terça-feira, 5 de agosto de 2014

Verdade ou consequência.

 
 
 








 
 
 
A conselho da Filipa Melo, comprei o livro, que ainda não li. Mas a capa, suspeita, levou-me a regressar a um tema já aqui amplamente tratado, a manipulação das imagens. Repare-se nas diferenças entre as imagens das capas do livro de Katherine Boo nas edições portuguesa, por um lado, e, por outro, anglo-saxónica, brasileira e italiana. A criança tanto se encontra no meio de um mar de lama e águas revoltas, com uma cabana próxima e cores garridas (na edição portuguesa), como está sentada no meio de um charco plácido, com barracas e a cidade ao fundo (nas outras edições). Onde está ela, a criança? E onde está ela, a verdade da sua imagem? Onde quisermos. No mundo da manipulação, tudo é possível. E, quando tudo é possível, a verdade esvai-se. Como a monção que chega, passa e vai embora.
 
António Araújo
 
Post-scriptum – um comentador anónimo fez, a propósito deste texto, uma observação muito interessante, segundo a qual aqui – e cito – «não há documento, há apenas imagens como no cinema. Fotogramas que não são reais ou, melhor, são, mas podem não ser a representação da realidade».
Este comentário não só é perspicaz como suscita uma questão muito interessante, que deve ser abordada tendo presente duas coisas:
 
– em primeiro lugar, não estamos a falar de um livro qualquer, mas de uma obra de não-ficção, galardoada com os mais prestigiados prémios, como o Pulitzer, sendo peça fundamental do marketing deste livro – o que, em si mesmo, nada tem de reprovável – a divulgação do facto de a autora ter feito trabalho de campo durante dois anos, ou lá perto, convivendo dia e noite com os habitantes num bairro de lata de Bombaim. O livro é, pois, apresentado com um forte aparato de veracidade e nisso reside grande parte da atenção que tem despertado em todo o mundo;
 


Katherine Boo
 
 
 
 
         – em segundo lugar, a imagem da capa é uma fotografia da autoria de Alex Masi, um fotorepórter que tem trabalhado em todo o mundo. Quem consultar o site do banco de imagens Corbis verificará aqui que a imagem está legendada como pertencendo à categoria «Notícias», datada de 1 de Agosto de 2009, e com os seguintes dizeres: «India – Environment – Bhopal Water Contamination». Tem até um texto longo, que diz: «A lone girl is refreshing under the late monsoon rain in the impoverished Oriya Basti Colony in Bhopal, Madhya Pradesh, near the former Union Carbide industrial complex. When the heavy monsoon rain falls every year, it seeps through the buried waste of Union Carbide before proceeding to fill up and pollute Bhopal's underground reservoirs. Over 30.000 people are here at risk by the ongoing underground water contamination.»
 
 
Ou seja, a imagem é real, não é fictícia, não é uma encenação. A imagem é esta:
 
(c) Walter Rasi / Corbis  
 
         Como se vê, a capa da edição portuguesa até se aproxima bastante do original, se exceptuarmos a colocação escusada de umas palmeiras laterais a servir de enquadramento à figura da menina. Noutras edições, juntaram uns montes de lixo e prédios ao fundo, para tornar a coisa mais «forte» e contrastada. Ao contrário do que sucede no cinema, em que sabemos de antemão que um filme é de ficção e outro é documental, as imagens fotográficas possuem, em regra, uma presunção de veracidade que, sobretudo em casos como este (capa de um livro de não-ficção), aconselhariam, no mínimo, a que houvesse um maior cuidado – ou um maior escrúpulo e mais contenção – na colocação de adereços ou artifícios, como palmeiras e prédios e montes de lixo. A fotografia, cada vez mais, está a ser usada como substituto da ilustração. Por várias razões, a começar pelo facto de talvez ser mais barato comprar uma fotografia num banco de imagens do que contratar um bom ilustrador. Neste caso concreto, a escolha é ditada pela circunstância de uma fotografia ser muito mais «impactante», como agora se diz. Pretende-se, pois, obter o efeito «impactante» da imagem fotográfica sem pagar os custos morais dessa opção, os quais consistem, no caso de fotografias  como esta, para mais lidando com realidades como esta, no respeito pela sua integridade documental. O valor da presente imagem como documento – e é como documento que ela nos surge apresentada e comercializada – sai completamente arrasado deste processo. Dir-se-á que, ao vender a sua fotografia a um banco de imagens, o autor consente, expressa ou implicitamente, que a mesma seja manipulada. É provável. Em todo o caso, há aqui um problema. Se virmos a ficha técnica do livro, diz «Imagem de Capa: Alex Masi/Corbis/VM». Ora, depois do «tratamento» de que foi alvo, a imagem já não é a que consta do acervo da Corbis e já não é a que Alex Masi captou. Uma imagem documental, de «não-ficção», foi ficcionada pelo aditamento de elementos espúrios. Por isso, não posso acompanhar o comentador quando diz «não há documento, há apenas imagens como no cinema». No dia em que tal for regra, acabou o fotojornalismo, morreu a fotografia documental. Tudo seria mais simples se as editoras – neste caso, americanas, brasileiras, italianas e, em menor grau, portuguesas – evitassem manipular as imagens que compram, não se pusessem a «melhorar» essas imagens com palmeirinhas. Bastava um pouco de contenção na criatividade dos ateliers: se querem criação, façam ilustrações, inteiras e límpidas, honestas e sem artifícios. Mas não. Querem o melhor de dois mundos: o poder da fotografia e os melhoramentos do PhotoShop. Ao proceder assim, desrespeita-se o fotógrafo, o autor do livro-reportagem, os leitores crédulos e, acima de tudo, a própria fotografia (e, já agora, quem nela figura). Uma imagem não é sagrada, mas ao menos avisem quando for manipulada. Há capas de livros (nos romances cor-de-rosa, quase todas) que são inteiramente «construídas» de uma forma gritante e flagrante, tão óbvia que nem sequer nos interrogamos, sabemos o que está em causa. Mas quando, num livro de não-ficção, se utiliza uma imagem real para figurar na respectiva capa, deveria haver algum pudor e maior contenção. Diz o comentador que as imagens «são, mas podem não ser a representação da realidade». Totalmente de acordo. Conviria é que nos informassem, para que saibamos se estamos perante uma realidade ou diante de uma encenação. Poupava trabalho a todos – a si, que bem comentou (o que muito lhe agradeço), a mim, que escrevinho esta (mera) opinião e, sobretudo, aos leitores do Malomil, certamente mais interessados noutras matérias, como a columbofilia, domínio feérico e apaixonante que irá ser abordado já de seguida. Muito obrigado pelo seu comentário.
 
