quarta-feira, 11 de julho de 2012

Fernando Pessoa clandestino.

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Sabe-se que Fernando Pessoa, antecipando-se muito a uma prática hoje corrente na blogosfera, escreveu vários textos anónimos, assumindo uma identidade que não a sua, nomeadamente para poder falar de si próprio na terceira pessoa ou com outros intuitos, mais ou menos provocatórios. Não me estou a referir aos escritos dos seus heterónimos, como Álvaro de Campos, que várias vezes se referiu publicamente a Fernando Pessoa, mas sim a outras identidades que assumiu, geralmente sem nome. Bom número desses textos anónimos ficou por publicar, permanecendo entre os milhares papéis inéditos da sua famosa arca. Por exemplo, aquele escrito anónimo de cerca de 1923, intitulado “O Catolicismo imoral”, em que, na pele de um republicano anticlerical, Pessoa sustentava que os escritores católicos e monárquicos eram todos devassos e em que, para melhor disfarce da verdadeira autoria, se fustigava também a si próprio, falando do "monárquico Fernando Pessoa, sinistra figura de degenerado que tem acompanhado como uma sombra negra todos os uranistas doentios dos actuais tempos". Em 1930, Pessoa chegou a forjar uma entrevista completa consigo próprio – a propósito do caso do mago Aleister Crowley, pouco antes misteriosamente desaparecido na Boca do Inferno, em Cascais – que foi publicada no semanário ilustrado Girassol. Como se sabe, o “desaparecimento” de Crowley tinha sido encenado com a cumplicidade de Pessoa.

Vou seguidamente dar conta de uma desconhecida produção clandestina de Fernando Pessoa, que nos revela também a sua faceta, até agora muito dubitada e contestada, de antifascista.



O fascio de Lisboa

A 17 de Novembro de 1926 chegou a Lisboa, procedente da capital espanhola, Ezio Maria Gray, deputado italiano e coronel dos camisas negras (Milícia Voluntária para a Segurança Nacional), que andava em missão do governo de Mussolini na Península Ibérica. Vinha fundar o fascio de Lisboa, ou seja, o núcleo dos fascistas italianos residentes na capital portuguesa. Medalhado da Grande Guerra, Ezio Gray (1885-1969) era um alto responsável fascista que passara já pelo directório nacional do partido e pelo Grande Conselho do Fascismo até 1925. Participante na Marcha sobre Roma em Outubro de 1922 e, desde então, fiel seguidor do Duce, Ezio Gray editaria em 1927 o livro O Pensamento de Mussolini.  
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Ezio Maria Gray de camisa branca




O movimento fascista começara ainda antes da tomada do poder a criar esses núcleos partidários nos países vizinhos e em locais tradicionais de emigração italiana, como os Estados Unidos. Eram os fasci all’estero, células fascistas no estrangeiro, que após a instauração do regime se foram multiplicando. Em 1925 o seu número ascendia já a 457, dos quais cerca de 40 no Brasil e perto de 80 nos Estados Unidos, com núcleos também na China, Egipto, Austrália, etc. Os fasci do estrangeiro começaram por estar submetidos a um órgão do Partido Nacional Fascista que coordenava a sua actuação à escala planetária. Dadas a reservas expressas pelos países alvo dessa sementeira negra, o Duce retirou formalmente os fasci all’estero do seio do PNF, passando em 1923 a ser coordenados por uma secretaria-geral colocada sob a alçada directa do ministro dos negócios estrangeiros – que era então o próprio Mussolini. A diferença era pouca, na prática, mas isso servia de algum modo para tranquilizar os governantes estrangeiros que temiam a exportação do fascismo para os seus países e a ingerência dos fasci nos assuntos políticos internos.

