sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Arquivo da Grande Guerra - Um projecto do Exército.





Tem sido publicitado que o Exército, no âmbito da sua participação nas comemorações do centenário da Grande Guerra, vai finalmente organizar os fundos documentais de que é detentor, relacionados com a participação portuguesa na guerra. É uma boa notícia. Todos nós esperamos, em especial a comunidade académica e universitária, que o trabalho a efectuar seja de qualidade, planeado e executado com cuidado científico e sem excessiva interferência nos trabalhos de investigação em curso.
Como antigo director do Arquivo Histórico Militar (entre 1993 e 2007) e como investigador dessa época só posso congratular-me por o Exército se dispor a efectuar os trabalhos que há muito vinham sendo reclamados. Mas, se me é permitido, gostaria de partilhar algumas preocupações que me ocorrem. Faço-o publicamente porque elas são preocupações de carácter geral, não envolvendo qualquer crítica ou desacordo.
   
Entrada do edifício do Estado-Maior do Exército, lado de Santa Apolónia, porta de acesso ao Arquivo Histórico Militar. Foto de Aniceto Afonso, 2007.
 

Quais são então essas preocupações?
Em primeiro lugar, a constituição da equipa. O tratamento de arquivos e fundos documentais tem hoje regras muito específicas, normas e procedimentos completamente definidos, que fazem parte da formação e actuação dos membros da comunidade arquivística. É pois necessária uma ligação à autoridade nacional arquivística (o Arquivo Nacional) e a inclusão de técnicos desta área na equipa executiva do trabalho.
Em segundo lugar, a relação com a universidade. Felizmente muitas universidades estão hoje preparadas para abordar e investigar temas de história contemporânea, existindo em muitas delas Centros e Institutos próprios para esta área, assim como departamentos de Ciências Documentais. O Exército só teria a ganhar se estabelecesse protocolos com uma ou várias Universidades, no sentido de a organização dos fundos da Grande Guerra poder ser acompanhada por especialistas universitários deste âmbito.
 
Pátio dos canhões, porta de entrada no Arquivo Histórico Militar. Foto de Aniceto Afonso, 2007.

 
Em terceiro lugar, as investigações em curso e aquelas que serão iniciadas durante este período comemorativo. Organizar um arquivo pode implicar uma enorme interferência na sua documentação, tudo dependendo do plano de abordagem e da profundidade necessária à reconstituição e reorganização dos processos. Ora, esta seria a pior altura para retirar do acesso à leitura os fundos documentais em causa, pois será este o período em que mais incentivos surgirão para o estudo e para a publicação de trabalhos sobre o assunto. Esta situação merece uma ponderação cuidada da comissão que se prepara para dar andamento ao projecto do Exército.
Em quarto lugar, a informatização. Existem hoje, felizmente, no mercado nacional, programas informáticos de gestão documental adequadamente preparados para gerir a reorganização de fundos arquivísticos. Os que principalmente têm sido usados pelo Arquivo Histórico Militar resumem-se a dois, mas julgo que serão perfeitamente adequados ao trabalho que é necessário efectuar. Um, é o Digitarq, comercializado pela empresa Keep Solutions (distribuído gratuitamente pelo Arquivo Nacional, embora impedido por este de ser desenvolvido para além da sua actual versão 3); o outro é o ArqHist, desenvolvido pela empresa SHP, possuidora do portal de pesquisa inter-arquivos InfoGestNet, acessível on-line e através do qual é possível, já hoje, aceder às outras bases de dados do próprio Arquivo Histórico Militar. Julgo que a comissão deve também neste campo ponderar vantagens e custos para determinar a melhor opção. O que nunca deve, pela má experiência anterior, é tentar construir um projecto informático próprio.
 
 
Caixas do arquivo do C.E.P. num dos depósitos do Arquivo Histórico Militar. Foto de Aniceto Afonso, 2007.




Em quinto lugar, as prioridades. Os principais núcleos da documentação relacionada com a Grande Guerra estão dispersos na actual organização do Arquivo Histórico Militar e porventura, assim devem continuar. São os seguintes, se não estou em erro:

- O Arquivo do Corpo Expedicionário Português. Este é de longe o mais importante acervo documental do AHM relacionado com a Grande Guerra. Tem cerca de 3.000 caixas de documentação e inclui, para além do C.E.P. propriamente dito, também os fundos documentais da Divisão de Instrução, da Divisão Auxiliar, do Estado Maior do Exército, do Quartel General Base, entre outros menores. Na organização actual do AHM constituem a 35ª Secção (C.E.P.) da 1ª Divisão (Operações em Portugal e na Europa).

Militares portugueses numa trincheira na Flandres. Foto de Arnaldo Garcês, 1917/18,
colecção do AHM.


- A documentação relacionada com Angola e Moçambique. A este propósito convém dizer que a documentação essencial destas frentes da campanha da Grande Guerra se encontra no Arquivo Histórico Ultramarino, pois as expedições militares para as colónias eram organizadas pelo Ministério das Colónias, sendo os militares mobilizados transferidos de Ministério. Mas existe ainda documentação significativa referente a cada um destes territórios nas Secções 2ª (Angola) e 7ª (Moçambique) da 2ª Divisão (Ultramar/Colónias).

- Os três fundos especiais (Mapoteca, Fototeca e Iconografia), que incluem espécies e colecções com referência à Grande Guerra. Só me pronunciarei aqui sobre a Mapoteca, que teria toda a vantagem em usar os instrumentos de descrição e de divulgação que estiveram na base do tratamento do património cartográfico do Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar, actualmente na dependência da Direcção do Serviço de Infra-Estruturas do Exército (acessível on-line).

