sábado, 29 de setembro de 2012

Cinzas de Abril.

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Manuel Moya, Las Cenizas de Abril, ed. original, 2011


Manuel Moya, Cinzas de Abril, trad. port., 2012



Contracapa


Michel Maiofiss, Casal no Boulevard Saint Michel em Maio de 1968



O Professor Henrique Cayatte deixou aqui um comentário ao meu «post» (ou «posta») intitulado «Paris é Lisboa», de 14 de Maio de 2012. No seu comentário, diz que gostaria de ter a minha resposta e dispõe-se, facto que saúdo, a dialogar comigo «nos limites da serenidade e da urbanidade».
         Assim:

Exmo. Senhor

Professor Henrique Cayatte



1 – Agradeço, antes de mais, o seu comentário e, tratando-se Vª Exª de um dos principais ilustradores e designers gráficos portugueses, agradeço igualmente a disponibilidade manifestada para debater publicamente o seu trabalho, facto que, pela sua raridade no contexto nacional, não posso deixar de saudar com grande apreço.


2 – Sublinho, por outro lado, que nunca esteve em causa a minha admiração pelo conjunto da sua obra, ponto que, aliás, deixo muito claro na entrevista ao «Expresso», onde digo: «não quero crer que tenha sido o próprio Cayatte» que tenha adoptado o procedimento que critico. De igual modo, no texto publicado neste blogue, deixei a referência: «Henrique Cayatte, cujos muitos talentos, sublinhe-se, ninguém questiona». Afirmo, aliás, que o Atelier Henrique Cayatte faz «a diferença» (ainda que não por esta obra em concreto). 


3 – O meu texto não tem, pois, o propósito de caluniar a pessoa ou o atelier de Henrique Cayatte nem o conjunto da sua obra, pelo que, se porventura se sentiu ofendido, apresento-lhe desde já as minhas desculpas.


4 – A crítica que fiz centra-se no facto de o livro em causa – intitulado, não por acaso, «Cinzas de Abril» – versar o 25 de Abril de 1974 e os seus antecedentes próximos, tal como, de resto, é assinalado na contracapa e na sinopse da edição portuguesa (aqui), bem como na sinopse da edição castelhana (aqui). A acção decorre após o 25 de Abril e no período final do marcelismo, como resulta, por ex., das páginas 23, 58, 79, 97, 128, 139, 171 e 209. Ora, Marcelo Caetano ascendeu à presidência do Conselho em 27 de Setembro de 1968. E só na década de setenta as personagens do livro – o narrador, Sophia e Fernando – se cruzam em Paris. Nenhum momento da acção decorre durante o Maio de 1968 ou reflecte, directa ou indirectamente, esse acontecimento histórico.     


5 – Concedi a Vª Exª o benefício da dúvida, afirmando não acreditar ser da sua autoria pessoal a capa do livro «Cinzas de Abril». Pelo contrário, Vª Exª não me concede qualquer benefício, afirmando que eu não li o livro  cuja capa critico («se tivesse lido o livro») e dizendo, no que concordo, que se exige «rigor»: a mim, como jurista e historiador, «e, afinal, a todos».  


6 – Sucede, porém, que li atentamente esta obra. E certamente Vª Exª também o terá feito, para a elaboração da respectiva capa, já que o rigor, como bem diz, é um imperativo que a todos obriga. Da leitura que fez, verificou, por certo, que o livro não constitui propriamente um modelo de rigor, do rigor que se exige a todos. Poderia dar-lhe muitos exemplos, que naturalmente Vª Exª também terá detectado. Assim, na pág. 67, os pais de Sophia decidem enviá-la, no Verão de 1967, de Luanda para Lisboa, internando-a num colégio religioso; mas, na pág. 184, é Sophia quem, no Verão de 1968, decide ir de Luanda para Lisboa continuar os estudos, contrariando a vontade dos pais. Na pág. 184, Sophia vem para Lisboa aos 18 anos; na pág. 312, vem para Lisboa com 17 anos de idade. Trata-se de um livro em que o narrador pergunta num hotel por uma mala deixada por uma «rapariga», uma «rapariga portuguesa» (p. 14), quando essa «rapariga», di-lo o próprio narrador, estava coberta de cãs brancas e era uma «mulher de sessenta anos» (p. 309). Na mesma página (p. 295) consegue-se a proeza de escrever que o narrador e Sophia se encontraram no enterro da mãe desta, em finais de 1985, e, pela última vez, vinte anos depois… em Março de 1996. Creio que concordará comigo que de 1985 a 1996 não decorrem vinte anos. Poderia dar-lhe muitos outros exemplos, muitos mais exemplos, mas obviamente já os conhece, visto ter lido o livro para a elaboração da respectiva capa.       