A colónia italiana de Lisboa não era muito numerosa, razão pela qual não se pode considerar tardia a decisão de criação do fascio local. A Ditadura Militar instaurada em Portugal após o 28 de Maio de 1926 veio apressar essa decisão, dadas as afinidades políticas do regime nascente e a simpatia de vários dirigentes militares e políticos civis portugueses pelo fascismo italiano. Quando o coronel Gray chegou a Lisboa na manhã de 17 de Novembro, a Ditadura chefiada pelo general Óscar Carmona contava já meio ano de existência.


General Óscar Carmona, chefe da Ditadura Militar.
Em cima da mesa, o rolo mata-borrão, a única arma que utilizou na sua carreira. 


Reflexo da mudança de regime, a representação diplomática da Itália fascista em Portugal, até ali confiada a um encarregado de negócios e um cônsul, ia muito em breve ser ampliada e melhorada. Esperava-se a todo o momento a chegada do novo representante diplomático italiano. A legação de Itália ia também em breve ser instalada num novo edifício, recém-adquirido pelo governo de Mussolini – o palácio dos condes de Pombeiro, onde ainda hoje se localiza a embaixada. Seguir-se-ia, em 1929, a criação do Real Instituto de Cultura Luso-Italiano, hoje denominado Instituto Italiano de Cultura. Novos fasci seriam criados nos anos 30 no Porto, Funchal, Olhão e Cabo Verde, o que dá uma ideia da distribuição geográfica da colónia italiana.



O coronel foi ver as girls



O Diário de Notícias, de orientação próxima da Ditadura Militar, tratou imediatamente de contactar o recém-chegado coronel Ezio Gray. Um jornalista procurou-o no Hotel Avenida Palace, nos Restauradores, onde lhe foi dito que Gray saíra para o teatro. O repórter acabou por encontrá-lo no foyer do Teatro da Trindade, no intervalo da matinée da companhia Ba-Ta-Clan, que se encontrava então em Lisboa. As girls da famosa companhia de revista parisiense exibiam ali os seus dotes e a sua escassíssima roupa em duas sessões diárias, bailando “uma coisa desenfreada” ao som dos “guinchos” de uma banda de jazz, segundo o relato do repórter.
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Cartaz da companhia de revista Ba-Ta-Clan, anos 1920.
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Apanhado assim, apenas chegado a Lisboa, num espectáculo de girls, o coronel Gray tentou mostrar fair-play perante o repórter: “Estes jornalistas…estes jornalistas…” Porquê a urgência de ir ver o Ba-Ta-Clan? – perguntar-se-á. Será que o fascismo tinha proibido este tipo de espectáculos “imorais” em Itália? É bem possível. Em 1923 Mussolini já tinha declarado guerra à literatura “imoral”, mandando esquadras de camisas negras fazer rusgas pelas livrarias. Em 1938 seria a vez de banir os livrinhos de banda desenhada americana… à excepção do Rato Mickey – mas essa é outra história, em que Ezio Gray também estará envolvido, que prometo contar em futura ocasião.

