quarta-feira, 2 de julho de 2025

As Brigadas Revolucionárias (BR) e o Partido Revolucionário do Proletariado (PRP) nas memórias do seu principal artífice.

 


 

Carlos Antunes, Memórias de um Revolucionário, por Isabel Lindim, Oficina do Livro, 2024, dá-nos a oportunidade de ouvir alguém que entrou na clandestinidade aos 21 anos, que militou no Partido Comunista Português, esteve muito ativo na Roménia e em Paris, lançou mão de métodos que deixaram o Estado Novo em transe, quando passou a destruir equipamento fundamental destinado à guerra colonial. Como observa a autora, o texto resultou da transcrição de duas entrevistas, que decorreram em 2011, uma, outra da realizadora Margarida Gil. É um livro de memórias, sempre escrito na primeira pessoa, sempre mantendo a oralidade de quem possuía o dom de saber contar com uma presença cenográfica única, cativando na conversação com um poder quase mágico, e daí a autora poder dizer que quase se limitou a fazer ajustes ao conteúdo da gravação.

Tudo vai começar numa infância rural, recorda a sua vida na aldeia, na Serra da Cabreira, Vieira do Minho, dá-nos o seu quadro familiar, a sua vida no Porto, o seu ingresso no Partido Comunista, o seu primeiro casamento e o trabalho partidário. “Ganhava o meu salário e tinha uma vida dupla. Controlava a organização clandestina no Minho e para isso tinha de recrutar, tinha de reunir, tinha de organizar as pessoas para estarem atentas às reivindicações dos trabalhadores, promover a unidade dos trabalhadores em cada empresa, fazer crescer as células, fazer novos recrutamentos.” E não esquece o seu amor ao teatro e a admiração que nutria por Óscar Lopes.

Discorre sobre a vida clandestina, há episódios de um humor faiscante, em Lisboa trabalha em apoio ao secretariado do partido, este num dia é preso num só golpe, foge com a mulher e os filhos, encarregam-no de fazer uma organização de fronteira, deixa-nos uma descrição admirável do que é o seu trabalho numa zona de contrabando. “Os contrabandistas têm uma ordem de solidariedade que é impenetrável. Quando montei o meu primeiro aparelho de fronteira foi ainda para o PC. Fui a primeira pessoa a passar no sítio onde o Cunhal passou a seguir. Para testar o aparelho. Depois com as Brigadas criei outro. O chefe dos contrabandistas de Montalegre é ainda hoje um homem adorado. Morreu. Era um militante extraordinário pela intuição, pela capacidade de organização.” Pensa que o mandaram para a Roménia porque ali havia necessidade de quadros e em nenhumas condições podia ser preso. “Para o Cunhal poder andar com a minha identidade em segurança. O meu nome, a minha carta de condução. Quando cheguei à Roménia, usava o pseudónimo de Sérgio Gomes. O Cunhal é que se chamava Carlos Antunes nessa altura.” A experiência romena não lhe foi feliz, segue então para Paris, não esquece a comoção que teve quando foi ver a Comédie Française.

Começam as suas andanças como clandestino pela Europa, irá visitar a União Soviética, entra num estado de desilusão ideológica, descobre que aquela vida não era o seu ideal, ficará com muito má impressão de gente que vinha do movimento estudantil português, sublinha as contradições da linha partidária. E assim chegamos à invasão da Checoslováquia, aprofunda-se o fosso ideológico, havia já a pressão na base do PC para a necessidade de fazer a ação armada.

Cunhal criou um grupo que ficará conhecido por Pró-Cubanos. “Este grupo era comandado por um indivíduo que tinha sido Comando na guerra colonial na Guiné. Segundo parece, era um fulano que matava depressa e bem e, portanto, tinha criado alguma aura de capacidade junto dos militantes, parecia que a guerrilha era uma coisa especial. Mas não era, como nós provámos à sociedade. Era uma questão de militância e de aprender. Se os outros sabem disparar, se os militares sabem disparar e sabem organizar coisas, porque é que nós não havemos de saber?”

