terça-feira, 26 de outubro de 2021

ALCORA, a aliança “ímpia” entre o Portugal “multirracial” e o Apartheid.



 

 

Nos últimos anos a bibliografia sobre o Exercício ALCORA tem-se vindo a ampliar graças às investigações nos arquivos que conservam documentação sobre a guerra colonial. Avulta dentre a bibliografia o trabalho de Vicente de Paiva Brandão, ALCORA, a derradeira tentativa de manter o Ultramar Português, Casa das Letras, 2020. Tudo terá começado com a tese de doutoramento do autor a que se deu um alindamento posterior. Reconheça-se que há singularidades na pesquisa de Paiva Brandão, percorreu arquivos nacionais e estrangeiros, procedeu a História Oral e recolheu opiniões de intervenientes que acompanharam o desenvolvimento deste protocolo.

Dá-nos em primeiro lugar uma síntese da História da África do Sul, que nos poderá ajudar a compreender a essência do poder branco e a perceção que o país do Apartheid possuía sobre a importância crucial de ter o respaldo do Império Português. O autor dá-nos neste ponto uma evolução do pensamento sul-africano ao longo do período que se iniciou com a descolonização do continente africano e das iniciativas tomadas para a aproximação com o Estado Novo, impunha-se, na lógia de Pretória, uma defesa mútua dos valores da civilização ocidental.

A política de Salazar era, por um lado, recetiva à cooperação mas, por outro lado, reticente quanto às ambições hegemónicas da África do Sul e ao risco de aparecer na comunidade internacional como parceiro de uma política racista, como o autor observa: “No caso português, duas ordens de razões justificavam que se procurasse discrição: primeiro, tal colaboração existia e era uma mais-valia para as forças lusas que não convinha publicitar; por outro lado, a Lisboa não interessava a colagem a Pretória, pois esta revia-se no sistema do Apartheid, doutrina que colidia com o multirracialismo veiculado por Portugal. Também no que dizia respeito à Rodésia, o executivo luso pautava-se pela prudência, devido às desavenças entre Ian Smith e o governo de Londres, agravadas após a Declaração Unilateral de Independência daquele território em relação ao Reino Unido. Este hábil jogo diplomático prolongou-se durante o consulado de Salazar, mas com Marcello Caetano, com a agudização das incursões da Frelimo, sobretudo na província sul-africana de Tete, e a crescente atividade da SWAPO no Sudoeste Africano, em associação com movimentos de libertação angolanos, levou ao estabelecimento, em outubro de 1970, de um convénio ultrassecreto cujo título nos dossiês é de Exercício ALCORA. Vai-se formalizar o compromisso das autoridades dos três países em definirem estratégias e planos concertados para combater inimigos mortais”.

Em 1964, a Rodésia do Norte tornou-se na República da Zâmbia, avolumaram-se as críticas ao domínio branco, a Rodésia do Sul, em novembro de 1965, declara unilateralmente a independência face à Grã-Bretanha, surge um novo aliado para combater a subversão dos independentistas, haverá bloqueio por parte da Grã-Bretanha, graças ao porto da Beira, Salazar facilitará os abastecimentos essenciais do governo do domínio branco de Ian Smith.

Como se disse acima, Marcello Caetano foi convencido a uma nova abordagem militar, 1970 é o ano da Operação Mar Verde, dirigida contra a Guiné-Conacri e a Operação Nó Górdio no Norte de Moçambique, com a primeira agravou-se o isolamento diplomático de Portugal, com a segunda a FRELIMO que deixara as suas bases às moscas foi avançando para o Tete.

O autor dá-nos conta do que foi a política de aproximação da África do Sul a certos países africanos, tudo se agudizou em termos de política externa: falência no diálogo com os estados africanos, incluindo Madagáscar; esfriamento das relações com o Botswana; afastamento e hostilidade do Lesoto; manteve-se alguma cooperação com o Malawi, Maurícias e Suazilândia e algum relacionamento com a Zâmbia. É de utilidade o enunciado sobre a diplomacia bilateral, se bem que esta matéria apareça estranhamente repetida noutros pontos do livro. O entendimento entre a África do Sul e o Estado Novo fez parte da estratégia militar sul-africana logo na década de 1950 e o autor dá um bom quadro destas diligências; entretanto todo o cenário da subversão se alterara com os três teatros de guerra nas colónias portuguesas e assim chegamos a outubro de 1970 em que o Exercício ALCORA reuniu Portugal, a África do Sul e a Rodésia, todos os convites endereçados pela África do Sul às antigas potências coloniais não obtiveram resposta. Portugal tinha recursos limitados e aceitou apoio externo dentro da combinação trilateral, o apoio em meios aéreos foi muito bem-vindo.

E dá-se uma descrição do suporte, logo no Sudeste de Angola com os helicópteros Alouette III e a colocação de combustível no Sudeste angolano. O autor observa que esta cooperação iniciara-se já em 1968, agora intensificava-se, o protocolo tinha um objetivo muito elástico: “Investigar os processos e meios de conseguir um esforço coordenado tripartido entre Portugal, a República da África do Sul e a Rodésia, tendo em vista fazer face à ameaça mútua contra os seus territórios na África Austral”. Dava-se ênfase ao aspeto militar, estabeleceram-se modos organizacionais envolvendo também a contrainformação, telecomunicações, unidades de reserva e até reconhecimento e fotografia aérea. Este último aspeto era muito importante para Portugal que não dispunha de grandes meios ao nível fotográfico. Em 1971, reuniu-se a subcomissão ALCORA de defesa aérea, aí se constatou que os caças da Força Aérea Portuguesa F-84 e G-91 eram inferiores a uma hipotética ameaça de aparelhos Mig-19 e 21. E concluiu-se ser imperioso a criação de uma força de ataque com Mirage M-5 e F-1; a ajuda suplementar em helicópteros foi também considerada.

Os políticos sul-africanos estavam atentos à evolução da FRELIMO em direção ao distrito de Tete, podia pôr em perigo a construção da barragem de Cahora Bassa, que seria vantajosa tanto para a África do Sul como para a Rodésia. Os sul-africanos tinham ficado igualmente dececionados com as iniciativas espalhafatosas de Kaúlza de Arriaga. Quando, em setembro de 1971, Ken Flower, chefe dos Serviços Secretos rodesianos, se encontrou com Marcello Caetano, deu a saber ao político português que a guerra poderia estar comprometida em Moçambique, caso não se alterasse a respetiva orientação, havia infiltrações da FRELIMO provenientes da Zâmbia e dirigidas a Tete. Ian Smith irá nos próximos anos revelar a inquietação que lhe provoca a situação em Moçambique. Intensificou-se o apoio militar a Portugal.

O autor dá-nos seguidamente a apreciação do histórico da cooperação militar bilateral, desvela os múltiplos contatos entre os parceiros do protocolo trilateral, a África do Sul esteve sempre atenta à evolução dos acontecimentos em Angola e Moçambique, temia que ambas as colónias caíssem na esfera da influência colonista, e depois dos graves acontecimentos na Guiné de 1973 abriram os cordões à bolsa para que Portugal comprasse armamento e equipamento à altura dos novos desafios. Para o autor, a intervenção da África no Sul nas guerras que Portugal travou em África não terá sido decisiva. É da maior conveniência ler esta obra no contexto das diferentes investigações efetuadas desde a década de 2010.


                                                                                                       Mário Beja Santos




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