Para minorar os danos, o coronel dos camisas negras respondeu benevolamente ali mesmo, no foyer do teatro, às perguntas do repórter, que estava muito interessado no fascio que ia ser fundado em Lisboa. Gray quis sobretudo assegurar que os fascistas italianos residentes em Portugal não deveriam, em caso algum, imiscuir-se na política interna. A campainha a anunciar o fim do intervalo salvou Gray de perguntas mais indiscretas. A reportagem teve destaque de primeira página do Diário de Notícias. O Diário de Lisboa, vespertino mais liberal, ignorou completamente a estadia em Lisboa da alta individualidade italiana, embora tivesse inserido repetidas notícias sobre o espectáculo do Ba-Ta-Clan…
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Diário de Notícias de 18 de Novembro de 1926, p. 1.
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Na noite do dia 18 de Novembro, o coronel Gray presidiu a uma sessão solene da colónia italiana no palácio Pombeiro, engalanada pela presença de muitas senhoras. Sob os retratos do Duce e do rei Vittorio Emanuele, o coronel Gray, envergando a farda cinzenta clara da Milícia com camisa e gravata negras, fez um balanço das vitórias do fascismo e da derrota do parlamentarismo e do bolchevismo. As contas do Estado italiano mostravam agora um saldo positivo, assegurou ele. A lira fortalecera-se e o Sul de Itália fora “levantado à altura do Norte industrial e agrícola”. Os caminhos-de-ferro, os correios e os serviços marítimos tinham sido exemplarmente reorganizados, depois de expulsos os fomentadores de revoltas e submetidos os interesses de classe ao interesse nacional. Os comboios já andavam à tabela (fixe o estimado leitor este pormenor). Era para a Itália que as nações europeias se voltavam agora, procurando nela “a sapiência política da antiga Roma”. Contra os estúpidos detractores que por esse mundo fora o acusavam de belicoso, o Duce, com a sua “clarividência genial” e a sua “indomável energia”, tinha feito da Itália “um elemento indispensável à paz da Europa”, embora não fosse mais permitir que negassem à nação italiana “os seus direitos de circular livremente pela Terra vasta” (estaria já a pensar na invasão da Etiópia?). Gray procurou, uma vez mais, tranquilizar os portugueses, perante o alarmismo suscitado por alguns jornais: os fascistas italianos de Lisboa manter-se-iam politicamente neutrais e exemplarmente respeitadores das instituições do país anfitrião. A extensa reportagem foi publicada na primeira página do Diário de Notícias de 19 de Novembro, com uma fotografia da cerimónia. O Diário de Lisboa ignorou o evento.



Uma entrevista sensacional



No dia 20, para o qual estava marcado o regresso a Madrid do coronel Ezio Gray, o matutino lisboeta Sol, que até aí passara sob silêncio a estadia do coronel, publicou com o maior destaque de primeira página uma entrevista com um alegado antifascista italiano residente em Portugal. O título era desafiante para a colónia italiana e para o recém-criado fascio de Lisboa: “O Duce Mussolini é um louco… afirma-o ao Sol um italiano culto que ama sinceramente a Itália”. O jornal Sol, que começara a publicar-se três semanas antes, em 30 de Outubro, era de tendência republicana e já se notabilizara pelas suas posições antifascistas. Os chefes da Ditadura Militar olhavam-no de soslaio e a imprensa monárquica apoiante do poder atacara o jornal desde o seu aparecimento, denunciando-o como um órgão “democrático” (isto é, do Partido Republicano), que teria sido generosamente financiado por gente ligada à República derrubada. A censura à imprensa, instaurada pelos militares em Junho desse ano, deixou contudo passar a reportagem do Sol, talvez por distracção, pois a máquina censória ainda não estava perfeitamente oleada. Como adiante veremos, o jornal não sobreviveria muito tempo a este episódio.   




Cabeçalho da reportagem do Sol, 20 de Novembro de 1926.





O antifascista entrevistado, de seu nome Giovanni B. Angioletti, era descrito pelo jornalista anónimo do Sol como um “intelectual de relevo” e como um elemento da “parte não oficial da colónia italiana”, sugerindo tratar-se de um exilado, que “há anos” residiria em Portugal. A vinda de Ezio Gray a Portugal suscitara a oportunidade desta entrevista, explicava o redactor do Sol, desejoso de conhecer a visão de um “camisa branca”, isto é, de um italiano contrário à posição do coronel dos camisas negras. Para maior interesse do leitor, o italiano exilado em Portugal seria “um dos inimigos de mais estatura” do regime fascista. Na entrevista propriamente dita, Angioletti descrevia Mussolini como um “louco paranóico”, um “primitivo cerebral”, cujo maior pecado não seria o uso sistemático da violência ou o espezinhamento das liberdades, mas sim a traição à nobre missão civilizadora e universalista da Itália eterna, que o ditador fascista sacrificara ao “ideal morto da grandeza nacional”. Quanto ao fascismo, seria um caso de “loucura contagiosa” e era comparado pelo entrevistado à “loucura dançante da Idade Média” – um célebre caso de loucura colectiva em 1518, na cidade de Estrasburgo, que levou centenas de mulheres a dançar compulsivamente até à morte. O fascismo seria também, na opinião de Angioletti, um produto indesejável da unificação da Itália, consumada no século XIX:

