terça-feira, 25 de agosto de 2015

Mar adentro.

 
 



         Há dias, correu mundo a notícia do funeral faustoso de um capo mafioso. Roma, a putrefacta, parou inteira enquanto o féretro fétido, levado em carro de aparato, seguia lentamente ao som da música do Padrinho.
 
         Das velhinhas de Daone, que eu saiba, pouco se falou – pelo menos, por cá. Daone é uma aldeia pequenina situada nos Alpes italianos, agora conhecida urbi et orbi devido a um grupo de senhoras idosas rebeldes. Nunca tinham ido à praia, nem sequer visto o mar. Ergueu-se uma campanha de crowdfunding no clube local de reformados, o Circolo Rodondendro. Umas boas almas voluntárias escreveram centenas de postais para arranjar dinheiro para a viagem. Até ao Papa escreveram. Francisco atendeu as preces, parece. Reunida a verba necessária, as senhoras lá foram até à costa da Croácia, a uma ilha chamada Ugljan. Doze horas de viagem de autocarro. Iam numa excitação tremenda, ansiosas como as crianças no advento do oceano. Não pararam de cantar no caminho inteiro (o que, para quem as acompanhava, não deve ter sido fácil, mas enfim.) Sonharam com aquela viagem durante anos, mas não tinham meios para a pagar. Foram ao ponto de posar para um calendário casto, tipo Pirelli-sénior, mas o esquema não resultou, vá-se lá saber porquê. Valeu-lhes o Papa, que é um santo padre, e mais uma dúzia de benfeitores.
 
Ao chegarem à borda d’água, entraram pelo mar adentro, destemidas. Chapinharam à farta. Mas do que gostaram mais foi, imagine-se, de participar numa procissão à Senhora da Neve, que todos os anos se realiza naquela ilha croata. Foi, aliás, por causa da procissão que escolheram Ugljan como destino para as suas primeiras férias balneares. Enquanto estiveram em Ugljan, foram tratadas com a hospitalidade que é devida a todos quantos chegam aos 70 e muitos anos de idade sem nunca terem visto o mar. Apenas se deram mal com o peixe às refeições. Vindas dos fundos dos Alpes, de onde nunca tinham saído, não estavam habituadas àquele género alimentício, que vai à grelha e convém estar fresco. Mas a coisa resolveu-se, sem dramas. A excursão correu tão bem que até vai dar um filme, a estrear nos inícios do próximo ano. Funne– le ragazze che sognano il mare, assim se chama a película documental.

 
 

 
 
 
         Para quem julgue que tudo isto não passa de uma patetice delicodoce, compare-se o destino das velhinhas alpinas e o do mafioso romano. Este foi a enterrar com pompa, mas levou consigo uma vida feita de ódio, negrume e muita camorra. Enquanto o féretro percorria as caóticas ruas da Eterna, um grupo de senhoras divertia-se a valer nas águas cálidas do Adriático. Depois, devotas, acompanharam uma procissão antiga. E ainda tiveram tempo para umas comprinhas em lojas turísticas. Fizeram o que, ao longo de séculos, todas as mulheres fazem nas lojas de praia, que é experimentar todos os pares de óculos escuros mostrados nos expositores. No regresso a casa, não sei se cantaram ou se deram tréguas aos seus acompanhantes. Talvez viessem fatigadas, mas certamente felizes. Quase todas viúvas. Média de idades: 80 anos. Como a minha Mãe, que a esta hora está a ver o mar, e até talvez nadar. Na praia para onde íamos, era eu ainda mais criança do que as minhas filhas agora o são.
 
 

 
Na aldeia das velhinhas, os mais azedos e bota-abaixistas não acreditaram que algum dia as senhoras concretizassem o seu sonho. As más-línguas (que as há muitas, nas terras pequenas) duvidaram do êxito daquele empreendimento turístico. Mas, às tantas, quando a coisa se aproximava de um final feliz, houve homens que quiseram juntar-se à aventura adriática. As senhoras não deixaram, pois aquela era uma crónica só feminina. A única excepção varonil foi o médico da aldeia, que acompanhou as senhoras no autocarro cantante. Chiara, uma das primeiras e mais entusiastas animadoras deste projecto, ficou em terra, permaneceu nos Alpes. Os seus problemas cardíacos fizeram-na recear a passeata temerária. Foi pena. É a vida.

 
António Araújo
 
 
 
 
 

4 comentários:

  1. Não sabia e adorei a história. E eu não experimento TODOS os óculos escuros que estão nos expositores. Só alguns...
    Teresa Mónica

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