ocorrem atualmente na sociedade
portuguesa, como também das políticas públicas de cuidados de longa duração, o
que vai obrigar a reequacionar o atual modelo de cuidados para a população
idosa em Portugal.” Pelo que nos é dado ver, o decisor político ainda não se
afoitou a encontrar um puzzle de soluções para a crise global dos cuidados, aos
cuidados formais, requerem profissionais qualificados, importa alargar a
prestação de cuidados no domicílio, dignificar o cuidador informal, o país já
possui legislação, mas esta é manifestamente dececionante.
A
autora discreteia sobre a necessidade de rever o conceito de cuidar (por
exemplo, a responsabilização dos cuidados centra-se na mulher), em cuidados de
longa duração há que procurar investir na aptidão de vários familiares em
simultâneo, no novo quadro de articulação com o cuidar na esfera pública, o que
levanta a questão dos encargos orçamentais. Recorda a autora que nos países da
OCDE, em 2021, despendeu-se 1,8% do PIB em cuidados de longa duração, há países
como os Países Baixos com 4,4% ou Portugal com 1% do PIB. E daqui partimos para
a crise global do cuidado: escassez de mão de obra, as mudanças sociais, a
necessidade crescente de serviços personalizados (que nos países do chamado
mundo ocidental conhecem alívio com o concurso dos imigrantes). A longevidade
tudo alterou, acontece que o aumento de esperança de vida com incapacidade está
associado ao surgimento de doença crónica e à multimorbilidade, com realce para
a doença cardíaca, os acidentes vasculares cerebrais, a diabetes e as doenças
degenerativas (as demências), podendo-se concluir que vivemos mais tempo, mas à
medida que as pessoas envelhecem a proporção dos anos de vida com incapacidade
aumenta. E de novo as mutações nas estruturas familiares requerem ponderação,
mas continuamos com zonas muito fluídas quanto à materialização de políticas
que favorecem a conciliação entre trabalho e família, o mesmo é dizer que
continua completamente em aberto a tensão entre a esfera laboral e os cuidados.
E convém não esquecer que pelo caminho houve a fase pandémica da covid-19 que
provocou efeitos devastadores nas práticas de cuidados em Portugal.
Ana
Paula Gil elabora o retrato dos cuidadores informais em Portugal e versa depois
as políticas de apoio aos cuidadores na Europa. Assim chegamos à análise do
Estatuto do Cuidador Informal, feita em profundidade, revelando os aspetos mais
salientes da insuficiência e da deceção que a lei confere. Por exemplo, “o não
reconhecimento do trabalho de cuidado como trabalho efetivo – e, por isso,
passível de proteção social de forma universal – tem contribuído para minimizar
o seu papel e, sobretudo, olhá-lo como um dado adquirido assumido pelas
mulheres”.
Em
jeito de conclusão, a autora adianta o que de nefasto representa a inexistência
de debate público sobre o que queremos, como queremos e com quem queremos viver
o nosso envelhecimento com dignidade. “A pressão sobre o sistema de cuidados de
longa duração será inevitável nas próximas décadas, e vai implicar um maior
investimento no setor de cuidados, assim como o reequacionamento das políticas
de apoio aos cuidadores informais. São necessárias políticas que permitam
minimizar os impactos e possíveis riscos – por exemplo, as saídas do mercado de
trabalho, a dependência financeira de outros familiares, ou o risco de pobreza
-, quando se trata de um cuidado intensivo, como ainda apoiar os cuidadores no
exercício do cuidado de trabalhos, sempre que estes se confrontem com a
conciliação entre trabalho e vida familiar”. Um outro dado da realidade é a
dignificação do cuidador formal, pois sem este reconhecimento avolumar-se-ão a
desigualdades de género, mas também étnico-raciais, o mesmo é dizer
precarização e mero desenrascanço do cuidado de trabalhos. ”Equacionar o
cuidado como o produto da interceção entre bem-estar, emprego e migrações,
ajuda-nos a compreender os desafios que estão associados à longevidade e ao
envelhecimento da população, às desigualdades e à atual complexidade da
diversidade social, bem como à digitalização da sociedade e à mudança
climática. Por isso, os cuidados informações ganham centralidade nas sociedades
contemporâneas.”
Oxalá
os decisores políticos acolham com manifesta seriedade este aviso de alguém que
investiga sobre temas de envelhecimento e respetivas políticas sociais, da
família e das relações intergeracionais, bem como da saúde.
Mário Beja Santos
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