segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Portugal, 1935.

 
 
 
 
 
 
 
         A estadia em Portugal do belga Paul Descamps, docente das Faculdades de Direito de Coimbra e de Lisboa, deu lugar à publicação, em 1935, do livro Le Portugal. La vie social actuelle (Paris, Firmin-Didot et Cie., Éditeurs), entre outros trabalhos. A obra, em cuja génese Oliveira Salazar teve um papel decisivo, é prefaciada por Serras e Silva e constitui um retrato panorâmico do país, seguindo os cânones da sociologia – ou, melhor dizendo da «sciência social» – da época. Mesclando estatísticas  e gráficos com trechos impressionistas e pouco rigorosos, escrito num estilo algo enfadonho e desinspirado, o livro de Descamps tem, não obstante, um interesse histórico inquestionável. Numa tradução sem preocupações de rigor, seleccionou-se, entre tantos outros possíveis, um breve capítulo dedicado à condição das mulheres nos alvores do Estado Novo.   
 
 

Portugal, 1935, aqui, do excepcional B.I.C. Laranja

 
 
 
         A situação das mulheres
 
 
         As principais regras do Código Civil de 1867 são:
         O pai é o chefe de família; a mãe tem apenas o direito de ser consultada, excepto para o casamento de um filho menor, em que deve dar a sua aprovação. Nesse caso, se não existir acordo entre os pais, cabe ao tribunal decidir.
         A mulher solteira e maior de idade é emancipada e goza de todos os direitos civis.
         A mulher casada, pelo contrário, encontra-se na dependência do marido no que respeita aos seus bens. Seja qual for o regime matrimonial, é o marido que administra todos os bens, não podendo, contudo, alienar os bens imóveis da esposa.
         A mãe só adquire as prerrogativas de chefe de família em caso de ausência, doença, incapacidade psíquica ou morte do pai.
         A lei não estabelece a igualdade dos cônjuges em caso de adultério.
         Após a República, foi instituído o divórcio. Quando foi consagrado, alguns maridos começaram a retirar os filhos às suas esposas para que estas lhes concedessem o divórcio. Desde 1931, as mães podem recorrer aos tribunais para regular estas situações.  
         A República consagrou também o reconhecimento dos filhos adulterinos, mantendo-se esta situação sob sigilo. Desde 1932, porém, o cônjuge pode autorizar o levantamento do sigilo, o que permite que ao filho seja atribuída uma pensão de alimentos.
         Apesar da posição subalterna a que a lei submete as mulheres casadas, as raparigas jovens não aspiram sequer a que o casamento lhes traga mais liberdade. Na verdade, existe uma diferença entre a lei e os costumes e, na verdade, estes impedem-nas de fazerem o que parece mal, e a lista dos tabus sobre «o que é próprio» (comme il faut) é muito longa, ainda que pouco a pouca tenha vindo a diminuir, como é natural.
         Desde logo, uma mulher solteira nunca é verdadeiramente independente, salvo se possuir meios de subsistência suficientes. Em certas regiões, as mulheres do povo trabalham muito a troco de magros salários, dado o excesso de oferta de mão-de-obra. Entre as classes mais altas, a mulher que queira trabalhar ou prosseguir a fundo os seus estudos é geralmente alvo de censura e reprovação. Antigamente, só podiam almejar alguma independência material as que recebessem uma herança razoável. Tratava-se, pois, de uma ínfima minoria, apesar de vigorar a regra da igualdade entre sexos em matéria sucessória.
         No entanto, sobre todas as mulheres recai o tabu da separação dos sexos. Antes da Guerra, até mesmo em Lisboa uma mulher que saísse sozinha à rua era malvista e não passava despercebida. Era um facto que, à sua passagem, os homens mais cavalheirescos se descobriam e lhe dirigiam cumprimentos simpáticos; mas também havia muitos indivíduos grosseiros que se permitam certas familiaridades de mau-gosto. Foi necessário que uma estrangeira se queixasse para que fossem adoptadas algumas medidas protectoras: uma multa de 1.000$00 instaurou a decência nas ruas; no entanto, para evitar formas abusivas de chantagem, a vítima tem de comparecer pessoalmente na esquadra de polícia para apresentar queixa. Porém, seja por timidez, seja pela força do hábito, no imediato muitas mulheres não tiraram partido da nova liberdade de poderem circular sozinhas nas ruas. A situação, no entanto, está a mudar de ano para ano.
