domingo, 10 de agosto de 2014

Clarice, um Agosto em Lisboa.

 
 
 
 



Lisboa, 2 de agosto de 1944
 Almoço e jantar com Ribeiro Couto. Tudo bem. E no fim uma sensação de extremo cansaço e aborrecimento, de fim, de fim, de fim. Disse que era difícil me desenhar, tinha alguma coisa que não se pegava e a doçura. Que eu tinha três coisas: ____________: infância, vida profunda e alguma coisa áspera. Disse: animalidade banhada de luar. Queixo saudável. Deus meu me perdoai, me dai real paz.

(Clarice. Desenho de Ribeiro Couto, 2-8-44)

 
 
Não sei, talvez só em choque com os outros se tenha amor por si mesma.

Lisboa, 3 de agosto de 1944
Ontem – lanche com [Moscoso?], almoço e jantar com Ribeiro Couto, numa quinta e a beira do mar. Depois fomos a um lugar de ouvir fado, depois fomos à feira, bar Sevilha. Voltei 2 da madrugada e dormi até 1 de hoje. Hoje jantei com R.C. e Maria Archer.

 


(Este não é sopa)
Esparadrapo
Naftalina
Um ou dois vestidos
Sola de sapato
 
Sapato preto
Expressões italianas
Fazer as unhas antes de ir
A única coisa firme e boa na vida é estar mais ou menos contra todo o mundo e só ser de e com algumas. O que não exclui amizades, humanidade, piedade etc.







João Gaspar Simões
Rua da Artilharia, 44 – 4º andar
 
Não, não, eu não perdi minha vida, mas falei demais
 






Lisboa, 4 de agosto de 1944, sexta-feira

Acordei quase dez horas. Ontem jantei em Cacilhas com Ribeiro Couto e Maria Archer. Fiz compras de manhã, fui à casa de Ribeiro Couto, almocei com ele, li capítulo dos bonecos de barro. Só de tarde ele disse quanto gostou. Disse que a mim não adianta dar conselhos, que sem ter experiência eu sei de tudo. Coisas agradáveis e bem observadas, já ouvidas ou sentidas. Depois do almoço ele me mudou. Hotel mais barato é melhor. “Sem aqueles homens do Hotel Astoria, no hall, admirando você embasbacados”. Mudei-me para o parque Palacio. Li todo o romance de Maria Archer. Saudade de M. Fui jantar em Bucelas – paisagem nítida e cor-de-rosa ovelhas – olivais – Tejo –






negros dormindo na rua. Negrinhos com ar carioca metidos em togas, em passo ligeiro de malandro. Carnaval, Hollywood, os livros exóticos estragaram um pouco essa primeira impressão que poderia ser extraordinária.
Uma das melhores coisas interiores é sentir que hoje ainda não é amanhã, que amanhã fatalmente virá, mas que hoje é inteiramente hoje.
 




Vilas econômicas – Citael, Citael, sobretudo Citael – Ela sorriu pra mim, quando não sorri para quase ninguém. Diz a madrinha qu’ela achou-me engraçada e sem razão, com meus cabelos assim e tão novinha, acrescentou. Voltei uma hora, vou dormir, ler um pouco. Amanhã, trabalhar no meu livro, fazer o possível para suportar sem excessiva inquietação essa semana que vem até ir a Nápoles – Estado de viagem, de espera, de saudade, de projetos, de inquietação e ignorância e ansiedade. Tania, minha irmãzinha, eu te amo. E minha Elisa também. Marciazinha está dormindo agora. M. já deve estar em Nápoles. Quero que ele sinta tanta falta de mim quanto eu dele. Por culpa dele, porque ele sempre arranja um jeito de ler minhas notas, nada posso dizer a seu respeito. No entanto, há bastante. Boa-noite.





Lisboa, dia 8 de agosto de 1944
 
Que coisa desagradável, desagradável, desagradável. Ribeiro Couto jantou comigo na casa dele, já pela segunda ou terceira vez. Não vi nada demais nisso, ele me tratava como camarada, e eu até ficava com medo que ele estivesse saindo comigo de má vontade, só por dever de ser delicado. Fez duas poesias sobre mim, e disse que fez muitas outras por causa de mim. Que há muito tempo isso não sucedia. Que ele ia sentir minha falta. Que eu era estranha e curiosa. Mil vezes, a propósito de tudo, me dizia como ele era discreto, como o principal era a reputação. Que o fato de eu ter ido à casa dele, aos olhos dos outros, era como se eu tivesse dormido com ele. Por isso era melhor não dizer a ninguém. E hoje me fez fazer um papel chatíssimo, obrigando-me a fingir que era uma americana, para um amigo dele, “defendendo minha reputação”. Que nojo, que cansaço. Já há dias notava que ele se






