quinta-feira, 20 de agosto de 2015


impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

# 96 - CHRISTIAN McBRIDE
 


 
 
 
Que o jazz acabou é o invariável mantra recitado pelos que o despovoaram, entregue ao punhado de cultores progressivamente grisalhos, alguns radicalizados, porque cada vez mais acrimoniosos com um mundo desatento à sua paixão, outros apenas confortáveis por serem deixados em paz no enlevo desta música que já ninguém discute.
Visto assim, o jazz tornou-se, de facto, num género molecular. Todavia, remanescendo ao desinteresse das editoras, que vão esquecendo os músicos na sala de espera, e das dificuldades em chegar, fora do armazém grossista do digital, às gravações publicadas, é curioso que, para quem estiver interessado, não esmoreceram as atracções no mundilho do jazz.
Está hoje a autenticar muito do que dela se esperou a geração despontada na dobra do século, a última que ainda ouviu alguns heróis lendários ao vivo. Entre estes músicos que vimos crescer e são agora veteranos, destaca-se o contrabaixista Christian McBride. Assim que cumpriu o americano ritual de atirar ao ar o capelo quadrado na cerimónia de formatura da Juillard – canudo mais conceituado não haverá no planeta – foi convidado a fazer oficina nas actuações saxofonista Joshua Redman com o guitarrista Pat Metheney, capazes de apertar o estômago dos bravos quanto mais o de um chavalo. Tendo dado belíssima conta do recado, desde esse ano de 1993 que McBride se foi firmando na cena do jazz. “Exceptionally gifted young bassist” ou “astonishing”, escreveu Gary Giddins, um Midas da crítica como haverá poucos, dourando o crédito daqueles que elogia.
A humildade é o atributo primordial de um contrabaixista, aquele que tanto mais se evidencia quanto mais terso e seguro for o tapete rítmico e harmónico que desenrolar à passada dos sopros ou do piano, conforme o solista. (Ponha-se lá o Mingus no bolso outra vez: ninguém melhor do que ele brandiu a ditadura do contrabaixo para pôr em sentido os agrupamentos, que em ordem ordenada interpretavam as suas próprias e sofisticadíssimas composições). A arte de Christian McBride não está, portanto, no andamento melódico (em que muitos se despistam e estampam, quando a envergadura não corresponde à ousadia), mas num pulsar rítmico de acertar o relógio por ele, e numa claridade tonal incapaz de deixar à sombra uma nota que seja.
Nem sempre contraído pela tradição, tinha dias que Christian McBride pousava o canónico contrabaixo e fazia uma mãozinha no baixo eléctrico, dedilhando um funky de asas abertas. Inevitavelmente lhe caíam em cima os anciãos com reprimendas; e embora soubesse que se intrometiam por amor e crença nele, pois os mestres só dirigem palavra aos favoritos, McBride resmungava: “Haverá alguma cerimónia de graduação em que Ray Brown, Hank Jones ou Tommy Flanagan venham ao Clube Bradley’s outorgar-me o diploma?”
É difícil individualizar um registo especial de um músico que vive a esplendorosa idade dos ”-entas”, dado que, como tão bem sabem os franceses, uma obra-em-progressão é feita mais de ziguezagues que de evoluções e a qualquer hora pode ser renegada pelo seu autor. Deste modo, escolha-se “Sci-Fi”, não só porque apesar de ter sido editado no ano 2000 a revista Downbeat o arrolou entre os melhores da primeira década do séc. XXI, mas, sobretudo, porque o disco está naquela charneira em que já se pedem confirmações em vez de promessas, não obstante se lhe exija a franqueza da juventude, em contraponto ao siso que assenta com a maturidade.
 

 
Sci-Fi
2000
Universal / Verve – 5439152 Ron Blake
Christina McBride (contrabaixo, baixo eléctrico, Fender Rhodes, teclados), Ron Blake (saxofones tenro e soprano), Shdrick Mitchell (piano, Fender Rhodes), Rodney Green (bateria), Herbie Hancock (piano), Dianne Reeves (voz), Toots Thielmans (harmónica), James Carter (clarinete baixo), David Gilmore (guitarra acústica e eléctrica).
 
“Sci-Fi” é um ovo. Dali tudo pode nascer, tantos são os percursos que anuncia as referências que engloba. Os puristas achá-lo-ão demasiado híbrido, porquanto Christian McBride dedilha o contrabaixo, toca-o com o arco, sola no baixo eléctrico, vai do funk ao hard bop, tempera com uma pitada de cool, inclui no repertório “Walking on the Moon” de Sting (bem de longe, como se o ouvíssemos noutro planeta), ou o complexo “Havona” de Jaco Pastorius. Uma salganhada? Não, precisamente, porque cometeu o prodígio de ser sintético e não eclético, ou seja, de decantar na forma do jazz todas as referências alienígenas. Se foi por razões comerciais que Christian McBride pediu a algumas estrelas que abrilhantassem “Sci-Fi” – Herbie Hancock, Dianne Reeves, Toots Thielmans, James Carter, David Gilmore – se o fez para legitimar ou ratificar o seu estatuto, se foram estes os casos, em boa hora vieram, visto que a reunião em nada resultou protocolar ou cuidadosa, mas com o tempero de um encontro de parelhos.
Em 2009, depois de ter sido votado contrabaixista do ano pelos leitores e pela crítica (mais entronizações se seguiram) Christian McBride premiou-se, rematando por boa soma em leilão, o magnífico contrabaixo do seu mentor Ray Brown, um gesto que teve “mais a natureza de uma herança do que o resultado de uma aquisição”. Não será, portanto, amanhã que o jazz vai acabar…
 
 
  
José Navarro de Andrade
 
 

3 comentários:

  1. Voltei.
    Como o post do Benny já mora longe, aproveito para dizer que estou a preparar uma entrada para ele, mas trata-se de uma estupenda edição do Público de 2005.
    Acontece que o formidável booklet tem 60 páginas e é difícil de digitalizar.
    Vai demorar um tempo.
    Aqui o McBride vai ter que esperar.
    Até breve.

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  2. Obrigado.
    Coloquei hoje o McBride com Outros em dose dupla.

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