quinta-feira, 8 de junho de 2023

O sistema de saúde português e uma radiografia do setor privado.

 




Concertadamente, e com uma estranha sintonização, um conjunto de reputados especialistas em economia e gestão em saúde, nos últimos anos, vêm recordar a degradação do SNS, apelando à urgência da sua restruturação, de um modo geral faz-se o levantamento, mas, por pudor ideológico, não se diz exatamente o que é urgente restruturar e a que presumível preço. O autor do ensaio Saúde e Hospitais Privados em Portugal, Miguel Gouveia, conceituado universitário e investigador, alerta-nos para as dificuldades presentes do SNS e põe em destaque o setor privado na saúde, matéria fulcral do seu trabalho. Para captar a atenção do leitor, diz mesmo na contracapa: “Sabia que, em Portugal, o setor público paga dois terços da despesa em saúde, mas o setor privado é o prestador de mais de metade dos cuidados? Sabia que Portugal foi o segundo país da União Europeia com a maior taxa de necessidades de saúde não satisfeitas acumuladas durante a covid-19? E que a tendência de longo prazo aponta para a redução do peso do Estado como financiador e como prestador de cuidados de saúde?” Aliciantes interrogações, e cuidamos ir encontrar resposta ou sugestões concretas do autor.

Interrogo-me se este ensaio cabe no espírito desta coleção, está completamente polvilhado de números, gráficos, figuras, etc., é claramente uma obra destinada a um outro tipo de público, não a meros leigos ou curiosos. Isto sem o mínimo prejuízo de considerar que é um ensaio de leitura obrigatória para quem o pode entender na plenitude. Sem dúvida que qualquer explicação sobre o sistema de saúde português carece de números, mas não nos termos avassaladores como aqui aparecem. O SNS está confrontado por quadros ideológicos claramente demarcados, fala-se por alto em empreender reformas estruturais, o que acontece é que tirando um ou outro especialista nesta área, por exemplo António Correia de Campos ou Constantino Sakellarides, não vejo ninguém a pôr as mãos na massa e propor o rumo de tais reformas, é a tal asserção ideológica que os autores não querem mostrar.

Miguel Gouveia apresenta acertadamente o sistema de saúde: sistema misto, com os setores público e não-público, chama a atenção para os subsistemas do setor público e a diversificação do setor não público. Expõe as duas dimensões económicas fundamentais no sistema de saúde, e aqui começa a tempestade dos números. Aqui e acolá reconheço a exigência de os elencar: “A partir dos dados relativos a 2019, o último ano ‘normal’, podemos constatar que as despesas em hospitais, públicos e privados, constituíram 41,9% das despesas correntes em saúde, sendo que, destas, 72,7% ocorreram em hospitais públicos, e os restantes 27,3% em hospitais privados.” E depois é um tropel de números e percentagens, concluindo que o financiamento da saúde em Portugal é maioritariamente público, com tendência a decrescer; ficamos igualmente a saber que há mais de 28 mil empresas do setor privado que empregam cerca de 125 mil pessoas, quase tanto como o SNS, alertando o autor para a necessidade de se obter estatísticas precisas, sobretudo quando se fala da economia social.

O autor procura encontrar explicações para a volumosa procura de cuidados fora do SNS, releva as listas de espera e a sua grande dimensão, os encerramentos das urgências. E depois faz comentários às coberturas existentes para além do SNS, inventaria os diferentes subsistemas, cujo número parece ter vindo a diminuir, mas onde o número de pessoas com seguros de saúde tem vindo a aumentar. E deteta atropelos à informação que é devida a um qualquer consumidor de cuidados de saúde, distinguindo seguros de planos de saúde, aqui com uma clareza meridiana: “Um plano de saúde não é um seguro; ele oferece aos seus subscritores o acesso a uma rede de prestadores de cuidados de saúde a preços tabelados, que resultam de uma negociação entre cada plano e os prestadores de cuidados de saúde abrangidos pela rede desse instrumento.” Dá-nos igualmente conta de quem está coberto por seguros e subsistemas e à guisa de conclusão observa que a fração do financiamento da prestação privada dos seguros tem vindo a crescer, prevendo que este crescimento irá continuar nos próximos anos, mas não deixando de anotar que eles são relativamente secundários no financiamento dos hospitais privados.

Já estamos na área de eleição do ensaio: capacidade e atividade dos hospitais privados (o leitor que se prepare para um vendaval de figuras, numa completa desarmonia com o espírito desta coleção. Temos depois a análise dos prestadores privados e o seu relacionamento com o SNS, aqui é inevitável uma palavra sobre as parcerias público-privadas e o autor tece os seus juízos de valor: “O fim de três das quatro PPP (Braga, Vila Franca de Xira e Loures) implica uma redução da qualidade dos cuidados prestados e um acréscimo dos custos a suportar pelo SNS, ou seja, pelos contribuintes. Este desfecho só se consegue compreender por motivações intensamente ideológicas. O Estado nunca promoveu estudos sobre as consequências do fim da gestão privada do Hospital Amadora-Sintra, e reincidiu não promovendo estudos sobre a cessação da PPP de Braga e das restantes. Esperemos que essa gritante omissão seja corrigida em breve e que se proceda a uma avaliação cuidadosa das vantagens e desvantagens do fim destas parcerias.”

Caminhando para o termo do ensaio, Miguel Gouveia analisa questões sobre o desempenho do setor privado na saúde, pondo ênfase na chamada desnatação, isto é, a acusação habitual de que o setor privado trata doentes com problemas de baixa gravidade ou que necessitam de tratamentos que exijam baixa complexidade tecnológica, deixando os casos que implicam grandes custos e complexidade para o setor público. Para Miguel Gouveia é uma acusação superficial, elenca as suas razões e por fim dá-nos o quadro dos recursos humanos nos setores público e privado. À falta de propostas dá-nos cenários para o futuro, destacando as tendências que se prende com o envelhecimento da população, a evolução científica e tecnológica e problemas globais como potenciais novas pandemias. Considera pouco provável haver um aumento das despesas públicas num sistema de saúde cada vez mais estetizado; há um outro cenário em que os governos irão empurrar os grupos populacionais com algum poder de compra para o setor privado, para assim se poupar na despesa pública, o perigo, alerta-nos é virmos a ter um SNS para os pobres. “Nessa altura estarão criadas as condições para um autêntico terramoto.” E há o cenário caracterizadamente reformista, implica, diz o autor que os governos despendam mais recursos com o SNS, requer-se capacidade do Estado para saber usar as estratégias de contratualização com o setor privado, e o moral da história, se este cenário vingar, e se acaso o Estado se tornar um contratador eficaz, ir-se-ão expandir as parcerias público-privadas e os cuidados hospitalares e as poupanças e ganhos de qualidade que lhe estão associados. Para bom entendedor…

Obra de incontestável interesse, mas insista-se divorciada do espírito desta coleção.

 

                                                                                            Mário Beja Santos 


1 comentário:

  1. O SNS é gerido maioritariamente por gestores com o cartão do PS. O resultado está à vista. O SNS caminha a passos largos para imitar o SNS venezuelano. Mas infelizmente a percepção geral é que temos o melhor SNS do mundo, tal a propaganda a que durante anos fomos expostos.

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