quinta-feira, 5 de novembro de 2015


impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 
# 61 - ART PEPPER

 


 


Foi a mulher quem o acordou a meio da manhã: “tens uma gravação marcada para hoje”. Estremunhado e ressacado, Art Pepper não comediu a irritação provocada pela surpresa, descongestionando-a numa lufada de impropérios. Um par de horas depois Les Koenig (um produtor que se dedicara ao jazz depois de em 1950 ter sido exposto na lista negra de Hollywood) quis acalmá-lo à porta do estúdio: “vai tudo correr bem” – Art retorquiu com um grunhido.

Diane Pepper e Koenig haviam combinado em segredo esta sessão, na esperança de o facto consumado evitar que o saxofonista procrastinasse ou aliviasse a pressão com um surto no consumo de heroína. Há seis meses que Art Pepper não pegava no saxofone e quando o tirou da caixa a cortiça do tudel estava ressequida. Agravava a sua ansiedade ir tocar tão-só com a formidável secção rítmica que era o êmbolo daquele que ficaria para posteridade como o “primeiro grande quinteto” de Miles Davis. Apresentar-se diante de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones, com quem nunca se encontrara, sem preparação e com um instrumento danificado, era uma imprudência capaz de ulcerar o mais destemido. Vazado pelo pânico Pepper foi aceitando sugestões para o repertório: “e que tal ‘You’d Be So Nice to Come Home To’?”, alvitrou Garland; “em que tom?” “Ré-menor.” E assim começaram a tocar. “Red Pepper Blues”, por exemplo, foi escrevinhado num guardanapo mesmo antes de o interpretarem.

Este relato da confecção de “Art Pepper Meets the Rhythm Section” encontra-se na autobiografia do saxofonista “Straight Life” (título também de um dos temas do disco) em que ele descreve as muitas agruras e as limitadas alegrias que extraiu da vida, com uma franqueza que não é exagero qualificar de catártica.

Há qualquer coisa de inverosímil nesta história que se fez lenda. “Art Pepper Meets the Rhythm Section” mostra um entendimento tão aprimorado e conclusivo entre os músicos que custa acreditar ter sido fruto de uma pura intuição, mesmo reconhecendo que o hemisfério esquerdo do cérebro de Art Pepper, supostamente o da razão, operava sobretudo como um complicador da criatividade do hemisfério direito, também dito da paixão, e que por isso ele era muito mais fecundo em ambiente descontraído do que preparado. Mas como “Art Pepper Meets the Rhythm Section” faz prova irrefutável da genialidade dos seus intervenientes, que dimanam aqui uma sensação de estado de graça, o encanto de uma narrativa fantasiosa sobre a sua produção pode ser mais realista do que a comezinha material factual.


 

 

Art Pepper Meets the Rhythm Section

1957 (2010)

Contemporary / Original jazz Classics

Art Pepper (saxofone alto), Red Garland (piano), Paul Chambers (contrabaixo), Philly Joe Jones (bateria).

 

 

Germinado e podado na orquestra de Stan Kenton, Art Pepper amadureceu como o espécimen único de uma fauna improvável: o bopper branco da west coast. Apropriando-se da secura harmónica de Lester Young, mas sem o seu lirismo, e dos ritmos de Charlie Parker, mas mais relaxado e menos vertiginoso, a singularidade de Pepper caiu no goto do público, que na barométrica votação da revista “Downbeat” de 1952 o elegeu como o segundo melhor saxofonista alto, atrás de Bird.

Todavia, de tanto querer emular os mestres Art Pepper acabou por copiá-los nos piores vícios, de forma que queimou um total e dez anos da sua existência em várias passagens pela prisão; numa delas foi autorizado a praticar com Frank Morgan, outro “hóspede” de San Quentin. Também contribuiu para o descalabro um forte complexo racial, deveras sentido e não totalmente imaginado por um branco que se intrometia numa cultura musical geneticamente negra.

Em 1975 Art Pepper regressou dos infernos para um último fôlego; na capa do disco “Living Legend”, que marcava esta espécie de ressurreição, ele posa com uma T-shirt negra sem mangas, mostrando tatuagens de presidiário nos braços – há ferretes que não se apagam.

 


 


José Navarro de Andrade



 

2 comentários: