terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Como mentir com estatísticas.



 

 



É antigo o hábito de os portugueses oscilarem entre a megalomania (“demos novos mundos o mundo”) e um complexo secular de viverem numa “choldra” porque lá fora é que é bom.
Anteontem voltou a aparecer mais uma estatística ufanista. Vinha em parangonas:
 
As dez línguas mais faladas do mundo
 
Mandarim: 848 milhões
Espanhol: 414
Inglês: 335
Português: 261
Hindi: 260
Bengali: 193
Russo:
167
Japonês: 122
Javabés (indonésio): 84
Alemão: 78
 
O título daquele clássico livrito How to lie with statistics encaixa em cheio aqui. Na verdade, para estar correcta, essa notícia deveria anunciar As dez línguas MATERNAS mais faladas do mundo. Porque, sem essa qualificação, a seguir ao mandarim, a mais falada do mundo é de certeza o inglês, já que são muitíssimos milhões os que o falam como segunda língua. Mais: o quarto lugar ocupado por Portugal nessa classificação não categorizada também me suscita dúvidas: quantos angolanos, moçambicanos e guineenses não falam português? E os que o falam, quantos como língua materna? E, no entanto, nessa contagem tudo o que é habitante de Angola e Moçambique figura como falante de português.
O nosso ufanismo nacionalista empola também os números e não gosta de prestar atenção ao facto de o português estar bem mais longe da importância do inglês e do espanhol (que é outra questão, mas bem relevante) do que essa tabela torna patente.
Contudo, números assim fazem bem à alma lusa, animam-na. E ela, que está tão carente de mimos, aprecia mentirinhas destas, sobretudo se trazem um rosto científico em forma de estatística.
 
 
Onésimo Teotónio de Almeida
 
 
 
P.S. – Acabo de jantar com o meu aluno Roy Chen, americano filho de pais chineses. Fala um dialecto "chinês" que é supostamente mandarim, mas não é nada. Na região onde nasceu, o dialecto que toda a gente fala tem pouco a ver com o mandarim. Todavia, oficialmente o governo conta-o como mandarim. E quantos chineses na imensa China haverá assim (a rima é intencional) falando um dialecto que não é mandarim, mas figura como tal, inflacionando o número de falantes da língua que a China se orgulha de ser a mais falada do mundo?
Quer dizer: também os chineses trabalham para as estatísticas.
(Os pais do Roy não são "campesinos" de um lugar remoto. São ambos doutorados.)
 

5 comentários:

  1. Muito bem. Haja alguém a chamar a atenção para o obvio ! Eu diria que mesmo o conceito de "lingua materna" tem muito que se lhe diga. No meu caso, por exemplo, aprendi o Português e o Francês quase ao mesmo tempo e, ainda hoje, falo e escrevo todos os dias nas duas linguas, consoante os meus interlocutores e o contexto. Isto faz de mim um falante de Português ou um falante de Francês ?

    Para além disso, é preciso ignorar muito o que seja uma lingua (um conjunto de praticas delimitado de forma necessariamente arbitraria, na definição de Saussure) para aceitar esta estatistica. E alias, so quem não vive neste mundo ignora que, hoje em dia, um quadro médio que trabalha em Lisboa lê mais facilmente, e muito mais regularmente, um texto publicado no inglês simples (mas elegante) do The Economist, do que um texto escrito no Português do século XVI, ainda que seja literario.

    Como é mesmo a citação de M. Twain : "There are three kinds of lies: lies, damned lies and statistics".

    Boas

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  2. Essa famosa frase creio que é de Benjamin Disraeli.

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  3. Essas estatísticas não têm origem em Portugal, mas sim normalmente em países anglo-saxónicos, que são os que têm a mania das listas, e já se sabe que o rigor das listas é o que é. Obviamente, é em relação à língua materna, porque já se sabe que é praticamente impossível contabilizar o número de pessoas que sabem outras línguas para além da sua língua materna. Do mesmo modo, existem países contabilizados na lista como de língua inglesa, que falam… línguas nativas, que não o inglês, a língua do colonizador. Parece-me que na Nigéria, por exemplo (com uma grande população) muita gente passa bem sem ser fluente no inglês… Portanto, much ado about nothing, caro Onésimo.

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  4. Pois então aí vai esta estatística acabada de chegar e certamente feita no mundo anglo-saxónico. Confirma o meu comentário sobre a contagem que se faz dos falantes de português.

    http://www.stellabortoni.com.br/index.php/4437-hemisferio

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