Fotógrafos
houve que alcançaram fama mundial ou entraram para a história da fotografia
graças a uma só foto. Parece-me ser esse o caso de Ruth Orkin. Apesar de ter
sido uma excelente fotógrafa que trabalhou para as principais revistas
americanas da época, duvido que Orkin tivesse hoje o nome que tem, se não fosse
esta célebre fotografia que fez numa esquina de rua em Florença em Agosto de
1951.
Ruth Orkin, “American girl in Italy”, 1951.
Data
e hora da foto: 22 de Agosto de 1951, quarta-feira, 10h 30.
Local:
esquina da Piazza della Repubblica com a Via Roma, Florença.
Fotógrafa:
Ruth Orkin (1921-1985), fotojornalista americana.
Luz:
sem sol directo.
Película:
Eastman Super-XX a preto e branco, “safety film” (o primitivo acetato).
A
figura feminina da foto era uma estudante de arte americana que então dava pelo
nome de Ninalee “Jinx” Allen (hoje Craig), de 23 anos, em viagem por Itália. A
fotógrafa, então com 29 anos, conheceu-a casualmente num hotel barato de
Florença, andando ambas a viajar sozinhas pela Europa – coisa bastante rara na
época. Jinx Allen foi convidada por Ruth Orkin para lhe servir de modelo de uma
série de fotografias que viria a ser publicada em Setembro de 1952 na revista Cosmopolitan, num foto-ensaio intitulado
“Don’t Be Afraid to Travel Alone”. O êxito da reportagem ficou basicamente a
dever-se a esta foto. Nos anos 1980, a revista Life desvendou a identidade da retratada, até então descrita
simplesmente como uma rapariga americana.
O
que se vê neste instantâneo de rua? Uma rapariga bonita, alta e elegantemente
vestida, com ar de estrangeira, a passar por um grupo de homens italianos
(quinze no total) que a olham com fascínio ou ar matreiro. Um mais atrevido,
com a mão esquerda colocada sobre a sua zona púbica, parece dirigir um piropo ou
uma assobiadela à rapariga.
Ela
enfrenta a situação com uma atitude mista de altivez e contenção, puxando
defensivamente o xaile para o peito e evitando sorrir ou olhar nos olhos os
seus admiradores de rua. A cena passa-se no centro de Florença, na esquina da
Via Roma com a Piazza della Repubblica. A quantidade de homens ociosos pelas ruas,
na manhã de um dia de semana, tinha certamente que ver com o ainda forte
desemprego, seis anos após o fim da segunda guerra mundial.
O
que tem esta foto de tão especial que fez dela um clássico do séc. XX? É uma
imagem muito oportuna, registada na fracção de segundo crucial. Excelente na composição,
no enquadramento, na luz difusa, na riqueza de pormenores. Mas, para além de ser
um “flagrante” tecnicamente perfeito, há nesta foto qualquer coisa mais, que cativa
o olhar do simples observador, do amador de fotografia, do cientista social ou
da militante feminista. De facto, olhando a cena em pormenor, tem-se uma
sensação de choque cultural entre o machismo latino e a atitude independente e
liberta da jovem turista americana. Há quem assinale medo no olhar dela, supostamente
incomodada pela matilha masculina. As feministas adoptaram esta imagem, que
lhes serve de bandeira na sua cruzada contra o assédio de rua. Todavia, a
retratada Jinx, hoje com quase 90 anos, não acha nada disso e recusa que a
imagem seja uma cena de assédio. Garante que lhe foi agradável a atracção que
despertou nos homens italianos, que não achou machistas, mas apenas “muito
admirativos”, e diz guardar uma memória feliz daquela cena. As feministas não
acreditam e sustentam que Jinx não distingue admiração de assédio.
Na
verdade, sabemos que ela não se sentiu nada intimidada, muito menos ofendida
pela exagerada admiração que aqueles homens lhe dedicaram. Provam-no as quatro
fotos que se seguem imediatamente no rolo, em que se vê a americana, divertidíssima,
a passear de lambreta à boleia do homem que se vê com semblante trocista no
lado direito da foto.
