O Fim do Império (I): os 4 + 1
acordos de descolonização
1. Celebração dos acordos (lado português)
Com o objectivo de atribuir ao Presidente da República
a condução dos processos de descolonização e fazê-lo repartir as
responsabilidades com os demais órgãos constitucionais, a Lei n.º 7/74, de 27
de Julho (Lei da Descolonização), veio estabelecer um regime especial. Assim,
enquanto no regime geral da Lei n.º 3/74, de 14 de Maio (que definira a estrutura constitucional
provisória) competia ao Presidente da República ajustar tratados
internacionais, directamente ou por intermédio de representantes, e
ratificá-los depois de devidamente aprovados pelo Governo Provisório (artigos
7.º, n.º 9, e 16.º, n.º 1), agora o artigo 3.º da Lei da Descolonização
(acrescentado pela sua 3.ª versão[1])
determinava que cabia ao Presidente da República, ouvidos a Junta de Salvação
Nacional (JSN), o Conselho de Estado e o Governo Provisório, praticar os actos
e concluir os acordos relativos ao exercício do direito à autodeterminação
reconhecido nos seus artigos 1.º e 2.º.
Portanto, a direcção de todo este processo coube sempre
e em última instância ao Presidente da República (primeiro, o general Spínola
quanto às independências da Guiné-Bissau e de Moçambique, e, após a renúncia
deste em 30 de Setembro de 1974, o general Costa Gomes, quanto às
independências de S. Tomé e Príncipe, Angola e Cabo Verde). Mas a celebração
dos acordos de descolonização ficou sujeita a um processo próprio, em três
fases: negociação, aceitação (homologação) e aprovação.
A negociação coube a diferentes delegações “ad hoc”
(embora, no texto dos Acordos, sejam genericamente designadas como “delegações
do governo português” ou “delegações do Estado português”), sucessivamente escolhidas
pelo Presidente da República. Nem o Governo Provisório (apesar do relevante papel
desempenhado pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros, da Coordenação
Interterritorial e Sem Pasta, respectivamente, Mário Soares, Almeida Santos e
Melo Antunes) nem a diplomacia tiveram qualquer intervenção significativa nesta
fase. A negociação concluía-se pela assinatura do protocolo, a cargo da delegação
(após autorização do Presidente da República), marcando a data e o local do
acordo.
Segundo a Lei da Descolonização, a fase seguinte, de homologação,
impunha a audição da JSN, do Conselho de Estado e do Governo Provisório mas os
protocolos só foram especificamente objecto de reuniões do Conselho de Estado
(embora o texto dos acordos refira também a audição dos demais órgãos). A
aprovação (fase final) de cada acordo era da competência exclusiva do
Presidente da República – que ainda dava expressamente ordem de publicação em Diário do Governo.
Juridicamente,
à primeira vista, estaremos perante “tratados não solenes”, na forma específica
dos generalizados “acordos em forma simplificada”, bilaterais – porque, em
todos os casos, celebrados entre dois distintos sujeitos de direito
internacional: de um lado, o Estado português; de outro, os movimentos de
libertação de cada território em causa.
2. Relação dos acordos
O primeiro foi o Acordo de Argel, de 26 de Agosto de
1974, com o PAIGC. Essencialmente, limitou-se a prever o reconhecimento de jure da República da Guiné-Bissau
(marcado para 10 de Setembro de 1974) e, ainda, do direito à autodeterminação e
independência do povo de Cabo Verde (a regular posteriormente). Em minha
opinião, serviu como chave e definiu o modelo de toda a descolonização
portuguesa[2].
Logo de seguida, o Acordo de Lusaca, de 7 de Setembro,
regulou a descolonização de Moçambique,
consagrando os seguintes quatro princípios: cessar-fogo de jure, reconhecimento do direito do povo moçambicano à
independência, período transitório de transferência de poderes e declaração de
independência pela FRELIMO (a 25 de Junho de 1975).
Depois, o Acordo de Argel, de 26 de Novembro, com o
Movimento de Libertação de S. Tomé e Príncipe (MLSTP) também assentou em quatro
princípios próprios: reconhecimento do direito à autodeterminação e
independência, reconhecimento do MLSTP como “interlocutor e representante
legítimo”, período de transição e declaração de independência (a 12 de Julho de
1975) por uma assembleia eleita.