 
António Araújo 
 
 
 
 
 
 
 
 

8 comentários:

  1. Não creio.A conclusão é precipitada.Devemos é guardar distancia entre a imagem e o seu significado.Não ha documento.ha apenas imagens como no cinema.Fotogramas que não são reais ou melhor são mas podem não ser a representação da realidade.Confuso? Pois é mas é assim.

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  2. Gostei do Post-Scriptum, que é afinal um pequeno ensaio.
    onésimo

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    1. Obrigado, Onésimo! É muita generosidade sua...
      Um abraço,
      António

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  3. Com todo o respeito e reverência. Descobri o seu blogue há poucos meses, e tenho vindo silenciosamente a gostar muito da profundidade e dos temas abordados. Mas como este é um tema sobre o qual tenho reflectido muito não pude deixar de comentar.
    Uma fotografia é uma fotografia. Uma capa é uma capa - uma composição. (as letras tbm não fazem parte da fotografia). Na ficção, prefiro que a capa reflicta o conteúdo do livro que me minta sobre ele. Quem serve quem? Na minha opinião é a capa que serve o livro. Ainda assim, para os mais distraídos sobre a capacidade de manipulação dos programas informáticos modernos (sempre existiu manipulação na fotografia), na ficha técnica poderia estar escrito "Composição de capa a partir de foto de xxxxx". A internet existe, em dois cliques, tal como você fez, o possível interessado acederia à foto real.

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    1. Concordo inteiramente. Bastaria colocar «composição a partir de...» para que tudo ficasse mais claro. Ainda assim, para quê essa «composição», se a fotrografia, já por si, é tão eloquente? Quanto a mim, mas admito outras opiniões, a cap+a até ganharia outra força e outra expressividade (outra autenticidade, no fundo), se publicasse a fotografia talqualmente ela foi captada. Para quê as palmeiras e as cores garridas? Mais do que isso: a autora, Katherine Boo, saberá que a sua reportagem tem uma capa «encenada»? É que, como disse, a manipulação, no caso da edição anglo-saxónica (e brasileira e italiana9 ainda é mais evidente e grosseira.
      Muito obrigado pelo seu comentário.
      Cordialmente,
      António Araújo

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  4. Caro António Araújo
    É a primeira vez que leio o seu blogue, a nuvem das etiquetas é convidativa.
    Encontrei o Malomil há um par de semanas, graças a um comentário do Alberto Gonçalves no DN.

    …um tema já aqui amplamente tratado, a manipulação das imagens.

    É difícil exagerar a importância deste tema.
    A crença comum, que uma imagem vale mil palavras, leva diariamente os redactores de imagem dos telejornais a fazer horas extraordinárias, para montar pseudo documentários, recorrendo à carga emocional das imagens, para manipular, (ilustrar) teses politicas e abstracções ideológicas, só compreensíveis por palavras.
    Creio até, que este simplismo, põe em causa de forma perigosa a própria democracia.

    Não tendo uma opinião definitiva sobre este assunto.
    Partilho neste caso a elegante proposta do anónimo, que o valor das imagem como documento é relativo. ...“Devemos é guardar distancia entre a imagem e o seu significado. Não há documento. há apenas imagens... ...”

    Há quem diga, que o que nos apercebemos das imagens é determinado, por pressupostos vigentes e experiencias anteriores.
    Permita-me uma pergunta. Neste caso especifico, o que é que o fez suspeitar da capa da edição portuguesa e iniciar esta investigação?

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  5. Sabe, as palmeiras dão-lhe um arzinho mais light, para levar de férias.

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  6. Quando do inicio da fotografia era crença comum que era definitivo.A realidade estava ali.Mas não. A fotografia tem entre ela e a imagem a manipulação mesmo mínima da escolha do angulo,abertura etc etc tudo alterações da realidade.
    Concordo no entanto que quando citamos devemos respeitar as fontes.Citar.A Clara Pinto Correia que o diga.Por falar nisso que é feito desse genio?

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