“Que tem a Itália unificada dado ao mundo? Nada. O que deu ao mundo a Itália dividida? Tudo. Ora o mal do fascismo é que é a última consequência da Itália unificada”.
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A reportagem, não assinada, como já foi referido, teve a sua sequência. O Diário de Notícias, suspeitoso da cacha do concorrente Sol, indagou junto do cônsul italiano sobre o tal Angioletti. O cônsul Trabucco limitou-se a declarar que tal nome não constava dos registos do consulado italiano – informação que o Diário de Notícias estampou na sua edição de 21 de Novembro, numa local noticiando a partida, na véspera, de Ezio Gray para Madrid. A 22, o Sol reagiria a esta aparente tentativa de descredibilização publicando novo artigo de primeira página, intitulado “Fascistas em Lisboa”. Nele, o anónimo redactor recusava dar mais detalhes sobre o italiano entrevistado:

“Não nos compete a nós delatar aos agentes do fascio italiano a presença civil dos perseguidos do Duce. Não será por via do nosso jornal que os camisas brancas se macularão de negro nem que o óleo de rícino se ministrará como ridícula arma a adversários que se acolheram à tradicional hospitalidade portuguesa”.

O óleo de rícino em questão aludia à tortura que os camisas negras infligiam em Itália aos seus adversários, fazendo-os ingurgitar grande quantidade do produto, causador de severa diarreia. Estas e outras explicações eram seguidas da transcrição de uma carta, entretanto chegada à redação do Sol, da autoria do entrevistado Angioletti. O italiano vinha confirmar o teor das suas anteriores declarações ao jornal, acrescentando, em resposta ao cônsul italiano, que o Sol já explicara porque não constava o seu nome dos registos consulares (alusão à sua qualidade de perseguido do fascismo).
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Cabeçalho da notícia do Sol, 22 de Novembro de 1926, p. 1.



No dia seguinte, 23 de Novembro, chegou a Lisboa o novo ministro plenipotenciário de Itália, Carlo Galli. O episódio da entrevista de Angioletti foi-lhe certamente relatado pelo cônsul, pelo encarregado de negócios, pelo directório do fascio e por outros membros da colónia, que se encontraram com Galli na recepção por este oferecida a 28 de Novembro. O jornal Sol continuou a publicar-se normalmente até 1 de Dezembro, dia em que anunciou que não se publicaria no dia seguinte, por causa do feriado. A 2 de Dezembro, o novo representante diplomático italiano apresentou credenciais ao chefe de Estado português, general Carmona, a quem transmitiu as suas primeiras impressões de Portugal. A 3 de Dezembro o Sol deveria ter retomado a sua publicação, mas tal não aconteceu, nem nesse dia nem nunca mais. Não se sabe se a Ditadura Militar mandou encerrar o jornal, mas é bem possível que isso tenha sucedido.

O episódio foi esquecido, passando ao departamento poeirento das prateleiras das bibliotecas onde se guardam os exemplares do Sol. O jovem director do jornal, Celestino Soares, ainda viria a fazer falar de si no futuro, nomeadamente nos anos 40, quando foi destacada figura civil, juntamente com o ex-ministro da República João Soares, de duas tentativas de golpe militar contra o regime de Salazar, o “golpe da Mealhada”, em 10 de Outubro de 1946, e o seu sucedâneo, a “Abrilada” de 10 de Abril de 1947. Celestino Soares foi o redactor da proclamação dos militares revoltosos e também de um plano de estrutura constitucional provisória que serviria em caso de vitória. Na sequência da segunda tentativa de golpe, o ministro da Guerra salazarista, Santos Costa, obteria a condenação de Celestino Soares a um ano e meio de prisão. Não sei se João Soares, também condenado a prisão, tinha alguma relação de parentesco com Celestino Soares. Talvez Mário Soares nos possa elucidar sobre esse aspecto. Algumas reuniões dos conspiradores tinham decorrido no Colégio Moderno.  