aproximava um pouco de mim. Hoje andou de braço comigo – tão desagradável meu papel. E depois, enquanto na feira esperávamos a roda, segurou-me em mão, procurou encostar não na fazenda mas no pulso. Retirei-a discretamente. Disse que sou complicada e austera, que é horrível que ele se sinta atraído por pessoas diferentes dele. Que poderia ficar comigo três dias sem parar até eu morrer de cansaço. Eu já previra indistinta [a] isso, mas ele insistiu tanto para dançarmos. No carro, segurou minha mão, beijou-a muitas vezes, encostou-a ao rosto. Eu fiquei fria de aborrecimento. Eu disse: que explosão. Ele disse: só interna e mais coisas. Que ele não tinha dormido por minha causa (ele tinha antes contado apenas a insônia). Depois de outras tentativas, que eu repelia vexada, ele disse que sentia muita ternura por minha vida, uma vida difícil. Depois viu mesmo o meu silêncio, e disse: mais tarde você vai ver, vou me vingar. Eu disse: como?! Ele disse: sem gestos.
 





Antes eu vira que ele afastara [Moscoso?]. Disse-lhe que este não aparecera, ele retrucou: ele viu seus cabelos, sua boca, mas pensou que você era leviana, quando viu que não, afastou-se. Deus meu, me muerdo las manos de solitud. Mas não há nenhum desespero, há que é: desagradável. Amanhã há um jantar com convidados na casa dele. Assim não me incomodo. Mas quinta, sexta, sábado e domingo? Esquivar-me sem ofendê-lo. Disse-me que ainda no Rio, ele procurava me ver, em vez de passar por não sei que rua procurava a Silveira Martins. Que a base de vários poemas são agora olhos cinzentos. Me desagrada, horrível esse derrame lírico. Que eu o inspiro. Que dei vida às coisas. Que descubro pequenas coisas que ele sentia mas não sabia definir (mandíbulas das portuguesas)





Chuto, chato. Minha querida, sei que você está sozinha, mas você é você. Quando chegar em Nápoles, arranja um modo de trabalhar e ter horário e nesses intervalos trabalhar para você mesma, com o impulso que o trabalho fora dá. E que os homens façam o que quiserem. Inclusive M., que eu amo. Ribeiro Couto disse que todos sabiam que eu e Lúcio éramos namorados. Quero gostar de várias pessoas para não esperar nada de nenhuma, particularmente. Não quero que minha vida seja uma tortura de desilusões. Noto que de novo tenho que fazer a minha vida, que me defender dos outros. No fundo eles hão de rir de mim. Ou não? Possível não. O fato é que tenho que considerá-los em bloco para que nenhum deles particularmente me fira. É, a solidão anda. Boa-noite, querida. Durma bem!







Sábado – fazer unhas, me vestir, ir ao cinema, buscar minha pulseira, comprar um livro policial, de noite, ler.
Domingo – trabalhar até meio-dia, escrever carta, ir ao cinema.
Segunda – trabalhar até às doze horas, ler, ir ao cinema Todos os dias – trabalhar, ir ao cinema, ler policial, procurar costureira segunda-feira, indagar cartomante
Segunda-feira: comprar naftalina, comprar chapéu palha de milho, endireitar a unha, trocar o livro, comprar papel-carta, escrever, buscar a pulseira, dar broche prata consertar, telefonar costureira (Frederic-Luisa), ir ao cinema (Tivoli)
 
 
* * *
         O Instituto Moreira Salles é das coisas boas, profissionais e que funcionam bem no mundo inteiro. Tem uma página sobre Clarice Lispector que é só a melhor que alguma vez vi. Tudo: vida, bibliografia livro a livro, traduções comparadas, uma infinidade de «valências», que é termo não usado por Clarice – e ainda bem. Entre o muito que nos oferece, o Instituto disponibiliza em linha o caderno pessoal de Clarice, «caderno de bordo» de 58 páginas, doado pelo filho e herdeiro da escritora, em 2012.
         Há precisamente setenta anos, Clarice fez escala em Lisboa, rumo a Nápoles. Era Agosto. Antes disso, fizera escala em Fisherman’s Lake, na Libéria, e daí algumas referências a negros e negrinhos, anotações que mais tarde seriam incluídas no conto «A menor mulher do mundo», de Laços de Família. Também anotações esparsas que seriam integradas no romance O Lustre, publicado em 1946.
         Devo o conhecimento de Isto tudo a G.H., a quem agradeço muito, do fundo do coração selvagem.
 
 
António Araújo
 
 
 

 
 

3 comentários:

  1. Viva! Onde encontrou esta preciosidade? Permita-me que a partilhe no blog que dedico a esta notável escritora.
    Abraço e uma vez mais parabéns por este seu notável espaço.

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    1. A pergunta é retórica, porque cita a fonte. Fica o pedido de partilha, naturalmente. jab

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    2. Com o maior gosto, caríssimo Amigo! A descoberta não foi minha, mas tenho a maior gosto que a partilhe.
      Um abraço cordial do
      António

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