A capa da revista E, do Expresso de 4 de Abril de 2020 provocou muitos comentários negativos nas redes sociais por se considerar que compara o presidente da República e o primeiro-ministro portugueses a Winston Churchill, primeiro-ministro britânico durante a II Guerra Mundial.
O texto inscrito na capa estimula, efectivamente, essa comparação: «Winston Churchill tornou-se um herói devido à II Guerra Mundial. Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa são líderes à altura desta pandemia?». Embora na forma interrogativa, a comparação existe no facto de a segunda frase estar a seguir à primeira, criando uma falácia consequencial: a frase B é consequência da frase A, caso contrário não estaria a seguir à primeira. Deste modo, o convite à comparação está presente: neste pequeno texto, a revista do Expresso considerou apropriado que o líder britânico (e mundial) na guerra de 1939-45 seja tomado como exemplo (hipotético, dada a interrogativa) para os leitores considerarem Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa como «heróis» «à altura» de Churchill. Ao mesmo tempo, a revista considera legítimo que se considerem no mesmo patamar líderes, quaisquer que sejam, em tempo de guerra real e líderes em tempo de «guerra», com aspas, como tem sido considerada a pandemia e a consequente coronacrisis. A hipótese do jornal é também atrevida por permitir-se imaginar essa comparação entre um líder de uma guerra que já terminou, que pode ser avaliada historicamente, e uma crise que não estará ainda a meio. Quer dizer, permite-se comparar uma avaliação do passado com uma avaliação do futuro, o que em termos científicos é um erro inaceitável e e termos jornalísticos é um erro gritante, se bem que prática comum do jornalismo desde há pelo menos uma década.
Como acontece na imprensa, o texto remete para o interior, para artigos de Henrique Monteiro e de Ângela Silva (esta uma espécie de porta-voz de Marcelo Rebelo de Sousa na imprensa), textos que não analiso, porque analiso apenas a capa, que revela a ousadia de comparar os dirigentes políticos portugueses a Churchill.
Essa ousadia é mais forte ainda na ilustração, porque a ilustração não implica a interrogação presente no texto verbal.
A fotomontagem mostra uma fotografia de Churchill em plano médio aproximado, com o preto e branco acrescentado no fundo negro, a conotar o passado. Embora não seja possível verificar se o negro do fundo faz parte da fotografia original ou se foi acrescentado, pode dizer-se que ele serve os efeitos desejados pela capa, de transmitir um momento difícil («negro»), de concentrar toda a luz, e assim a atenção, na figura de Churchill e de o associar ao passado e a um passado para ser tomado como realista, dada a ligação que, historicamente se veio a atribuir, até hoje, entre o «realismo» e o preto e branco. Se aí temos o passado, o presente é dado aos leitores pela presença e pela cor da máscara acrescentada a Churchill. A máscara é um índice da actual pandemia.
Churchill está, pois, de máscara antivírus, isto é, o leitor é confrontado com uma imagem do que nunca aconteceu na realidade, com uma falsificação histórica ao serviço de um conjunto de ideias. É uma falsificação porque nunca existiu; e é ao serviço de uma ideia, porque pretende transmitiu ideias através da junção da máscara a Churchill.
Quais são essas ideias?
Em primeiro lugar, que a pandemia e a coronacrisis se assemelham à II Guerra Mundial.
Em segundo lugar, que quem se destaca(r) na coronacrisis é comparável a quem se destacou como líder na II Guerra Mundial.
Em terceiro lugar, numa consideração multimodal (imagem e texto verbal), que Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa são comparáveis a Churchill. Se o texto verbal, se fica pela interrogativa (a revista não quis exagerar no texto verbal, que é mais facilmente desmontável criticamente por qualquer um), a junção da imagem e do texto transforma a frase verbal numa afirmação: quem lidera durante a coronacrisis é comparável a Churchill.
Acrescento dois aspectos contextuais.
Em primeiro lugar, não só Churchill nunca terá usado uma máscara daquelas (não há fotografias de Churchill com uma), como Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, se a usaram, foi em raríssimas situações pontuais (visitas a empresas ou hospitais). Não a usaram em reuniões com mais ou muito mais de cinco pessoas, como as duas já realizadas no Infarmed. Como sabemos, Portugal não dispõe de máscaras suficientes nem para o pessoal hospitalar na luta contra a pandemia, quanto mais para a população.
Em segundo lugar, a glorificação do presidente e do primeiro-ministro tem sido uma marca constante dos media do grupo Impresa, com destaque para o Expresso e para a SIC. Esta comparação verbal-visual de ambos com Churchill na capa da E, que considero um vómito, faz parte dessa linha editorial tornada notícias e reportagens.
Em terceiro lugar, numa nota pessoal, pareceu-me, quando vi a capa pela primeira vez, que a revista censurava Churchill, calava-o com uma mordaça. Sendo ele um defensor acérrimo da liberdade de expressão e de imprensa, o que não acontece com tanta gente em Portugal, incluindo alguns líderes, afligiu-me.
Eduardo Cintra Torres
Um fantástico exercício de semiótica... fantástico no sentido exato. O Eduardo Cintra Torres afligiu-se mesmo com a máscara no Churchill? Ná, não afligiu nada. A máscara, aliás, não é uma mordaça contra a liberdade de expressão. Quer representar a proteção contra o vírus. Como dizem os ingleses, keep it simple.
ResponderEliminarFaltou-lhe o "s" final do "kiss" : keep it simple, stupid"...
ResponderEliminarHow rude!
ResponderEliminarNão respondo a cobardes.
ResponderEliminarEduardo Cintra Torres
Respondeu. Ainda não aprendeu que um gentleman não liga a provoçações.
EliminarEste sr Sintra só diz disparates um dos quais é que a SIC e o Expresso tem apoiado o Governo
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