segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Portugal, 1940.

 
 

Bernard Hoffman (1913-1979)

 
 
 
Entre Junho e Julho de 1940, durante cinco semanas, esteve entre nós o fotógrafo Bernard Hoffman (1913-1979), ao serviço da revista Life, acompanhado de um editor e de uma jornalista daquela publicação.
Em 29 de Julho, foi publicada na Life uma extensa reportagem de nove páginas sobre o Portugal de Salazar, claramente favorável ao regime. Ao que parece, Hoffman e os outros colaboradores da revista foram acompanhados desde os Estados Unidos pelo dr. Celestino Soares, que se encontrava naquele país no cumprimento de uma missão de que fora incumbido pelo governo português (ver aqui). A reportagem da Life reveste-se, assim, de um notório cariz propagandístico, não sendo provável que Hoffman tenha sido o autor dos textos. De qualquer forma, é o seu nome, mais tarde celebrizado por ter sido o primeiro fotógrafo norte-americano a captar imagens de Hiroshima e de Nagasáqui, que para sempre ficará associado a esta reportagem da Life, de que aqui se publicam os principais excertos, podendo ser consultada na íntegra aqui e as imagens vistas aqui.
 


 
 
Portugal: a guerra tornou-o a porta de entrada na Europa
 
         Certa vez, um Papa dividiu o Novo Mundo entre Portugal e Espanha. Nos séculos XV e XVI, os descobridores portugueses, sob a égide de Vasco da Gama, partiram rumo às Américas, à África, à Ásia, deram ao Brasil a sua língua e construíram um império de que governam ainda uma grande parcela. Mas nunca um império teve vida tão efémera. Portugal entrou em declínio de forma tão rápida e há tanto tempo que foi praticamente esquecido pelo resto da Europa e pela América.
         Pela primeira vez em muitos séculos, este ano Portugal tornou-se importante para a América. O país tornou-se no canal por onde tudo se movimenta – pessoas, mensagens, diligências diplomáticas – entre a América e a Europa. Ao romper as vias de comunicação com o norte da Europa, a guerra colocou Portugal no lugar que a geografia sempre lhe destinou – não um canto recôndito da Europa, mas a sua porta de entrada. 
         No presente, a Alemanha ameaça encerrar essa porta e até invadir o país. Portugal é um aliado histórico de Inglaterra, uma brecha no bloqueio germânico e uma excelente base para o lançamento de ataques a Gibraltar e às rotas navais.
         Quem tenha visto Portugal há 15 anos pode ter pensado que ele bem merecia desaparecer. Era um país governado de uma forma atroz, na bancarrota, esquálido, flagelado por doenças e pela pobreza. Vivia-se tal confusão que na Liga das Nações se criou um termo para descrever o grau zero de riqueza de um país: «português». Então, o Exército derrubou a República, que conduzira Portugal àquele estado, e entregou o país a um líder benévolo: Salazar. De longe o melhor ditador do mundo, ele é também o maior português desde o príncipe Henrique, o Navegador, pai dos Descobrimentos.
         O governo deste país é uma tarefa árdua para um ditador. O povo, gentil e cordato, deleita-se a fazer planos e a sonhar, mas falta-lhe fibra e determinação. Depois de terem conquistado um vasto império, deixaram que dois terços dele lhe escapassem das mãos; actualmente nem conseguem tirar partido do que lhes resta. Há muitos séculos, expulsaram os Mouros, mas conservaram uma forte influência oriental – na arquitectura, na tez dos habitantes, na sua atitude para com as mulheres. Importaram escravos negros, mas assimilaram-nos em poucas gerações. Contentando-se com pouco, os portugueses gostam de jantar tarde, ficando acordados a cirandar até meio da noite, a beber vinho barato e a ouvir músicas tristes e sentimentais a que chamam fado.
         Portugal continua a ser terrivelmente pobre. Apesar dos esforços hercúleos de Salazar, 70% da população permanece iletrada. O povo alimenta-se de peixe, pão e vinho, e dois terços dos habitantes andam descalços. Mas rapidamente nos habituamos a este contraste entre a paisagem maravilhosa, salpicada de verde e branco, e a degradação das gentes. O país melhorou tanto nos últimos doze anos que este Verão, enquanto a Europa é dilacerada por um holocausto, Portugal irá destemidamente organizar uma Exposição Mundial. Este pequeno país está de cabeça erguida e, sem dúvida, merece uma trégua.
         Provavelmente, não irá tê-la. Salazar esteve ao lado da Grã-Bretanha enquanto pôde mas, desde que a Itália entrou na guerra, aproximou-se do Eixo. O ditador é um admirador de Mussolini e o seu país partilha a Península Ibérica com um grande vizinho fascista, Espanha. O Dr. Salazar vai necessitar de toda a sua sabedoria e astúcia para salvar Portugal da situação actual e para manter o país no caminho do progresso e do respeito por si próprio.
 