         É preciso dizer que as senhoras portuguesas têm uma vida regalada, graças à abundância de empregadas domésticas a bom preço. Algumas delas resvalaram mesmo numa certa indolência.  
         Entre as classes médias, uma mulher solteira só pode alcançar alguma independência com apoio no direito à instrução e no direito ao trabalho. Mas, contrariamente ao que sucedeu noutros países, estes direitos nunca lhes foram negados pela lei. Eram os usos e os costumes que os proscreviam. Existia, desde logo, um preconceito aristocrático contra o trabalho. Existia, depois, o preconceito de género, que reduzia drasticamente os empregos mistos. E, por fim, faltavam escolas femininas de qualidade.
         É necessário ter ainda em conta a alma compassiva de muitos Portugueses, que levava muitos pais de família a impedirem que as suas queridas filhas tivessem contactos com o exterior que as pudessem afligir ou trazer perturbações. Antes da guerra, um pai de família que visse a sua situação económica piorar recusava terminantemente a ideia de que as suas filhas um dia teriam porventura de trabalhar para viver, preferindo fechar os olhos à realidade. Existia, sem dúvida, a alternativa do casamento, mas ela não surge todos os dias. A extinção das ordens religiosas tornou ainda mais difícil a situação das mulheres solteiras. Estas têm sempre, naturalmente, lugar no seio da família; no entanto, a sua integração é cada vez mais penosa, devido ao declínio da organização comunitária.
         No século passado, foi a baixa classe média, a que tinha a vida mais árdua, que começou a fornecer as primeiras professoras primárias. E foi apenas no início do século que se começaram a ver raparigas a trabalhar como lojistas ou empregadas dos P.T.T.
         Em 1900 surgiu a primeira licenciada pela Escola de Medicina de Lisboa e, em 1905, pela Faculdade de Coimbra. Em 1913, apareceu a primeira advogada em Coimbra, havendo também aí uma notária. No entanto, ainda hoje o número de mulheres que exercem medicina ou advocacia é muito reduzido. As pessoas, incluindo as mulheres, resistem a consultá-las.
         Algumas mulheres obtiveram, ainda assim, o doutoramento em Medicina, mas nenhuma o alcançou noutras faculdades, uma vez que as cátedras da universidade não parecem atraí-las. Apenas uma mulher foi chamada a ensinar em Coimbra, mas tratava-se de uma alemã que se tornou portuguesa por via do casamento, e não era doutorada. Falamos da Senhora Carolina Michaëlis de Vasconcelos, filha de um professor alemão, o Sr. Michaëlis, que se casou com o Sr. Joaquim de Vasconcelos. Muito jovem, aprendeu espanhol, árabe, português e foi nomeada intérprete no Tribunal de Berlim. Nascida em 1858, veio a fixar-se no Porto, onde se dedicou aos estudos de paleografia e de literatura. Começou a produzir aos dezasseis anos. Foi a qualidade dos seus trabalhos, marcados por uma profunda erudição, que lhe valeu a oferta de um lugar na Faculdade de Letras de Coimbra. Ensinou aí durante uma dezena de anos, tendo deixado o magistério pouco antes de morrer (1925).
         No século passado existiram numerosas autoras portuguesas, de valor muito desigual, e ainda hoje elas proliferam. A mais eminente de todas, Maria Amália Vaz de Carvalho (1848-1925), filha de um pai pródigo de Lisboa, tinha de escrever para viver, publicando poemas aos vinte anos de idade. Casada com um poeta parnasiano em 1874, viúva em 1883, escreveu numerosos artigos em jornais e revistas, fazendo crónicas e críticas, e publicou algumas obras sobre educação. Pugnava pelo direito das mulheres à instrução, mas sempre foi adversa ao voto feminino. Uma obra importante sobre a Vida do Duque de Palmela, escrita entre 1898 e 1903, guindou-a à Academia das Ciências, em 1912.
         A guerra teve por efeito acelerar algumas mudanças da condição das mulheres; no entanto, como o mesmo aconteceu nos outros países, neste campo a discrepância entre Portugal e as demais nações continua a ser flagrante.
 
Paul Descamps


(tradução de António Araújo)
 
 
    
 

2 comentários:

  1. E' impressão minha, ou o texto menciona que, afinal de contas, ja havia penalização do piropo (com multa de 1.000 €) em 1935, ou seja uns bons 50 anos antes da invenção do politicamente correcto ?

    Boas

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  2. 1935: quando os pobres nos EUA viviam melhor que os ricos em Portugal:
    http://drx.typepad.com/.a/6a00d83451bdba69e2011570655a51970b-450wi

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