sexta-feira, 26 de abril de 2024

Os novos inquisidores e exorcistas do Portugal pós-abrilista.

 

 

      

 

           Dentro do contexto do meu encontro no Palácio Foz com o Secretário dos Serviços de Informação, Pedro Feytor Pinto, algumas semanas após o 25 de Abril, não posso deixar de referir um episódio grotesco, ocorrido nessa tarde no belíssimo átrio do dito Palácio, episódio de que, por mero e feliz acaso, fui testemunha ocular e auricular, enquanto aguardava o momento do encontro.

          Sob as lentes sôfregas e atentas das câmaras de um canal francês de televisão, reuniram-se nessa tarde de primavera festiva umas duas ou três dúzias de pseudoartistas - pintores, escultores e outros espécimes das artes plásticas –, enquanto os autênticos artistas portugueses, alguns ex-exilados como eles, estavam nos seus ateliers a fazer obra honrada, honesta, patriótica e relevante para o novo Portugal.

          Depois de uma prolongada e acesa discussão, à guisa de planeamento e de ensaio geral, e depois de um longo e meditabundo intervalo, os pseudoartistas, abusiva e vaidosamente autoproclamados representantes do egrégio grémio das artes plásticas portuguesas, acercaram-se da estátua de Salazar, togado, erguida no meio do átrio, formaram um círculo, e, movendo-se lentamente, um pouco curvados, em torno da estátua, em ritmo de cortejo fúnebre e em forma de bailado de bruxas goyescas, começaram a representar uma espécie de coro falado, de que recordo perfeitamente o estribilho, ou, melhor dito, a antífona, por ter sido repetido ad nauseam, em modo de salmodia, sem a ressonância etérea e mística, claro está, que a verdadeira salmodia, entoada em música gregoriana ou canto-chão, imprime na alma dos cantores e dos ouvintes e os faz levitar: “a arte fascista / faz mal à vista”; “a arte fascista / faz mal à vista”; “a arte fascista / faz mal à vista.”

          Depois dessa representação lúgubre e funérea, que se prolongou por cerca de uma hora, sob os comentários picarescos e sarcásticos de um número razoável de funcionários públicos que trabalhavam no Palácio Foz e que, sorrateiramente, espreitavam da varanda e das janelas, comentários, repito, em que sobressaíam, sussurradas sotto voce, por medo de represálias, frases como estas: - “ide trabalhar, seus mandriões; ide ganhar o pão, seus parasitas; ide cortar essas melenas e rapar essas barbaças; ide tomar banho e lavar essas fuças; deixai a estátua em paz, que não vos fez mal nenhum”.

          Claro que estes dichotes eram proferidos de maneira a que os pseudoartistas e “os autoproclamados representantes do egrégio grémio das artes plásticas portuguesas” os não ouvissem. Ninguém queria ser apodado de fascista e de salazarista nem arriscar-se à perda do emprego, por meio de um saneamento sumário, como estava de moda no Portugal pós-abrilista. Mas desnecessário é dizer que nos rostos daqueles honestos e modestos funcionários públicos, desde os contínuos às senhoras da limpeza, se lia o desejo de levantar bem alto a voz do bom senso para fazer saber àquela cambada de energúmenos, encapuçados à maneira dos irmãos das confrarias que participam nas procissões do Senhor dos Passos ou nas procissões da Semana Santa de Sevilha, que se ocupasse em actividades mais construtivas e mais consentâneas com os nobres objectivos proclamados e habilidosamente propagandeados nos múltiplos manifestos programáticos da Revolução dos Cravos.

          Como ia dizendo, depois de uma longa lengalenga soturna e macabra, repetida mil vezes, ad nauseam, para benefício da televisão francesa, os pseudoartistas, “autoproclamados representantes do egrégio grémio das artes plásticas portuguesas”, guedelhudos e barbudos, desdobram cerimoniosamente um enorme pano roxo e cobrem com ele a estátua togada de Salazar, fazendo com ela o que se costuma fazer com os crucifixos e com as estátuas dos santos das igrejas católicas, entre a quinta semana da Quaresma e o Sábado de Aleluia.            

          Terminada essa cerimónia grotesca e fúnebre, os pseudoartistas plásticos do novo Portugal abandonaram o átrio do Palácio Foz, no meio de gargalhadas de mau gosto, com o coração contente e a consciência tranquila por, segundo eles, novos inquisidores e iconoclastas, haverem praticado um acto altamente meritório e patriótico. Tinham profanado e dessacralizado a pacífica estátua de um homem morto; eram heróis revolucionários; felicitavam-se uns aos outros por haverem tido a coragem de praticar um portentoso feito de dimensões épicas – como diria um dos exorcistas, guedelhudo, barbudo e de dentes nicotinados, em mau Francês, à Mário Soares, para francês ver ... e ouvir, pois, volto a frisar, a lúgubre cerimónia, de cariz iconoclástico e exorcista, foi profissionalmente filmada por uma equipa de televisão francesa.

 

Manchester, CT

22 de Abril de 2024

António Cirurgião

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