Fernando Pessoa e o Sol

O diário Sol, publicado durante apenas 33 dias, contou com multifacetada colaboração de Fernando Pessoa, amigo do director Celestino Soares. Pessoa escreveu várias peças de poesia e prosa para o jornal, entre as quais uma delirantíssima história sobre a origem do conto do vigário, tendo também sido o tradutor do romance policial O Caso da 5.ª Avenida, da americana Anna Katharine Green, publicado em folhetins diários, mas que ficou suspenso no n.º 28, dado o súbito encerramento do jornal. A tradução do romance seria completada só em 1994 por Catarina Rocha Lima e publicada (em co-autoria com Fernando Pessoa!) na colecção Vampiro.

Outra colaboração de Pessoa para esse jornal, até agora totalmente desconhecida, foi, como o estimado leitor já percebeu, a entrevista com o atrás referido Angioletti, um imaginário intelectual antifascista italiano refugiado em Portugal, saído da cabeça de Fernando Pessoa. Foi o próprio Pessoa o entrevistador e o entrevistado, além de ter redigido a carta que o suposto Angioletti endereçou depois ao jornal. Esta ficção serviu-lhe para expor anonimamente as suas ideias sobre o fascismo e Mussolini, bem como sobre a missão civilizadora de Itália, a unificação italiana e outras coisas mais esotéricas – como o alegado facto de o mundo ser dominado por poderosas forças ocultas, que se serviriam, sem eles saberem, dos bolchevistas e dos fascistas...

Porque terá Pessoa optado pelo anonimato e forjado toda a entrevista? Só ele próprio poderia esclarecer isso, mas nunca o fez nem sequer chegou a revelar publicamente o seu envolvimento nesta história. Aspecto curioso foi Pessoa ter surripiado a identidade de um intelectual italiano realmente existente, Giovanni B(attista) Angioletti, então  completamente desconhecido em Portugal, mas colaborador, desde 1926, da revista literária inglesa de T. S. Eliot, The Criterion, onde provavelmente o escritor português lhe foi descobrir o nome. Por sinal, o verdadeiro Angioletti não tinha nada de antifascista e até já tinha dirigido um jornal do partido fascista. A partir de 1927, Angioletti dirigiu com Curzio Malaparte a importante revista La Fiera Letteraria, depois chamada L’Italia Letteraria.

As provas documentais do que aqui se afirma encontram-se no espólio de Fernando Pessoa, à guarda da Biblioteca Nacional. Por elas se confirma a autoria pessoana da entrevista do Sol, que nos anos 30 o autor projectava reunir com outros escritos já publicados num volume intitulado Episódios – projecto este que, como centenas de outros, jamais realizou. O enigmático nome G. B. Angioletti constava mesmo de uma bibliografia das obras de Fernando Pessoa, por ele elaborada em 1928, mas não publicada nessa forma. Sabemos agora a que obra se referia.



Um antifascista surpreendente?

As opiniões sobre o fascismo expressas por Fernando Pessoa na entrevista forjada de Novembro de 1926 poderão porventura surpreender ou intrigar quem conheça a sua obra O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal, escrita um ano depois, em finais de 1927. Essa obra, nunca compreendida nem convenientemente estudada, é há muito acriticamente apontada como prova da adesão de Pessoa a ideologias autoritárias, se não mesmo ao Estado Novo. Em O Interregno, porém, Pessoa fazia duas afirmações taxativas: 1) a sua defesa de uma transição política sob a égide dos militares, a que chamou “um Estado de Interregno”, não significava adesão aos “actos particulares da Ditadura presente”; 2) as razões por ele aduzidas em defesa da Ditadura Militar em Portugal não se aplicavam “às ditaduras em geral”, nem eram “transferíveis para qualquer outra ditadura”. De resto, poucos anos depois de publicada esta obra, Pessoa já a dava por não escrita, declarando haver muito que “repudiar” nela e fazendo planos de a reescrever.




