sexta-feira, 5 de julho de 2019

Mão portuguesa no Lago Maggiore.

 
 











Fotografias de António Araújo.




No arquipélago das Ilhas Borromeu, na parte alpina do Lago Maggiore (ou Lago Maior), Carlos III iniciou em 1632 a construção de um opulento palácio dedicado à sua mulher, Isabella D’Adda (daí o nome actual da ilha, Isola Bella).
 
         O palácio tem uma magnífica colecção de sete tapeçarias flamengas, produto de uma doação feita em 1797 pelo cardeal Vitaliano VII ao seu sobrinho, Gilberto V. As tapeçarias encontravam-se originalmente em Milão, e só foram transferidas para a Isola Bella em 1848, onde em 1886 foi construída a «Galeria das Tapeçarias» que ainda hoje existe, e onde se exibem seis das sete peças da colecção.
 
         As sete tapeçarias foram feitas por volta de 1565 em Bruxelas, provavelmente na oficina de Pieter Coecke van Aalst (1502-1550), a partir de cartões desenhados por Michiel Coxie (1499-1592), quanto às figuras humanas, e por Wiliem Tons (ou Tonis, Thonis ou Thoens), que desenhou as paisagens e os animais.
 
         É difícil determinar quem as encomendou, mas uma das hipóteses mais plausíveis aponta para o poderoso cardeal de Lorraine, Charles de Guise (1525-1574), o que talvez explique não só a extraordinária qualidade das peças mas também o facto de, sob forma alegórica, abordarem o tema do pecado e da redenção.
 
         Em 1654, foram compradas pelo cardeal Mazarino e, mais tarde, um terceiro cardeal, Vitaliano VII Borromeu, levou-as para Itália, onde permanecem, tendo sido objecto de profundo e recente restauro, efectuado na Bélgica em 2012.
 

A terceira tapeçaria
 
         Interessa-nos sobretudo a terceira tapeçaria, em que no lugar central uma leoa alimenta a sua cria, à sombra do arvoredo. À esquerda, um leão transporta a sua presa na boca; à direita, dois grandes lagartos. Num dos ramos da árvore, um macaco; ao fundo duas girafas, do lado esquerdo, e, do lado direito, um elefante em luta com um rinoceronte indiano.
 
O sentido alegórico deste bestiário não é difícil de descortinar, tratando-se de uma alusão ao livre-arbítrio: Deus permite a existência do mal, mas apoia os justos na sua luta contra o pecado (cf. Gli Arazzi dell’Isola Bella, 2013, s/p.).  
 
         A legenda é retirada da Bíblia: «Por meio da tua sabedoria formaste o ser humano para dominar todas as criaturas que fizeste» (Livro da Sabedoria, 9, 1-2).
 
         Não é este o lugar próprio para explorar todos os (múltiplos) significados das tapeçarias da Isola Bella, nem sequer desta tapeçaria em particular, nomeadamente dos seus medalhões.
 
Mas sempre se dirá que a figuração da luta do elefante com o rinoceronte merece uma referência, tanto mais que a não tenho encontrado nas obras que consultei sobre estas tapeçarias das ilhas Borromeu.




 
 
         Observamos, como se disse, um elefante à luta com um rinoceronte (e, de resto, noutras tapeçarias vemos mais elefantes), o que é claramente uma inspiração dos autores antigos, com destaque para Plínio.
 
Mas, se repararmos bem, o rinoceronte surge representado de uma forma muito parecida à que Albrecht Dürer o figurou, e que, aliás, não anda longe de outras representações coevas, como a de Hans Burgkmair.
 
         O interessante é encontrar nesta tapeçaria o rinoceronte de Dürer, prova de que existiu uma indiscutível mediação, entre os autores clássicos e a tapeçaria flamenga, do episódio da Ganda de Modafar, que em 1515 o nosso rei D. Manuel I fez combater com um elefante, entre o Palácio da Ribeira e a Casa da Índia, actual Terreiro do Paço.
 
         Não foi caso único, e há outras tapeçarias que mostram lutas entre elefantes e rinocerontes. Porventura, terá aqui havido influência da feitoria portuguesa na Flandres, ou não, ponto que mereceria mais estudo.
 
Por ora, o que importa notar é que, algumas décadas depois do combate animalesco em Lisboa, travado em 1515, um artista flamengo, circa 1565, representou essa refrega, essa «justa», numa tapeçaria de aparato, que hoje se encontra numa das ilhas do Lago Maior, em Itália.
 
         Há, pois, uma «mão portuguesa» no arquipélago Borromeu, o que, por ser algo tão singular, se trouxe à consideração e crítica dos distintos leitores deste blogue.

 
 

António Araújo  

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