O Acordo de Alvor, de 15 de Janeiro de 1975, para
Angola, era o mais complexo. Baseava-se em seis princípios: (i) cessar-fogo;
(ii) reconhecimento do direito à independência do povo angolano; (iii)
reconhecimento da FNLA, MPLA e UNITA como “únicos e legítimos representantes do
povo angolano”; (iv) período de transição durante o qual o Estado português
transferiria progressivamente todos os poderes para os órgãos de soberania
angolana; (v) eleição de uma assembleia constituinte; e (vi) proclamação da
independência, em território angolano, pelo Presidente da República Portuguesa
ou seu representante expressamente designado. Apresentavam-se, portanto, duas
características peculiares: reconhecimento de três movimentos de libertação e
proclamação (“concessão”) de independência por Portugal. Porém, perante a
paralisação do Colégio Presidencial, do Governo de Transição e da Comissão
Nacional de Defesa e, sobretudo, como consequência da situação de guerra civil
que sobreveio, o Decreto-Lei n.º 458-A/75, de 22 de Agosto, suspendeu
(transitória e parcialmente) o Acordo do Alvor quanto aos órgãos de governo de
Angola. Mantiveram-se vigentes as várias normas dos capítulos I e II relativos
à independência e ao Alto-Comissário (cujos poderes até ficaram reforçados). E,
na data prevista, a 11 de Novembro de 1975, a independência de Angola foi
solenemente declarada pelo Alto-Comissário mas a soberania plena apenas foi
“entregue” ao povo angolano (com referência à nação angolana e ao território de
Angola). Esta solução especial adoptada por Portugal – objecto de parecer de
especialistas de direito constitucional e internacional, e como opção das reuniões
em que intervieram o Presidente da República, o Conselho de Ministros, o
Conselho da Revolução e os secretários-gerais do PS, do PPD e do PCP – resultou
do conclusivo entendimento de ser devido Portugal reconhecer o novo Estado e
ser possível fazê-lo sem simultâneo e imediato reconhecimento do governo (por
este não estar formado nos termos determinados pelo Acordo de Alvor)[3]. Por
sua vez, à mesma hora, meia-noite de 10 para 11 de Novembro, os movimentos de
libertação (o MPLA em Luanda, a UNITA no Huambo e a FNLA no Ambriz) «procederam
a uma pressurosa e algo embaraçosa proclamação da independência de um país
partido em três»[4].
Portugal não reconheceu qualquer dos governos; as declarações unilaterais da
FNLA e da UNITA não obtiveram êxito; o Governo de Luanda, promovido pelo MPLA,
obteve sucessivos reconhecimentos (de Estado e de Governo) mas só após alguns
anos alcançou reconhecimento universal[5].
Por sua vez, Portugal completou a sua concessão de independência, reconhecendo o
Governo da República Popular de Angola em 23 de Fevereiro de 1976 (foi o 82.º
Estado a fazê-lo)[6].
À primeira vista, o estatuto de Cabo Verde foi
juridicamente diferente de todos os anteriores pois, além de o Estado português
não ter reconhecido de jure qualquer
movimento de libertação como representante “autêntico e exclusivo” do povo cabo-verdiano,
não foi formalmente publicado um (específico) acordo de descolonização, sim
apenas um (mero) Protocolo, por sua vez, desenvolvido através de uma lei
interna portuguesa. Apesar disso, não é de considerar o caso cabo-verdiano como excepção ao quadro dos acordos de
descolonização, por três razões conjugadas: (i) o citado Acordo de Argel, de 26
de Agosto, celebrado com o PAIGC, contém compromissos e princípios gerais sobre
a descolonização de Cabo Verde (embora delineie para esta um processo diferente
da descolonização da Guiné-Bissau); (ii) o PAIGC foi de facto reconhecido pelo Estado português como único e legítimo
representante do povo de Cabo Verde; e (iii) o Governo português definiu com o
PAIGC, através de um Protocolo (espécie de “acordo internacional”), assinado em
Lisboa a 19 de Dezembro de 1974, os termos e as condições dessa independência e,
ainda, regulou o (transitório) Estatuto Orgânico de Cabo Verde através da Lei
n.º 13/74, de 17 de Dezembro[7].