- A colecção de boletins individuais dos militares que fizeram parte do C.E.P. (Secção 35A da 1ª Divisão).

- A Secção 36ª da 1ª Divisão referente ao período da Guerra, mas sem relação directa com as operações militares.

Toda esta documentação tem estado acessível ao público, sem quaisquer restrições, desde muito antes da minha passagem pelo Arquivo Histórico Militar e, que eu conheça, não existe nenhuma documentação especialmente classificada e retirada do acesso público, pelo que é completamente infundada a ideia de que existem baús ou segredos na documentação que agora vai ser arquivisticamente tratada. Existem mesmo alguns especialistas que conhecem a documentação a fundo, devendo eu destacar, entre todos, o único que efectuou um estudo sistemático desta documentação, ao longo dos muitos anos que tem dedicado ao seu estudo - o coronel (e professor universitário) Luís Alves de Fraga, a quem me ligam laços de amizade e de muita admiração pelo seu trabalho de investigação e de seriedade científica.


 
Oficiais portugueses do C.E.P. na frente europeia. Foto de Arnaldo Garcês, 1917/18, colecção do AHM.

Finalizando este meu apontamento, que já vai longo, diria:

- Que se torna necessário estabelecer prioridades para este enorme projecto, que tenham em conta algumas das condicionantes (e outras) que apontei;

- Que seria importante tornar acessível, logo que possível, os boletins individuais dos militares do C.E.P. (Secção 35A/1ª Divisão), devidamente digitalizados. De uma forma geral os países participantes na Grande Guerra já disponibilizam on-line acesso a estes boletins;

- Que seria de elementar bom senso consultar investigadores, arquivistas e conhecedores da documentação concreta em apreço;

- Que existisse sensibilidade e prudência na abordagem e planeamento da intervenção, minimizando as consequências para as investigações em curso e para a crescente procura a que os fundos vão ser sujeitos neste período de aproximação das comemorações centenárias.

Finalmente, o meu contributo tem um carácter positivo, dou-o através deste testemunho pessoal, mas tenho estado, estou e sempre estarei disponível para colaborar, dentro das minhas capacidades e limitações, com o Exército e os seus responsáveis. Sem outro interesse que não seja o bem público e o funcionamento das instituições.

 
Lisboa, 27 de Dezembro de 2012
Aniceto Afonso
 

7 comentários:

  1. Mário Martins dos Santos28 de dezembro de 2012 às 11:54

    Boas achegas camarada e amigo.

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  2. Muito bem este parecer do coronel, licenciado em História, Aniceto Afonso pela oportunidade e profundidade. Na sequência de algumas conversas anteriores recordo a conveniência em tb se trabalhar a preparação da entrada de Portugal na Guerra de 1914/18 com base no que se passou na Embaixada de Londres com protagonismo do, na altura Ministro (hoje seria Embaixador), Manuel Teixeira Gomes, antigo Presidente da República.
    Um abraço de parabéns,
    António Pena.
    António Pena.

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  3. Uma vez mais todo o seu reconhecido e reputado saber nesta matéria está aqui evidenciado.
    Espero e desejo, seja lido e "ouvido" porque não falta quem só "ouça" aquilo que pensa "ensurdecendo" em relação ao que outros dizem.

    José Faustino

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  4. MAis uma vez um esclarecido trabalho da Camarada Aniceto Afonso.
    Parabens pela oportunidade e pelo conteúdo.
    Uma Baraço
    Cruz Fernandes

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  5. Mais uma vez vens levantar as tampas de sepultura com que as Instituições Nacionais, e nomeadamente as FFAA, costumam selar os arquivos documentais da história portuguesa. Sempre me doeu que os arquivos e as bibliotecas portuguesas fossem sempre preteridas nos orçamentos quando na maior parte dos nações o investimento orçamentado para estas fontes de conhecimento é sempre classificado como o mais rentável.
    Com este valioso testemunho o Cor Aniceto Afonso volta, mais uma vez, a mostrar a sua qualidade de cidadão e de militar oferecendo o seu saber e produto de muito trabalho sem reclamar mais valias ou reconhecimento.
    Espero bem que os responsáveis das Instituições envolvidas tenham a inteligência e a cultura suficientes para reconhecer a mais valia, económica e social, de um bom e persistente sistema dos arquivos nacionais.
    Aproveitar as comemorações do centenário da GG 14-18 para retirar as tampas de sepultura dos nossos arquivos é uma esperança e uma exigência cidadã.

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  6. Cor Aniceto Afonso
    a sua abordagem ao projecto da Grande Guerra é sem dúvida a forma mais correta e esclarecida de avançar para um projecto desta dimensão, demonstra que continua a ser uma das pessoa que mais conhece e sabe sobre o património arquivístico do Exército e que tem a noção exata do que é necessário para garantir o tratamento e a disponibilização desta documentação tão importante para a Instituição castrense, para as Universidades, para investigadores portugueses e estrangeiros e para o cidadão em geral...
    Mas infelizmente não é nada disso que se está a fazer...está a passar-se uma informação incorrecta à comunicação social e ao público em geral.
    Foi apresentado um projecto à comissão que apontava para a execução dos objectivos que abordou no seu apontamento mas esse foi descartado por implicar um investimento dedicado para a realização do projecto...e mais não é necessário dizer!
    Cunha Roberto

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  7. Também era importante que uma simples fotocópia custasse menos de 0,30€

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