Carlos Antunes,
Memórias de um Revolucionário, por Isabel Lindim,
Oficina do Livro, 2024, dá-nos a oportunidade de ouvir alguém que entrou na
clandestinidade aos 21 anos, que militou no Partido Comunista Português, esteve
muito ativo na Roménia e em Paris, lançou mão de métodos que deixaram o Estado
Novo em transe, quando passou a destruir equipamento fundamental destinado à
guerra colonial. Como observa a autora, o texto resultou da transcrição de duas
entrevistas, que decorreram em 2011, uma, outra da realizadora Margarida Gil. É
um livro de memórias, sempre escrito na primeira pessoa, sempre mantendo a
oralidade de quem possuía o dom de saber contar com uma presença cenográfica
única, cativando na conversação com um poder quase mágico, e daí a autora poder
dizer que quase se limitou a fazer ajustes ao conteúdo da gravação.
Tudo
vai começar numa infância rural, recorda a sua vida na aldeia, na Serra da
Cabreira, Vieira do Minho, dá-nos o seu quadro familiar, a sua vida no Porto, o
seu ingresso no Partido Comunista, o seu primeiro casamento e o trabalho
partidário. “Ganhava o meu salário e tinha uma vida dupla. Controlava a
organização clandestina no Minho e para isso tinha de recrutar, tinha de
reunir, tinha de organizar as pessoas para estarem atentas às reivindicações
dos trabalhadores, promover a unidade dos trabalhadores em cada empresa, fazer
crescer as células, fazer novos recrutamentos.” E não esquece o seu amor ao
teatro e a admiração que nutria por Óscar Lopes.
Discorre
sobre a vida clandestina, há episódios de um humor faiscante, em Lisboa
trabalha em apoio ao secretariado do partido, este num dia é preso num só
golpe, foge com a mulher e os filhos, encarregam-no de fazer uma organização de
fronteira, deixa-nos uma descrição admirável do que é o seu trabalho numa zona
de contrabando. “Os contrabandistas têm uma ordem de solidariedade que é
impenetrável. Quando montei o meu primeiro aparelho de fronteira foi ainda para
o PC. Fui a primeira pessoa a passar no sítio onde o Cunhal passou a seguir.
Para testar o aparelho. Depois com as Brigadas criei outro. O chefe dos
contrabandistas de Montalegre é ainda hoje um homem adorado. Morreu. Era um
militante extraordinário pela intuição, pela capacidade de organização.” Pensa
que o mandaram para a Roménia porque ali havia necessidade de quadros e em
nenhumas condições podia ser preso. “Para o Cunhal poder andar com a minha
identidade em segurança. O meu nome, a minha carta de condução. Quando cheguei
à Roménia, usava o pseudónimo de Sérgio Gomes. O Cunhal é que se chamava Carlos
Antunes nessa altura.” A experiência romena não lhe foi feliz, segue então para
Paris, não esquece a comoção que teve quando foi ver a Comédie Française.
Começam
as suas andanças como clandestino pela Europa, irá visitar a União Soviética,
entra num estado de desilusão ideológica, descobre que aquela vida não era o
seu ideal, ficará com muito má impressão de gente que vinha do movimento
estudantil português, sublinha as contradições da linha partidária. E assim
chegamos à invasão da Checoslováquia, aprofunda-se o fosso ideológico, havia já
a pressão na base do PC para a necessidade de fazer a ação armada.
Cunhal criou um grupo que
ficará conhecido por Pró-Cubanos. “Este grupo era comandado por um
indivíduo que tinha sido Comando na guerra colonial na Guiné. Segundo parece,
era um fulano que matava depressa e bem e, portanto, tinha criado alguma aura
de capacidade junto dos militantes, parecia que a guerrilha era uma coisa
especial. Mas não era, como nós provámos à sociedade. Era uma questão de
militância e de aprender. Se os outros sabem disparar, se os militares sabem
disparar e sabem organizar coisas, porque é que nós não havemos de saber?”
Ocorre
então a rutura com o PC, conta-nos a sua vida em Argel, tem aqui comentários e
memoráveis. E regressa a Portugal, cria com a Isabel do Carmo as Brigadas
Revolucionárias, descreve o debate que se instalou sobre a luta armada, refere
a LUAR e a ARA, e como se chegou à definição do que deviam ser as ações
armadas.
Entramos
agora no mundo das bombas, descreve a primeira ação das Brigadas em 7 de
novembro de 1971, na Fonte da Telha, seguir-se-ão ações de sabotagem, ações
hilariantes, como largar um porco no Rossio vestido de Almirante Américo Tomás.
Lemos as suas memórias e sente-se que ele estava feliz com a sua capacidade de
disfarce. “Passei a usar uns óculos que eu dizia que era tipo empregado
bancário. Uns oculozinhos assim certinhos. Passei a estar um bocadinho mais
louro. Eu nunca cortei o cabelo, nunca fui ao barbeiro nem hoje vou. Eu sempre
soube cortar o meu cabelo sozinho. Passei a vestir uma roupinha escura, limpa,
elegante, mas que não dava nas vistas. Passei a ser um senhor qualquer igual a
toda a gente.” É clandestino e falsário: “Os passaportes quem os arranjava era
eu. Era autossuficiente a maquilhar passaportes, mas quando estava todo
direitinho, todo bem feito como se tivesse saído do Governo Civil, eu
deitava-lhe um bocado de água ou até lhe fazia chichi. Aquilo ficava um bocado
esborratado, mas eu queria um pretexto para que o polícia que me encontrasse na
fronteira me interrogasse porque é que o passaporte estava assim.” Ao que ele
responderia que teria sido um miúdo que tinha feito chichi no passaporte.
Recorda
o escritor Nuno Bragança, a aliança que fez com os católicos, Frei Bento
Domingues, a Capela do Rato, o Boletim Anti-Colonial. A maneira como ele conta
uma história de uma tentativa de ação no Santuário de Fátima é um verdadeiro
espanto. E seguem-se as ações bombistas em objetivos militares, destroem-se
camiões, sabota-se a Marconi em Sesimbra e Palmela, sabota-se nos serviços de
recrutamento militar, no Quartel-General do Porto, assaltam-se bancos, isto até
19 de abril de 1974. É neste ínterim que Carlos Antunes rememora todo o
processo da clandestinidade, onde e como habitava, as senhas e encontros, não
deixa de mencionar a prisão após o 25 de Abril e despede-se assim:
“No
Portugal daquele tempo as pessoas tinham muito medo da PIDE e estavam
convencidas de que era uma organização impressionante na sua capacidade de
deteção das coisas. Nalguns aspetos era. Para nós o ser capaz não era tanto a
importância ou o número de ações que fôssemos capazes de fazer. Era a
continuidade na ação. Portanto, não ser preso e continuar a ação era a coisa
mais terrível que podíamos fazer ao inimigo e era também aquilo que mais nos
podia projetar na consciência dos trabalhadores, no sentido de eles terem
autoconfiança para eles se disponibilizarem a correr riscos. Não era infalível
uma pessoa ser presa.
E
tivemos razão.
Não
corríamos riscos desnecessários, éramos contidos, fazíamos as coisas com calma.
Por vezes, sobretudo os exilados, queriam que nós andássemos de pressa demais.
Queriam que nós fizéssemos coisas extraordinárias e nós dizíamos: ‘Não temos
condições para as fazer e não as fazemos!’. O importante era manter essa
cadência, esta capacidade de resistir e dar tempo às pessoas de perceberem que
alguma coisa estava a nascer.”.
Um
belo testemunho sobre as implicações das Brigadas Revolucionárias no
esfarelamento da ideia que o regime omnivigilante da PIDE tudo podia sufocar e
impedir um país livre.
Mário
Beja Santos
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