sábado, 11 de outubro de 2025

Uma breve história do Ultramar como jamais se escreveu.

  




          A obra intitula-se A Mais Breve História do Ultramar, trabalho do investigador David Moreira, com prefácio do Presidente da República, Ideias de Ler/Porto Editora, 2025. O autor escolheu um tempo preciso, tem como percurso histórico as balizas da Conferência de Berlim e a descolonização, acrescendo um capítulo sobre o 25 de abril, as independências em África e em Timor-Leste. Correm-se riscos, e bem temerários, de ensaiar em menos de 300 páginas, e necessariamente com um olhar diferenciado de trabalhos já publicados, o espartilhar um período histórico tão tumultuoso, com menos 150 anos. Acresce que nos fica a dúvida se deve arrancar a análise histórica com a dita Conferência de Berlim, indiscutivelmente marco miliário definidor da configuração do Terceiro Império, sem dar ao leitor, não especializado, uma síntese do pano de fundo, isto é, todo aquele século XIX em Portugal foi um arrastar de traumas, dos quais a independência do Brasil teve um poder avassalador. No século XVII, a dinastia dos Bragança teve de lançar mãos à obra para juntar os pedaços imperiais da União Ibérica, os inimigos dos Habsburgos aproveitaram-se para ocupar posições outrora portuguesas em vários continentes; procurou-se consolidar os territórios sobrantes em África, no Oriente, no Brasil (esta a parcela tida como a joia da Coroa) e a partir de 1822, com guerra civil pela frente, um país empobrecido foi engendrando um quadro ideológico que se materializou no sonho africano. É o que me parece que David Moreira devia ter esclarecido em termos preambulares.

          Ele entra diretamente na partilha de África, nas novas cobiças de alemães, franceses e britânicos, as tentativas de consolidar posições através de expedições ditas científicas e campanhas de ocupação militar, até se chegar ao episódio glorioso de fazer capitular Gungunhana, o Leão de Gaza. Observa o investigador corretamente que “A impressão de superioridade militar e tecnológica dos portugueses neste período pode ser apontada como um dos fatores a que se cometessem erros crassos no futuro. Logo em 1904, o exército sofreu uma autêntica derrocada no sul de Angola às mãos dos guerreiros Cuamatos. A subestimação dos desafios da ação militar em África durou mesmo até ao tempo da República, com repercussões catastróficas para Portugal.”

Chegados à I República, prosseguiram as negligências, lembra o autor que entre o Ministério da Marinha e o novo Ministério das Colónias, a pasta dedicada às províncias ultramarinas passou pela mão de 13 ministros diferentes no período de seis anos, os territórios não mapeados, faltavam as redes de estradas e os caminhos de ferro, as comunicações dependiam da navegação britânica. Em 1913, os governos britânicos e alemães chegaram a planear uma partilha amigável de Angola e Moçambique, houve protestos dos franceses e a seguir começou a I Guerra Mundial, irão surgir graves problemas militares em Angola e Moçambique. Os militares não perdoaram as ineficiências das elites republicanas. “Não por acaso, algumas das grandes figuras do fim da República haviam visto a questão moçambicana de perto. Esta lista vai de Gomes da Costa, que inspecionou as tropas após a rendição, ao seu genro Massano de Amorim, governador de Moçambique durante a fase mais crítica da guerra. Já Alves Roçadas, um dos pontas de lança da revolta contra o republicanismo, havia testemunhado e protagonizado uma desgraça na frente angolana.” Começam a surgir no pós-guerra relatórios sobre as condições laborais em Moçambique e Angola, dizem-se verdades como punhos, bem se pretendeu negar categoricamente as acusações.

Com a ditadura e o Estado Novo vão ser redesenhadas as leis da administração colonial, segue-se o Ato Colonial de 1930, ali se codifica a natureza da ocupação portuguesa desses territórios: “É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas.” Estamos numa época em que os países coloniais lançam mão de exposições e feiras, assim vai nascer a Exposição Colonial do Porto em 1934, que decorreu no Jardim e Palácio de Cristal, trouxeram-se membros das colónias, não faltaram indianos encantadores de serpentes, nem macaenses a retratar uma casa de chá e guineenses de peito ao léu. O ativista da exposição, Capitão Henrique Galvão criou o famoso mapa em que sob a Europa aparecem as colónias portuguesas e onde se diz que Portugal não é um país pequeno.