Ora, o referido Protocolo continha o compromisso
político que justificara a aprovação deste Estatuto Orgânico de Cabo Verde
(conforme reconhece o artigo 3.º do Protocolo) e enunciava os seus princípios
gerais. Muito embora do Estatuto não conste qualquer referência expressa ao
PAIGC, já o Protocolo continha uma série de declarações políticas do Governo
português e do PAIGC quer quanto à sequência do processo de independência, quer
de salvaguarda dos mútuos interesses dos povos de Portugal e Cabo Verde, quer
quanto às futuras relações entre ambos os Estados. Aconteceu porém que tal
Protocolo – cuja validade formal dependia da aprovação pelo Presidente da
República portuguesa e pelo secretário-geral do PAIGC (cfr. artigo 19.º) –
embora assinado por representantes de ambas partes, não foi objecto de
publicação oficial[8]. Assim, apesar destas incidências e
especificidades procedimentais e tal como também defendeu recentemente um
constitucionalista cabo-verdiano, deve entender-se que o conjunto deste «mesmo
processo político especial» se pode e deve globalmente designar “Acordo de
Independência” da República de Cabo Verde[9].
Em suma: a descolonização das cinco colónias africanas
portuguesas realizou-se por via de acordos internacionais. Os cinco (melhor:
quatro mais um) acordos de descolonização, apesar das suas especificidades e
diversas vicissitudes, obedeceram a um só modelo: reconhecimento e transição
para a independência total e imediata, celebração directa, bilateral e
exclusiva com os movimentos de libertação nacional dos respectivos territórios
(três na caso angolano e um abrangendo simultaneamente a Guiné-Bissau e Cabo
Verde).
(conclui no
próximo “post”)
António Duarte
Silva
[2] Ver A Independência da Guiné-Bissau
e a Descolonização Portuguesa, Porto, Edições Afrontamento, 1997, pp. 261 e
segs., e “Guiné-Bissau: libertação total e reconhecimentos portugueses”, in
Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira (org.), O Adeus ao Império – 40 Anos de
Descolonização Portuguesa, Lisboa, Lisboa, Nova Vega, 2015, pp. 122/124.
[3] Cfr. Pedro
Pezarat Correia, Descolonização de Angola
– A jóia da coroa do império português, Lisboa, Editorial Inquérito, 1991,
nomeadamente pp. 170/175. Muito resumidamente, a posição portuguesa também é
apresentada por Fernando Tavares Pimenta, “O processo de descolonização de
Angola”, in Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira (org.), O Adeus ao Império – 40 Anos de
Descolonização Portuguesa, cit., pp. 173/174, e Alexandra Marques, Segredos da Descolonização de Angola, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 2013, p. 477.
[4] Onofre dos
Santos, Os (meus) dias da Independência
Lisboa, Editorial Notícias, Lisboa, 2002, p. 11.
[5] Entre outros,
Marcolino Moco, Angola – estado-nação ou
estado-etnia-política?, Luanda/Lisboa, Edição do Autor, 2015, pp. 78 e 97,
sustenta que a independência de Angola resultou de declaração unilateral, promovida pelo MPLA. A
afirmação não é correcta, pois a independência de Angola fundou-se no artigo
4.º do Acordo do Alvor, que se manteve vigente e foi cumprido.
[6] O documento
histórico mais importante é a “Súmula da reunião extraordinária do Conselho de
Ministros (22 de Fevereiro de 1976) tal como elaborada pelo respectivo
Secretariado Permanente”, publicada apud Costa Gomes Sobre
Portugal – Diálogos com Alexandre Manuel, Lisboa, A Regra do Jogo, 1979,
pp. 165/175 (embora alguns intervenientes na reunião não distingam
rigorosamente o reconhecimento de Estado do reconhecimento do Governo – do
MPLA, única questão realmente em causa).
[7] Sobre a
discussão deste Estatuto Orgânico no Conselho de Estado, cfr. Maria José Tíscar
Santiago, O 25 de Abril e o Conselho de
Estado – A Questão das Actas, Lisboa, Edições Colibri, 2012, pp. 201/203.
[8] Mas está
expressamente referido nos considerandos do Acordo Geral de Cooperação e
Amizade entre Portugal e Cabo Verde. Segundo Almeida Santos, além da sua
autoria da Lei Eleitoral, o Protocolo foi elaborado no decurso de uma reunião
que teve com Pedro Pires, e «praticamente fi-lo sozinho, mas ele lá discutia
uma palavra ou outra» – cfr. Almeida Santos (entrevista a São José Almeida),
“Quem mandou no processo de descolonização foi o MFA”, in Público, de 10/5/2004, p. 14.
[9] Mário Silva, Contributo para a História
Político-Constitucional de Cabo Verde – 1974-1992, Coimbra, Almedina, 2015,
p. 19.
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