 
 
O ditador que construiu uma nação
 
         O que de melhor existe no Portugal dos nossos dias deve-se ao Dr. António de Oliveira Salazar, antigo professor de finanças da Universidade de Coimbra. O ditador tem todas as qualidades que faltam aos portugueses – é calmo, silencioso, ascético, puritano, dedicado ao trabalho, frio com as mulheres. Encontrou um país mergulhado no caos e na pobreza e conseguiu equilibrar o orçamento, construiu estradas e escolas, destruiu bairros degradados, reduziu a mortalidade e fez subir enormemente a auto-estima nacional. Despojado de ambições, Salazar assumiu os destinos da ditadura a pedido do Exército e mantém-se no poder por vontade do povo. Vai governando com base numa ameaça ao estilo Greta Garbo: «Acho que vou voltar para Coimbra».
         A ditadura de Salazar é branda e paternalista, concedendo aos seus adversários ampla liberdade de expressão. Salazar tem uma visão da política baseada nas doutrinas dos Papas e é aclamado por Roma como o modelo perfeito de estadista católico. O seu ideal reside num Estado forte e estável, em que todas as classes têm o seu lugar mas onde não existe igualdade de oportunidades. Trata-se de uma versão suavizada do Estado corporativista italiano, mais próxima do sistema de guildas do período final da Idade Média do que do capitalismo democrático. Os democratas podem deplorar a ditadura salazarista mas não poderão negar que a República afundou Portugal no caos, de onde Salazar o resgatou.  
 
 


 
 
 
      Os aristocratas vivem tranquilamente num passado glorioso
 
 
         A aristocracia portuguesa, uma relíquia dos tempos da Monarquia, vive em profunda reclusão, não participando nos negócios ou no governo do país e dedicando-se a cuidar dos seus jardins ou a criar cavalos para as touradas em Lisboa. Outrora, os seus membros costumavam viajar à larga até Paris, mas actualmente só uns poucos têm dinheiro para isso.
 
 
 
 
 
 
 
         O conde e a condessa da Torre, mostrados nas imagens, vivem num belo palácio lisboeta. Na juventude, o conde e os seus dois irmãos tornaram-se famosos em Lisboa pelas suas lutas com marginais munidos facas, os chamados fadistas. Aos 57 anos, o conde ainda mantém esses hábitos e, da primeira vez que a Life o contactou, estava no tribunal por causa de uma briga travada a soco. Diz-se que quando um plebeu lhe pediu a mão da filha em casamento, o conde deu uma valente sova ao jovem atrevido (mas, no final, autorizou o enlace). O conde, que é também marquês de Fronteira e Alorna, vive dos rendimentos de uma grande herdade próxima de Espanha, onde os seus empregados cultivam sobreiros, arroz e oliveiras. Tem também terras e uma casa na Índia, mas nunca sequer as viu.
         O regime de Salazar, com o seu ideal de uma sociedade estável e estratificada, permitiu que os proprietários rurais mantivessem as suas terras. Sem grande fortuna, as classes altas vivem bem, sendo muito criteriosos quanto ao que jantam e bebem, e a dormir. Ao almoço, um homem de negócios lisboeta come frequentemente três pratos diferentes de peixe, seguidos de um assado e sobremesa.
         A atitude dos portugueses relativamente às mulheres evidencia a influência dos costumes do Oriente. Os homens das classes altas nunca levam as suas esposas para convívios sociais ou encontros de negócios, e as mulheres da alta sociedade só saem para ir a casa de amigos, ao Teatro Nacional ou, mais ousadamente, ao Casino Bar, no Estoril. Mesmo no Estoril, a estância mais luxuosa do país, desde há muito que predominam os ingleses e os espanhóis. Na imagem vemos a condessa da Torre, famosa na juventude pela sua beleza, acompanhada da filha Maria Luísa, a que casou com um plebeu. Estão sentadas na Sala Amarela do seu palácio, entre grandes retratos do primeiro marquês de Fronteira e Alorna, o fundador da família, e da marquesa. À semelhança do actual, o primeiro marquês era um homem belicoso, e ajudou Portugal a libertar-se do jugo espanhol tendo-se batido, num célebre recontro, com Dom João de Áustria, no decurso da batalha decisiva do Ameixial, em 1603. Vivendo na sombra de heróis como este, o Portugal aristocrático ainda sonha ociosamente com os seus remotos mas breves anos de grandeza.
 
  Tradução de António Araújo
 
 
 

4 comentários:

  1. «Idade Médica»?! Creio que há para ali um «c» a mais... ;-)

    ... E, afinal, o que é (quase no fim) o «célebre famoso»?

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  2. Muito obrigado, já corrigi.

    Cordialmente,

    António Araújo

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    Respostas
    1. De nada, António...

      ... E sobre o texto em concreto, é o mais recente numa louvável série que vem publicando aqui no Malomil com «olhares de fora» sobre Portugal durante o período da Segunda Guerra Mundial. Textos (cartas, artigos, reportagens) sempre interessantes, mas de valias variáveis...

      ... E este é, na verdade, vergonhoso. «O Exército derrubou a República, que conduzira Portugal àquele estado, e entregou o país a um líder benévolo: Salazar. De longe o melhor ditador do mundo, ele é também o maior português desde o príncipe Henrique, o Navegador, pai dos Descobrimentos.» Patético, mas também estranhamente premonitório em relação a um determinado programa televisivo... «A ditadura de Salazar é branda e paternalista, concedendo aos seus adversários ampla liberdade de expressão.» Nem há palavras para tanto ridículo...

      Poder-se-à perguntar porque é que uma revista prestigiada de um país democrático poderia aceitar ser «câmara de eco» de uma tal propaganda... Porém, a Life não é (não foi) caso único: basta recordar o New York Times, que durante anos publicou os textos elogiosos de Josef Stalin e do PCUS escritos por Walter Duranty.

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