Jinx Allen à boleia do homem da lambreta (pormenor).
|
Por
outro lado, o exame da sequência das fotos na prova de contacto do rolo (ver abaixo
os fotogramas 8, 9 e 10) mostra que a célebre foto foi encenada ou, pelo menos,
repetida de outro ângulo. Com efeito, Ruth Orkin pediu a Jinx que voltasse
atrás e recomeçasse a andar no passeio (fotograma 9) de que já tinha descido
(fotograma 8). A própria Jinx o confirmou em recente entrevista, dizendo ter
obedecido a instruções da fotógrafa. Mas continua a negar que a foto tenha sido
propriamente encenada.
Fotogramas 8, 9 e 10 do rolo usado por Ruth Orkin em 22 de Agosto de 1951.
|
Se
considerarmos ainda o efeito que teve sobre aqueles homens ociosos a presença
ostensiva das duas jovens americanas, a fotógrafa e a fotografada, sozinhas,
isto é, sem companhia masculina, então teremos de admitir que a foto foi igualmente
influenciada por essa interacção, ou seja, que não foi indiferente para o
sentido íntimo da cena que o fotógrafo fosse homem ou mulher. Ruth Orkin, que
está invisível para quem olha a foto, mas não para os quinze homens que ali
estão, é realmente uma das protagonistas da cena. Se o fotógrafo fosse um homem,
o resultado teria sido diferente, porque os personagens teriam muito provavelmente
reagido de outro modo.
Sobre
a carreira fulgurante desta imagem até à actualidade, diga-se que ela tem
desencadeado debates sem conta. A questão mais debatida é se a fotografia de
Orkin pode considerar-se “encenada” ou não. Por outro lado, autoras e
militantes feministas continuam a usar esta foto em livros e artigos como ilustração
do assédio machista, agora à revelia do que a própria retratada sustenta. As
diversas interpretações da imagem remetem para a questão, cada vez mais actual,
sobre o que é ou não é assédio. Nos anos 1950 não se pôs essa questão. Havia então
uma maior tolerância para com os piropos e os mirones, desde que estes não
pisassem o risco da grosseria, generosamente traçado. Em compensação, nesse
tempo, os juízos morais incidiram sobre a alegada “indecência” do gesto do homem
de guarda-chuva, que alguns ainda tentaram desculpar como um gesto inconsciente
de protecção da sua virilidade. Durante anos, a imagem foi censurada,
cortando-se a metade esquerda da foto ou apagando-se com aerógrafo a mão do homem
do guarda-chuva. Só a partir dos anos1960 foi possível ver a fotografia tal
qual ficou no negativo.
Constata-se
uma vez mais que as fotografias, como todas as obras de arte, conquistam uma
certa independência em relação ao seu autor e à sua “verdade” original. Abandonada
a si própria, descontextualizada, vista e revista por sucessivas gerações, uma
fotografia vai adquirindo diversos significados, por vezes contraditórios entre
si, consoante o olhar e a mente de quem a olha e interpreta. Os críticos de
fotografia, jornalistas, historiadores, cientistas sociais e, neste caso, uma testemunha
crucial (Jinx) podem tentar repor parte da verdade, mas a imagem continuará a
ser interpretada e apreciada à vontade de cada um. De facto, raramente as
fotografias são expostas ou publicadas com uma exaustiva contextualização
histórica. Será, todavia, necessário saber tudo o que está por detrás de uma
fotografia? Não podemos contentar-nos com a ficção que é, no fundo, a maioria
das fotos jornalísticas? Perguntas difíceis! Mas muitas vezes nos interrogamos,
perante uma fotografia: quem a fez, porque a fez, como a fez? E sucede muitas
vezes que, quando temos repostas a essas perguntas, passamos a ver a fotografia
de outra maneira.
Veja-se
agora uma fotografia actual da mesma esquina de Florença, feita pelo carro da
Google Street View, acessível online. Repare-se na indumentária quase
indistinta de homens e mulheres, a sugerir uma mentalidade muito diferente da
de 1951.
Muito
a propósito, reproduz-se abaixo outro retrato de Jinx Allen em Florença, no
mesmo ano de 1951 e da autoria da mesma Ruth Orkin. A rapariga americana está
sentada na Fonte de Neptuno (1565), lendo um roteiro. Por detrás dela, um sátiro
parece querer assaltá-la, mas a pose de Jinx é a de alguém que não se deixa
intimidar. Sátiros e faunos, geralmente representados com o pénis erecto, como
neste caso, aparecem em muitas obras de arte a perseguir ninfas assustadas.
