sexta-feira, 1 de maio de 2015

O sol enganador.

 
 









 
 
Mão amiga trouxe boas novas, como sempre. Desta feita, a criação de um portal piramidal, o Brasiliana Fotográfica. Fruto da junção de esforços e de acervos da Fundação Biblioteca Nacional e do Instituto Moreira Salles, o portal tem centenas de registos fotográficos que vão desde finais do século XIX até aos anos 1920. Do Brasil inteiro. Paisagens, grandes panoramas, mas também cenas de rua, a par de retratos principescos da família imperial. Escolhi ao acaso algumas fotografias antigas do Rio de Janeiro, paisagístico-postaleiro e humano-jornaleiro. Amoladores, vassoureiros, vendedeiras de géneros vários. Crianças na pausa do trabalho, a enrolar tabaco, iguais às que hoje existem de meninos do Rio a cheirar cola ou a fumar crack. Mudámos assim tanto, em tantos anos? Duas imagens de escravos nas plantações e uma outra, muito curiosa, de uma missa campal no Campo de São Cristóvão, em Maio de 1888, dando graças pela abolição da escravatura.
 


 
O arquivo tem também a primeira fotografia captada no Brasil que mostra o trabalho no interior de uma mina de ouro. É precisamente de 1888, o ano em que se festejava a abolição da escravatura – e foi tirada pelo grande Marc Ferrez:
 
Fotografia de Marc Ferrez
 
Do arquivo não constam as fotografias de Sebastião Salgado nas minas da Serra Pelada, mas é quase impossível não pensarmos nelas. Sobretudo, quando vemos as imagens de Ferrez feitas no século XIX. Sobretudo no dia de hoje, que é o dia do trabalho e de quem trabalha. Talvez o garimpo tenha de ser mesmo assim. Talvez não exista forma de ele não ser assim, sofrido e suado. E nem adianta mostrar de novo, à exaustão, as imagens bíblicas do formigueiro humano da Serra Pelada. Em nítido contraste com o Rio idílico das paisagens fin-de-siécle, antes do desastre urbano.
 



Fotografias de Sebastião Salgado
 
 
Convém lembrar que ali, na febre do ouro, há uma violência inaudita, presente a cada instante: por mês, registam-se 60 a 80 mortes por causas desconhecidas. Mortes violentas, homicídios surdos, facadas traiçoeiras dadas no fundo da noite, golpes surdos motivados pela cupidez do lucro. Os homens assemelham-se a figuras de barro, protótipos do Aleijadinho, mal se distinguindo da terra e da lama que escavam na demanda aurífera. Têm de subir das profundezas, em escadas periclitantes, carregando às costas vários quilos de terra – e, com sorte, uma pepita ou outra. Uma vez depositados lá em cima, os sacos de terra não têm dono: são sorteados ao acaso entre quem os transportou, na proporção do que cada um trouxe do fundo dos infernos. O trabalho dos homens, como em toda a parte sucede, é inteiramente entregue aos acasos do destino. Com sorte, tudo muda num segundo, num instante fica-se rico (ou, pelo menos, remediado o suficiente para refazer a vida noutro lugar). Na Serra Pelada existe assim uma ordem jurídica própria, paralela, regida somente pela lei da fortuna e do azar. A propriedade de cada saco de terra, do produto do trabalho, é suspensa e abolida. Nesse sistema, a justiça não pode ser mais cega e, portanto, mais justa – o resultado do suor de cada mineiro é repartido aleatoriamente. No final do dia, a mina converte-se em casino. O que, podendo ser justo e evitar conflitos, induz perversamente a inveja no coração dos homens. E fá-los trabalhar mais, cada vez mais, para que com o trabalho consigam diminuir a intervenção do acaso. Quanto mais sacos carregados, mais probabilidades de mudar de vida. É assim, em todo o lado do mundo. Mas, em derradeira instância, é a sorte que decide quem ganha e perde.  
 


 
Como lembrou Sebastião Salgado no filme O Sal da Terra, o risco daqueles homens caírem dali abaixo é enorme. A queda de um arrastará consigo muitos outros, os companheiros que seguem atrás. Uma das imagens de Salgado, porventura a mais conhecida de todas, mostra um negro em breve repouso, de braços cruzados e musculados, encostado a um poste. A postura resignada daquele homem, não sabemos bem porquê, faz lembrar as representações de São Sebastião na pintura antiga. Não faz?
 


 
 
Mas, de toda a série de imagens, a que mais me impressiona é a de um homem esgazeado, quase desfigurado, de olhar azul vazio, fixo num ponto que desconhecemos. Que pensaria ele, naquele preciso instante?
 
 
 
Sem demagogias baratas nem lugares-comuns, a dúvida maior que nos assalta é esta, sempre esta: de substancial, que diferença existe entre os escravos negros das plantações e os mineiros da Serra Pelada? Que mudança verdadeiramente ocorreu nestes cem anos? Avanços, houve muitos, sobretudo no hemisfério de cima, que é o nosso, aquele em que se escrevem e lêem estas coisas nos computadores. Quanto ao mais, não importa, não interessa. Está sol, as praias decerto cheias e as ruas de Lisboa povoadas de turistas. Milhões de selfies.
 
António Araújo

2 comentários:

  1. Sim, também me lembrou o Martírio de São Sebastião. Talvez do poste e da posição dos pés e das pernas.

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    1. O seu artigo, como de costume, é muito interessante.

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