terça-feira, 18 de julho de 2017

Mono-manias.

 
 
 
King Kong, 1933
 
 

Emmanuel Fremiet, Ourang-outan étranglant un Sauvahge de Bornéo, 1896
Paris, Galérie de Paléontologie et d'Anatomie Comparée
Fotografia de António Araújo
 
 
 
 
No Jardin des Plantes, em Paris – ou, mais precisamente à entrada da Galerie de Paléontologie et d’Anatomie comparée –, uma estátua enorme e bizarra. Um orangotango estrangula um «selvagem» do Bornéu. Em mármore, a escultura foi feita por Emmanuel Frémiet (ou Fremiet) (1824-1910), célebre pela primeira estátua equestre e douradinha de Joana d’Arc, em Paris, e pelo monumento a Ferdinand de Lesseps, no Suez. Tem também um famoso olifante que está hoje aparcado à frente do Museu d'Orsay e sobre o qual, com calma e vagar, talvez nos venhamos a debruçar um dia destes.  
 
Emmanuel Fremiet, Joana d'Arc, 1874
 
 


Tendo-se dedicado ao desenho e à escultura de animais, a estátua do orangotango e do desafortunado indígena do Bornéu, datada de 1895 (atenção: o ano de publicação de On the Origin of Species by Means of Natural Selection), resultou de uma encomenda do Museu de História Natural de Paris, onde hoje está patente, como se disse, na sua Galeria de Paleontologia e Anatomia Comparada. Aliás, após ter sido feito Cavaleiro da Legião de Honra, em 1878, e membro da Academia de Belas-Artes, em 1882, Frémiet terminou a sua carreira como professor de desenho zoológico no Museu de História Natural. No Jardin des Plantes existe outra estátua da sua autoria, Le Dénicheur d'oursons, que  também evoca a luta dos homens e das feras, mostrando um caçador numa refrega corpo a corpo com um urso possante.
 
Emmanuel Frémiet (1824-1910), fotografado por Nadar
 
 

                                                                           Emmanuel Fremiet, Le Dénicheur d'oursons, 1850
Paris, Jardin des Plantes
Fotografia de António Araújo
 
 
O que é interessante na estátua do orangotango, além da sua brutalidade em movimento, é o facto de ela ter nascido da observação minuciosa, feita por Frémiet, de um orangotango macho e adulto, de nome Maurice, apresentado em 1895 no Jardim d’Aclimation de Paris. Mais ainda: diz-se que Frémiet se inspirou numa obra do grande naturalista britânico Alfred Russsel Wallace (1823-1913), que mostra uma imagem de um combate entre um orangotango e um dayak. Possivelmente, será esta, em baixo, devendo notar-se que Russel Wallace foi um naturalista muito importante, ainda que algo injustiçado pela História (ver aqui) e que, recentemente, esta sua obra The Malay Archipelago foi debatida na Universidade de Coimbra. A relevância do estudo de Wallace sobre os orangotangos ainda hoje dá pretexto para notícias no Telegraph, como esta.
 

 

Orangotango atacado por dayaks, 1869,
Ilustração do livro de A. R. Wallace

 
 
 
         Além do livro de Wallace, diz-se que Frémiet pode ter sido influenciado pela famosa novela de Poe, «Os Crimes da Rua Morgue», saída em França em 1856 com o título Double Assassinat dans la Rue Morgue. Tradução: Charles Baudelaire. Um dado curioso; enquanto crítico de arte, Baudelaire escreverá um artigo intitulado «Salon de 1859» na Revue française em que era muito severo relativamente à escultura gorilesca de Frémiet... dizia, entre o mais, que Frémiet não escolhera um tigre, um crocodilo ou outra besta porque, no fundo, não queria retratar um ser humano a ser devorado por uma fera, mas sim um caso de violação sexual animal.



Baudelaire, c. 1863, tradutor de Poe

 
         O que é facto é que Frémiet trabalhava há muito no reino da macacada. Um notabilíssimo ensaio sobre tudo isso, com muitos gorilas e tudo, pode e deve ser lido aqui, num site oficial australiano.  Em 1849, a chegada a Paris, pela primeira vez, de um esqueleto completo de uma gorila fêmea levou o escultor a fazer uma composição exposta no Salon des Artistes Français, em 1859, em que se mostrava uma gorila fêmea a transportar uma humana fêmea. A escultura chocou o público e seria destruída pouco depois por uns operários de má-fé.

 
Emmanuel Fremiet, Gorille enlevant une négresse, 1859
 
 
         Entretanto, em 1852, o Dr. Franquet, um médico naval, e o capitão Penaud, comandante do Eldorado, tinham trazido para o Museu de História Natural, directamente do Gabão e devidamente acondicionado num barril de álcool, o cadáver de um gorila macho. Além de inspiração para Gorille enlevant une Négresse, serviu de modelo a Frémiet para uma segunda versão da sua obra, desta feita intitulada Gorille enlevant une Femme.  
 
 

 
Emmanuel Fremiet, Gorille enlevant une femme, 1887,
Musée des Beaux Arts de Nantes
 
King-Kong, 1933
 
 
         A escultura de Frémiet foi bem recebida pelo público e pela crítica e valeu ao artista uma medalha de honra. Ainda assim, nunca foi exibida no pudico Museu de História Natural da Cidade-Luz. No entanto. Houve uns espertalhões que perceberam o potencial da coisa, até, porventura, pelas suas veladas, veladíssima, conotações eróticas (já aqui se falou, no Malomil, de Ingagi). Pois logo começaram a circular, incluindo nos Estados Unidos, versões em escala reduzida da escultura de Emmanuel Frémiet. Há quem diga, e até jure a pés juntos, que foi ela o modelo inspirador de King-Kong, que explodiu nos écrans em 1933. E quem somos nós para duvidar?
 
 
António Araújo
 
 

 


 

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