Capa do exemplar da Biblioteca Nacional.



Fernando Pessoa deixou na sua arca numerosos pequenos textos sobre o fascismo italiano e sobre Mussolini, muitos deles inéditos até hoje, além de três ou quatro artigos acabados ou semi-acabados, que não publicou ou não conseguiu publicar em virtude da censura da ditadura. Desses textos ressalta uma forte antipatia do autor pelo “nacionalismo animal” do fascismo, pela idolatria do Estado e pelo desprezo que o fascismo votava ao indivíduo e à liberdade do espírito.  

Como ilustração desse sentir, revelo aqui em estreia mundial um pequeno inédito de Fernando Pessoa sobre o fascismo, em que ele emprega a sua ironia mais mortífera. Fala de comboios que andam à tabela. Não conservei a ortographia do original (falta imperdoável para o autor, inimigo figadal da reforma de 1911).



A obra principal do fascismo é o aperfeiçoamento e organização do sistema ferroviário. Os comboios agora andam bem e chegam sempre à tabela. Por exemplo, você vive em Milão; seu pai vive em Roma. Os fascistas matam seu pai mas você tem a certeza que, metendo-se no comboio, chega a tempo para o enterro.



Realmente, Mussolini, entusiasta do caminho-de-ferro, dedicou grande atenção a esse meio de transporte. Já a chamada Marcha sobre Roma – que fez confluir perto de 25 mil fascistas para a capital italiana e se saldou pela entrega do poder a Mussolini – tinha sidoi feita principalmente… de comboio. O próprio Mussolini fez a sua Marcha sobre Roma na carruagem-cama do direttissimo que partiu de Milão às 20:30 do dia 29 de Outubro de 1922 e chegou a Roma no dia seguinte às 10:00 da manhã, num total de 13h e 30m de viagem (não sei se chegou à tabela). Uma das primeiras medidas do Duce como governante foi a de demitir a administração dos Caminhos-de-ferro do Estado, nomeando em seu lugar um commisario straordinario, que em 1923 despediu dezenas de milhares de ferroviários. Nos anos 30, com o novo comboio eléctrico, a viagem Milão-Roma passaria para 6 horas.



                                                                           José Barreto
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Fontes

Fernando Pessoa — “A obra principal do fascismo…”, manuscrito inédito. Espólio do escritor, BNP, 133E-12. Um agradecimento a Jerónimo Pizarro, que ajudou a decifrar a terrível caligrafia deste texto.


José Barreto — “Mussolini é um louco: uma entrevista desconhecida de Fernando Pessoa com um antifascista italiano”, Pessoa Plural, n.º 1, Primavera de 2012. Texto acessível em: http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pessoaplural/Issue1/PDF/I1A06.pdf



4 comentários:

  1. Fabuloso! Obrigado e parabéns pelo seu trabalho.

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  2. E se fosses levar na peida,minha vaca oportunista,que já foste tudo na vida?

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  3. Se eu te encontrar fascista do inferno dou-te uma carga de porrada
    Ficas a saber que os democratas são pessoas que tudo farão para defender a liberdade.

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    1. óh rodrigues! tens um problema.... não sabes ler e muito menos interpretar, ou seja não percebeste nada, só viste os bonecos e um ou outro titulo. além disso deve doer a cassete que tens entalada na garganta. eu resolvo o assunto usando a tua técnica da porrada mas com mais subtileza porque se calhar não tenho o teu cabedal mas aviso-te, se ferro os dentes na tua garganta nem no hospital resolvem o assunto tens que ir comigo pendurado, ao ferrador, se conseguires chegar lá vivo....

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