7 – No seu comentário, diz que o Maio de 68 é uma «referência importante» deste livro («Se tivesse lido o livro, veria que Paris e o Maio de 68 são aí referência importante…»). Ninguém discorda que o Maio de 1968 foi uma referência importante do 25 de Abril. O autor do livro vai mais longe ainda, dizendo que o 25 de Abril «tem aquela força dos movimentos estudantis e é uma consequência do Maio de 68» (cf. «Revolução na caneta e Portugal no ADN», in jornal «i», de 26-III-2012, aqui). No entanto, certamente por ignorância minha, não encontro no livro de Manuel Moya nada que permita afirmar que o Maio de 1968 é uma «referência importante» deste livro «Cinzas de Abril».


8 – Nesse sentido, e para que possamos prosseguir o nosso diálogo sobre este seu trabalho, solicito-lhe que me indique a página do livro em causa onde exista uma referência, explícita ou implícita, ao Maio de 68. Ou, se preferir, que transcreva aqui o trecho desta obra onde se note uma evocação, uma alusão ou sequer um vestígio do Maio de 68. Em suma, que permita fundamentar a sua afirmação que o Maio de 68 é uma «referência importante» deste livro.  
Sendo esse o acontecimento histórico retratado na capa, dizendo Vª Exª que o mesmo é uma «referência importante» no livro que ilustrou, peço-lhe que me informe, bem como aos leitores deste blogue, onde se encontra presente o Maio de 68 na obra literária que honrou com uma capa da sua autoria.


Cordialmente, manifestando novamente a minha admiração por Vª Exª,   

                   António Araújo

11 comentários:

  1. 'O mal de quase todos nós é preferirmos ser arruinados por um elogio a ser salvos pela critica'

    isto é revelador de personalidades em construçao q assentam a sua insegurança em edificios com pés de barro ( egos mal resolvidos) sejam simples porra!

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  2. Bom, das leituras que tenho feito neste blog só tenho a dizer que, na interpretação, nunca duvidei que aqui se faz crítica. E crítica bem fundamentada. E que se continue!

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    1. Subscrevo por inteiro estas palavras, afirmando concomitantemente que nem todos os "posts" merecem a minha concordância na sua substância!

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  3. Parece-me que a sua crítica ao atelier Cayatte tem na sua base o desconhecimento das condições de trabalho em que se elaboram este tipo de projectos - e todo o tipo de projectos - actuamente. Refiro-me aos constrangimentos legais próprios desta actividade, que desconheço, mas também à degradação completa das condições económicas mínimas para desenvolver um bom trabalho em qualquer sector. Não me parece correcto, face a isso, exigir um conhecimento profundo da obra ao ilustrador da capa. Na arquitectura, cuja realidade conheço, só o brio dos profissionais faz com que se mantenha uma decência mínima do trabalho produzido, pago miserávelmente, e muitas vezes com prazos que impedem que se mature o projecto, e se resolvam questões que são empurradas para a fase de obra, com o agravamento dos custos que isso acarreta e com a redução da qualidade final do produto que o cliente recebe. A crítica é uma actividade importante e não nego o direito que tem em fazê-la, mas repare que, por uma questão de sobrevivência, o próprio visado não pode vir aqui falar abertamente das condições (eventualmente muito degradadas) que lhe são dadas pelos clientes para desenvolver o trabalho. A própria editora talvez não tenha também possibilidade, face à crise, de pagar um trabalho melhor e feito com mais tempo.

