terça-feira, 30 de agosto de 2016

Lisboa, 1936.


 
Ralph Fox (1900-1936)
 
 
 
Jornalista, escritor, militante do Partido Comunista inglês, biógrafo de Marx e Gengis Cã, Ralph Winston Fox (1900-1936) notabilizou-se como combatente na Guerra Civil de Espanha, tendo morrido na Batalha de Lopera, em finais de 1936. Com tradução de Rui Lopes, prefácio de José Neves e ilustrações de António Paredes, a Tinta-da-china publicou em 2006 Portugal Now. Um espião comunista no Estado Novo http://www.bulhosa.pt/livro/portugal-now-um-espiao-comunista-no-estado-novo-ralph-fox/, livrinho de Ralf Fox em que este conta a sua passagem por Portugal. Um breve extracto:   
 
Lisboa, Avenida da Liberdade, 1936
Fotografia de Eduardo Portugal
 

Se alguma vez considerar a hipótese do exílio, voluntário ou involuntário, terá à escolha muitos sítios piores do que Lisboa.
         A cidade é limpa e pitoresca, banhada por uma luz dourada, suave e encantadora, que apaziguará a tristeza do exílio; também não há pobreza à vista, o que nos poupa a remorosos quando nos sentamos à mesa num dos três hotéis confortáveis de Lisboa.
         É certo que esta ausência de pobreza é um mero acidente arquitectónico, pois os pobres, como em qualquer outra cidade, são a maioria da população, mas encontram-se convenientemente afastados e arrumados nas ruas íngremes e estreitas que as largas avenidas centrais não cruzam.
         Apesar de tudo, até mesmo a pobreza parece suportável sob a doce luz de Lisboa, e como a moeda nacional está alegremente desvalorizada, a vida parece barata – mesmo que não o pareça aos nativos.
         O terceiro factor indispensável ao ambiente do exílio também aqui se encontra – uma atmosfera cosmopolita.
         É verdade que a maioria dos habitantes são obstinadamente portugueses, mas os exilados são todos espanhóis, os exportadores de vinho são ingleses, os comboios são alemães, o gás e a electricidade são franco-belgas; os eléctricos, os telefones, os marcos de correio e os capacetes dos polícias são também ingleses; por outro lado, a política do governo é italo-alemã.
         Este governo exemplar criou recentemente uma estância para estrangeiros, situada no topo de uma falésia por cima de uma faixa atlântica de praia, a uns trinta quilómetros de Lisboa. É verdade que eles não fizeram o Estoril motivados por sentimento de pura hospitalidade, mas eis que ele ali está agora, e não vale a pena esconder a gratidão por isso.
         De facto, o Estoril é um local único em todo o mundo, pois é a única estância de recreio que foi criada directamente pela crise económica mundial. Eis a razão para este paradoxo. Os portugueses, tal como os irlandeses, são uma nação de camponeses pobres que depende dos familiares ricos da América para obter o dinheiro que lhes permite viver. O orçamento português, tal como o camponês português, sempre dependeu em grande medida dessas remessas mensais do Brasil. Com a crise, elas começam a diminuir. Então, o astuto ditador Salazar, que tinha desvalorizado a moeda, indexando-a depois à libra inglesa – que também já estava desvalorizada –, lembrou-se de construir o Estoril para atrair turistas estrangeiros.
         Há uma esplanada encantadora sobre a praia, um casino luxuoso, e um belíssimo hotel com um bar muito moderno. Sally, que tinha sido o primeiro barman nesse local, afiança a qualidade do bar. Ele contou-me que o primeiro habitante do Hotel Palace – e, durante duas semanas, o único hóspede – foi Chiappe, o ex-prefeito da Polícia de Paris. Não sei se Chiappe foi também o primeiro visitante a jogar no casino, pois Sally só gosta de jogar dados, e com os dados ele é um mestre.
         Além do mais, Sally joga sempre para ganhar e, tendo em conta que Chiappe é conhecido por ter a mesma fraqueza, Sally não terá provavelmente demonstrado qualquer interesse por uma tal faceta do seu hóspede.
         O Estoril está ligado a Lisboa por uma boa estrada e por uma linha de comboio. É o paraíso de um exilado. Os grandes de Espanha, os condes, marqueses e duques apaixonaram-se pelo Estoril. Enchem o casino todas as noites, nas suas elegantes roupas inglesas; sentam-se na esplanada à tarde, apanham banhos de sol (sem as roupas inglesas) de manhã.
         (…)
         De tempos a tempos, os salões dos hotéis agitavam-se com a chegada romântica de refugiados estrangeiros ricos. Lembro-me de um desses casos: uma lânguida senhora espanhola com passaporte dinamarquês, presenteando um exportador de vinho inglês com a descrição dos horrores da vida entre os anarquistas de Barcelona. Ela tinha fugido para a Alemanha, e depois para a Escandinávia. Agora ia regressar a Espanha, para se juntar ao seu marido, seguro atrás das linhas rebeldes.
         Estava tudo preparado para ela. O cônsul dinamarquês tinha visado o seu passaporte junto dos rebeldes e enviara telegramas dela para o marido, que se encontrava em Ayamonte, na fronteira de Espanha. Em Ayamonte, disse o exportador de vinhos, os ingleses estariam pronto a abençoar pessoalmente a reunião desta família. Não tinha o seu apartamento em Barcelona sido revistado por brutos que procuravam jóias? Na sua presença, um cavalheiro sentia-se instintivamente um Pimpinela Escarlate.
         Por vezes, nos salões dos hotéis, ouviam-se conversas de grandes negócios. Pode ouvir-se (como se ouviu uma vez) um francês que tenta vender munições e um judeu inglês que tenta vender máscaras de gás, ao mesmo tempo representante de Burgos. Uma vez ouvi alguém a preparar uma deslocação dos seus negócios de Espanha para Portugal.
         Que estava disposto a iniciar a sua produção em Portugal, dizia ele ao pequeno funcionário do governo português, tímido e servil, se conseguisse usar petróleo em vez de electricidade. Em breves momentos, ouviram-se referências a grandes nomes: Shell, Rio Tinto, Rotschild, um banco inglês.
         Tudo isto representa o outro lado da contra-revolução. Quando lemos acerca do homens e das mulheres que lutam desesperadamente para serem livres em Espanha, das tropas africanas e dos legionários estrangeiros, dos massacres de prisioneiros e do bombardeamento de crianças, não esqueçamos Lisboa, ou o quadro ficará incompleto.
 
Ralph Fox            
  

 

 

3 comentários:

  1. Uma elegância na escrita. Luminoso! Um único senão: Um comunista e um soldado que só consegue encontrar conforto em três dos hotéis de Lisboa? Perdoa-se na presunção de ser uma figura de estilo!

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  2. Mais uma vez, obrigada!
    Maria Teresa Mónica

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  3. Muito bons estes olhares sobre uma outra Lisboa.

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