Finda a II Guerra Mundial, era de todos sabido que os norte-americanos iriam apoiar as descolonizações, a independência da Índia, os acontecimentos na China com a chegada dos comunistas ao poder, deixaram sinais inquietantes ao nosso pensamento colonial. Os estudantes das colónias irão encontrar-se na Casa dos Estudantes do Império, por lá passarão, entre outros, Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Joaquim Chissano e Pedro Pires. Galvão, em 1945, desembarca no Lobito, continua encantado pelo sonho de Portugal pluricontinental, mas o seu relatório sobre o trabalho dos indígenas nas colónias, em 1947, provoca o pandemónio, a imagem que pintava era desoladora e dirá mesmo, sobre o trabalho forçado, que a situação era pelo menos tão desumana como era no tempo da completa escravatura. Salazar tenta atrelar-se ao mundo ocidental político, Portugal entra na ONU e na NATO, mas acontece que anos depois os novos países africanos vão deter a maioria do voto a questão indiana irá agravar-se e ter o seu desfecho em 1961. Haverá explosões nesta ou naquela colónia, mas as notícias serão proibidas, caso do massacre em Batepá, na Província de São Tomé e Príncipe, em 1953, a sublevação de Viqueque, em Timor, em 1958, e os acontecimentos do Pidjiquiti, em 1959. O regime procede a uma metamorfose, deixámos de ter um Império Colonial, passámos a ter o Ultramar.

Dá-se o despertar do pan-africanismo, a par das superpotências surge o Movimento dos Não Alinhados, ganham notoriedade mundial depois da conferência de Bandungue, tudo mudara: Nasser decidira a nacionalização do Canal do Suez, Fidel Castro ganha uma guerrilha e pôs fim a um regime militar despótico, a África do Norte mostra-se recetiva à independência de todos os povos africanos. E o autor desfia o corolário dos acontecimentos a partir dos tumultos angolanos, em 1961, vê os EUA a apoiar Holden Roberto, o presidente Kennedy vai se ruma dor de cabeça para Salazar, crescem os contingentes para Angola, o ditador vê-se obrigado a uma iniciativa reformadora, esta vai ser liderada por Adriano Moreira, aboliu o estatuto de indígenas, desencadeia um processo de grande renovação da legislação ultramarina. A luta armada eclode na Guiné e depois em Moçambique. Cabral passara bastante tempo a planear a estrutura do movimento que juntasse o máximo possível de etnias guineenses, enquanto se aliciavam jovens no interior da Guiné para se juntarem ao PAIGC em Conacri, obtiveram-se apoios da China e da União Soviética e da Checoslováquia para formar a armar os guerrilheiros, da ideologia cuidada de Cabral. Dele diz David Moreira: “Político exímio, montou uma complexa teia de alianças que ainda hoje, mais de cinquenta anos volvidos, se continua a desvendar e da qual fizeram parte países asiáticos, europeus, americanos e, claro, africanos.”

 Dá-nos um quadro da evolução da FRELIMO em Moçambique, Marcelo Caetano substitui Salazar, o resto conhecemos todos mais ou menos com uma certa clareza: Spínola na Guiné, levou consigo um projeto que se revelou assustador para Cabral: a Guiné para os guinéus, isto quando o líder do PAIGC falava na Unidade Guiné Cabo Verde, algo com que, no fundo, os guineenses jamais estavam de acordo, os cabo-verdianos tinham sido os representantes do colonialismo e não escondiam um desprezo até de índole racial aos guineenses. A FRELIMO foi crescendo a sua influência, em dado momento, estamos já em janeiro de 1974, o ímpeto guerrilheiro atingiu metade de Moçambique, e assim como o PAIGC recebeu mísseis terra-ar, o mesmo aconteceu com a guerrilha moçambicana.

Desde 1973 que os militares do quadro permanente estão em desavença com o Governo, não gostaram da criação de um quadro especial para oficiais, lentamente irão melhorando a sua organização e irão formar o MFA. O livro de Spínola Portugal e o Futuro não deixa qualquer ilusão a Marcelo Caetano, e depois da sublevação malograda das Caldas da Rainha o regime chegou ao fim no dia 25 de abril de 1974. O processo de descolonização não ficará concluído nesse ano, haverá ainda o Acordo do Alvor, que falhou, Angola conhecerá a guerra civil a partir de 1995 e haverá igualmente a tragédia timorense. E assim David Moreira conclui a sua obra:

“Em 25 anos, Portugal passou de pária internacional a bastião do multilateralismo e defensor da democracia. Sem paralelo entre as ex-potências coloniais, num prazo minúsculo de tempo, em simultâneo a todas as suas batalhas internas, Portugal, de forma praticamente unânime, renunciou ao colonialismo.

Numa caminhada por vezes difícil, e com os retrocessos típicos dos choques com a realidade, Portugal começou a ajustar as contas com o seu passado, em particular com as páginas de Batepá e Wiriyamu. E assim foi criando uma sociedade onde se normaliza falar do Tarrafal, em que se publica a poesia Portinho Neto, em que se celebra a beleza e a história de Goa, em que se recorda Amílcar Cabral e onde a Fundação Calouste Gulbenkian restaura o Forte de São João Baptista de Ajudá.”

É uma narrativa que constitui indiscutivelmente um olhar original para uma brevíssima história do Ultramar.


                                                                    Mário Beja Santos




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