domingo, 20 de outubro de 2013

No Jardim do Paraíso.

 
 
 
 
 
 
W. Eugene Smith, The Walk to Paradise Garden, 1946
 
 
 
 
 
 
A Margarida anda com problemas com o Vouga, pois na aula não conseguiu dizer onde era. A Joana não tem problemas, nem com o Vouga nem problemas de espécie alguma; não tem sequer problemas com problemas – e por isso é feliz. A Leonor não dá problemas, o que é uma bênção. Uma outra bênção, singular coincidência, aconteceu no espaço das últimas duas semanas. Sem terem conversado entre si, quatro pessoas de que gosto muito falaram-me da fotografia de W. Eugene Smith, The Walk to Paradise Garden, de 1946. Acreditem ou não, foi exactamente assim que se passou.
 
Mais do que a imagem em si, interessa-me a história da sua captura. Como aqui se conta, Smith fora gravemente ferido nos combates do Pacífico, mesmo no final da 2ª Guerra, em que se distinguira como um dos maiores fotojornalistas do mundo. Foi transportado para os Estados Unidos, onde passou dois longos e penosos anos, entre operações e exercícios de reabilitação. Naquele dia de Primavera, um dia quente, W. Eugene Smith encontrava-se em depressão profunda, perdido entre as dolorosas memórias de guerra, a incerteza quanto ao seu futuro como fotógrafo e o seu estado físico e psicológico actual, lastimável. Como recordaria anos mais tarde, aquele foi um dia «de decisão espiritual». Seguiu, de máquina na mão, os seus filhos Pat e Juanita. Caminhava no seu encalço, no meio de dores imensas:
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                Pat viu qualquer coisa na clareira, pegou a mão de Juanita e correram ambos em frente. Enquanto seguia os meus filhos entre arbustos e árvores de grande porte – e estavam maravilhados por cada pequena descoberta que faziam! –, observei-os e compreendi que, apesar de tudo, apesar de todas as guerras e de tudo por que passara, queria escrever um poema à vida e à coragem de continuar a vivê-la…
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          Então, fotografou-os. Na altura, não deu muita importância à imagem. Contudo, The Walk in the Paradise Garden seria escolhida para integrar, como fotografia de encerramento, a celebérrima exposição The Family of Man, organizada por Steichen. A partir daí, tornou-se um ícone (a expressão é fatal...) das fotografias de  família. Mais tarde, Smith retrataria o mundo do jazz e, muito depois, destacou-se a divulgar para todo o mundo novos horrores, iguais ou piores dos que vira em Saipan ou em Iwo Jima. Encontrava-se de regresso ao Japão, e chegou a ser violentamente agredido por funcionários da empresa química Chisso (que, aliás, ainda hoje existe…). Entre 1932 e 1968, a Chisso lançou  ao mar enormes quantidades de resíduos industriais, contaminados por mercúrio. Quase três mil pessoas foram afectadas por aquela que ficou conhecida como doença de Minamata. Mais de metade morreu. Os sobreviventes sofreram muito, tanto ou  mais do que Eugene Smith quando regressou da guerra. Smith perdeu a visão de um dos olhos na sequência das agressões dos funcionários da Chisso. Imagine-se o que isso significa para um fotógrafo… Porém, ele e a mulher não desistiram, prosseguindo juntos bosque adentro, com Aileen Smith a fotografar enquanto o marido recuperava. Durante dois anos, o mesmo tempo da sua convalescença no pós-guerra, Eugene e Aileen viveram em Minamata. Daí resultou um livro, publicado em 1975. Mas daí resultou, acima de tudo, a   imagem Tomoko Uemura no Banho, captada em 1971 e publicada em 1972, meses depois do ataque que Smith sofrera.
 
 
W. Eugene Smith, Tomoko Uemura no Banho, 1971 
 


         Naquele ano longínquo de 1946, graças à presença serena dos seus filhos, W. Eugene Smith tomara a decisão de seguir em frente, metafórica e literalmente falando. Em 1972, não desistiu de publicar a sua madonna de Minamata, apesar das agressões e ameaças de que fora alvo.


          Consumia anfetaminas e álcool em quantidades desmesuradas, para  poder continuar  incessantemente o seu trabalho, em que era viciado. Morreu de ataque cardíaco em 1978. Seria cremado na presença de Aileen e da sua primeira mulher, Carmen, bem como dos treze netos. Depois da sua morte, três habitantes de Minamata enviaram um telegrama à viúva, em que, entre outras palavras, diziam: your history is our courage itself


          Das muitas fotografias extraordinárias que W. Eugene Smith tirou ao longo da sua agitada carreira, uma das mais belas (porventura, a mais bela) mostra uma jovem freira no porto de Nova Iorque, aguardando a chegada dos sobreviventes do  naufrágio do Andrea Doria, ocorrido em 1956. Sozinha entre a multidão, a freira observa algo que desconhecemos, possivelmente o convés do navio que transportava os sobreviventes do desastre. Nos dedos esguios que tocam a boca e o queixo há uma grande tensão, enorme. Maior ainda, porém, é a serenidade do seu olhar expectante.    

 





 
 

 
 

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