Ocorre então a rutura com o PC, conta-nos a sua vida em Argel, tem aqui comentários e memoráveis. E regressa a Portugal, cria com a Isabel do Carmo as Brigadas Revolucionárias, descreve o debate que se instalou sobre a luta armada, refere a LUAR e a ARA, e como se chegou à definição do que deviam ser as ações armadas.

Entramos agora no mundo das bombas, descreve a primeira ação das Brigadas em 7 de novembro de 1971, na Fonte da Telha, seguir-se-ão ações de sabotagem, ações hilariantes, como largar um porco no Rossio vestido de Almirante Américo Tomás. Lemos as suas memórias e sente-se que ele estava feliz com a sua capacidade de disfarce. “Passei a usar uns óculos que eu dizia que era tipo empregado bancário. Uns oculozinhos assim certinhos. Passei a estar um bocadinho mais louro. Eu nunca cortei o cabelo, nunca fui ao barbeiro nem hoje vou. Eu sempre soube cortar o meu cabelo sozinho. Passei a vestir uma roupinha escura, limpa, elegante, mas que não dava nas vistas. Passei a ser um senhor qualquer igual a toda a gente.” É clandestino e falsário: “Os passaportes quem os arranjava era eu. Era autossuficiente a maquilhar passaportes, mas quando estava todo direitinho, todo bem feito como se tivesse saído do Governo Civil, eu deitava-lhe um bocado de água ou até lhe fazia chichi. Aquilo ficava um bocado esborratado, mas eu queria um pretexto para que o polícia que me encontrasse na fronteira me interrogasse porque é que o passaporte estava assim.” Ao que ele responderia que teria sido um miúdo que tinha feito chichi no passaporte.

Recorda o escritor Nuno Bragança, a aliança que fez com os católicos, Frei Bento Domingues, a Capela do Rato, o Boletim Anti-Colonial. A maneira como ele conta uma história de uma tentativa de ação no Santuário de Fátima é um verdadeiro espanto. E seguem-se as ações bombistas em objetivos militares, destroem-se camiões, sabota-se a Marconi em Sesimbra e Palmela, sabota-se nos serviços de recrutamento militar, no Quartel-General do Porto, assaltam-se bancos, isto até 19 de abril de 1974. É neste ínterim que Carlos Antunes rememora todo o processo da clandestinidade, onde e como habitava, as senhas e encontros, não deixa de mencionar a prisão após o 25 de Abril e despede-se assim:

“No Portugal daquele tempo as pessoas tinham muito medo da PIDE e estavam convencidas de que era uma organização impressionante na sua capacidade de deteção das coisas. Nalguns aspetos era. Para nós o ser capaz não era tanto a importância ou o número de ações que fôssemos capazes de fazer. Era a continuidade na ação. Portanto, não ser preso e continuar a ação era a coisa mais terrível que podíamos fazer ao inimigo e era também aquilo que mais nos podia projetar na consciência dos trabalhadores, no sentido de eles terem autoconfiança para eles se disponibilizarem a correr riscos. Não era infalível uma pessoa ser presa.

E tivemos razão.

Não corríamos riscos desnecessários, éramos contidos, fazíamos as coisas com calma. Por vezes, sobretudo os exilados, queriam que nós andássemos de pressa demais. Queriam que nós fizéssemos coisas extraordinárias e nós dizíamos: ‘Não temos condições para as fazer e não as fazemos!’. O importante era manter essa cadência, esta capacidade de resistir e dar tempo às pessoas de perceberem que alguma coisa estava a nascer.”.

Um belo testemunho sobre as implicações das Brigadas Revolucionárias no esfarelamento da ideia que o regime omnivigilante da PIDE tudo podia sufocar e impedir um país livre.

 

                                                                    Mário Beja Santos 


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