Julgo que Orkin poderá ter jogado com isso, apostando no contraste entre o
sentido arcaico do bronze e a pose serena da jovem americana, emancipada e
aventureira.
Seguem-se
dois retratos da fotógrafa Ruth Orkin. Um de 1939, quando, com apenas 17 anos
de idade (!), percorreu os Estados Unidos de bicicleta, com uma máquina
fotográfica barata. Outro, nos anos 1950, com ela já melhor equipada.
A
terminar, aqui fica outra foto famosa, de tema semelhante ao da foto de Ruth Orkin
de 1951. Esta data de 1954 e é de um grande fotojornalista italiano, Mario De
Biasi, que dois anos depois fez uma famosa reportagem da revolta de Budapeste.
Hoje
toda a gente diz que esta foto foi inspirada pela de Orkin, publicada dois anos
antes. Nem sequer falta um homem de lambreta. A diferença mais flagrante está
na perspectiva apenas traseira da mulher. A retratada é Moira Orfei, popularíssima
estrela de circo italiana, então com 23 anos. A fotografia foi realmente encenada,
assim como numerosas outras que De Biasi fez no mesmo dia, com a mesma modelo a
passear-se pelas ruas de Milão no seu vestido branco, sempre rodeada de mirones
pouco discretos. O título que De Biasi deu à foto, “Os italianos voltam-se”,
não corresponde bem ao que se vê na imagem, em que uma pequena multidão de
homens e uma mulher olham Moira de frente. Sucede que esse título retomava textualmente
o de uma curta-metragem de Alberto Lattuada, do ano anterior (1953), sobre
basbaques masculinos que se voltavam para olhar, miravam insistentemente e
perseguiam mulheres bonitas nas ruas de Roma. De facto, a imagem de De Biasi parece
mais de um filme do que da realidade.
Encenada
ou não, o público gostou e a fotografia, tal como a de Ruth Orkin, tornou-se um
ícone – e também um alvo de interpretações arbitrárias e desencontradas.
José Barreto
Algumas fontes
Ruth
Orkin Photo Archive. URL:
http://www.orkinphoto.com/
Howard Greenberg Gallery,
“Ruth Orkin: Jinx Allen in Florence”. Exhibition, New York, Sep. 16 - Oct. 22,
2005.
URL: http://www.howardgreenberg.com/exhibitions/ruth-orkin-jinx-allen-in-florence/selected-works?view=thumbnails
URL: http://www.howardgreenberg.com/exhibitions/ruth-orkin-jinx-allen-in-florence/selected-works?view=thumbnails
Emanuella Grinberg, “The
real story behind 'An American Girl in Italy' ”. CNN, Mar. 30, 2017. URL: http://edition.cnn.com/2017/03/30/europe/tbt-ruth-orkin-american-girl-in-italy/index.html
John Allemang, “A snapshot
of sexism or a portrait of composure?” The
Globe and Mail, Aug. 12, 2011. URL:
https://beta.theglobeandmail.com/news/world/a-snapshot-of-sexism-or-a-portrait-of-composure/article590345/?ref=http://www.theglobeandmail.com&
https://beta.theglobeandmail.com/news/world/a-snapshot-of-sexism-or-a-portrait-of-composure/article590345/?ref=http://www.theglobeandmail.com&
Murray Whyte, “An American Girl in Italy”. Interview with
Linalee Allen. Toronto Star - Aug.
13, 2011. URL:
https://www.thestar.com/entertainment/2011/08/13/an_american_girl_in_italy.htmlSat
https://www.thestar.com/entertainment/2011/08/13/an_american_girl_in_italy.htmlSat
Michele Smargiassi, “Gli italiani si voltavano”. Fotocrazia,
15 Ott. 2011. URL:
http://smargiassi-michele.blogautore.repubblica.it/2011/10/15/gli-italiani-si-voltavano/
http://smargiassi-michele.blogautore.repubblica.it/2011/10/15/gli-italiani-si-voltavano/
Muito interessante.
ResponderEliminarExcelente.
ResponderEliminarMuito bom.
ResponderEliminar