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  4. Parece-me que nem toda a gente aqui sabe do que e de quem estamos a falar e não devia portanto falar do desconhecimento dos outros antes de aprofundar o seu próprio conhecimento .
    Nem todos se inserem no perfil do coitadinho ou do desgraçadinho que nem se pode defender porque pode saír prejudicado .
    De resto o visado já repetiu à saciedade e à sociedade que sabia muito bem o que estava a fazer e teve o acordo dos demais envolvidos (o que só lhe fica bem admitir) .
    Mesmo quando nos choramos devemos saber que não estamos todos no mesmo saco .

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  5. Os capistas "criativos" das editoras portuguesas, salvo excepções, são capazes de estragar um livro. Quando haja alguma coisa para estragar, não sei se é o caso. Interpretam a obra à maneira deles, como se isso interessasse a alguém. Querem deixar uma marca pessoal no livro, geralmente inadequada, quando não delirante. Os tradutores, por vezes, também vão pelo mesmo caminho, ou por incompetência própria ou por cedência a editores ignorantes. Um caso clamoroso, de 2008, foi o do título da edição portuguesa de The God Delusion, de Richard Dawkins, traduzido por A Desilusão de Deus, um título simplesmente falso e destruidor do livro. Até o teólogo da UCP Jorge Coutinho, na revista Didaskalia, assinalou o erro de tradução. Delusion poderia ser Ilusão (algo como o contrário de Desilusão), mas também havia as traduções possíveis Delírio (adoptado pela edição brasileira), Quimera, Miragem, Engano, Logro, Devaneio ou até o raro vocábulo português Delusão, um equivalente literal. O editor, a Casa das Letras (de poucas letras), impôs o título A Desilusão de Deus. Soava-lhe melhor do que A Ilusão de Deus, título proposto pela tradutora.
    J.B.

    Aliás, não são só os editores portugueses que são "criativos". A palavra delusion baralhou a mente de vários editores europeus, que puseram de lado as traduções possíveis de délusion, illusion, ilusión, delusión, etc. Os franceses, talvez por militantismo ateísta, intitularam o livro Pour en finir avec Dieu (!). Os espanhóis espremeram as meninges e traduziram delusion por espejismo, que é uma ilusão de óptica, com possível sentido figurado de aparência enganosa. Mas só a editora lusa é que conseguiu o prodígio de fabricar um título de certo modo oposto ao do autor.

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  6. Nada há de mais imbecil e irritante do que uma pessoa, por soberba intelectual, recusar-se a aceitar o seu erro ou o seu engano. Refiro-me obviamente ao sr. Henrique Cayatte.

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  7. Do que me interessa nesta troca de opiniões destaco que Cayatte na carta publicada no Expresso esclarece que "a imagem está citada na ficha técnica da edição".
    É um detalhe importante.

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  8. Aqui volto . Tive que voltar .
    É que detalhe por detalhe podemos passar por cima de muita coisa
    (prédios , candeeiros , dois CRS à direita da foto) mas não me parece que possamos passar por cima do facto de existirem milhares de fotografias do nosso 25 de Abril por aí e dezenas de fotógrafos dispostos a cederem os respectivos direitos de autor a troco de nada ou simplesmente do direito de figurarem na "ficha técnica" do livro .
    Até pelas funções que desempenha e onde as desempenha , Cayatte deveria ser dos últimos a caír daqui abaixo .

    P.S. - CRS é a "polícia de intervenção" francesa .

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  9. Infracções, design - Luísa Coder / José Russell

    Num país de falinhas mansas, onde quem esgatanha um lugar de alguma visibilidade, se poupa a confrontar quem já tenha lugar ao sol, não vá o “diabo tecê-las” ………… é uma lufada de ar fresco ouvir uma crítica desassombrada . Parabéns ao António Araújo que rompe com os “punhos de renda” que por norma nacional escondem “cartas na manga” . Só a crítica contundente, pode de algum modo frear abusos éticos, em campos sociais, onde grassa o relaxamento e a impunidade.

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  10. E então, já se descobriu a passagem do livro que alude ao Maio de 68 e que legitima a subtil associação de ideias que alegadamente se ostentaria na capa? Ficámos à espera!

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