sábado, 4 de novembro de 2017

De como minha Mãe entrou para a escola.


Soutelinho da Raia
 
Nada e criada em Soutelinho da Raia, uma aldeia e sede de freguesia do Concelho de Chaves, minha mãe, atingida a idade escolar, que julgo ser então aos sete anos, viu-se impossibilitada de entrar para a escola, dado que a legislação que vigorava nesse tempo, a segunda década do século XX, não permitia o ensino misto nas aldeias, não sei se em todas, se apenas nas mais pequenas, como era o caso de Soutelinho da Raia, que só dispusessem de uma professora e, portanto, de uma única sala de aula (Soutelinho teria, por essa altura, umas quatrocentas e cinquenta almas).
Vamos por partes. Em Soutelinho não havia edifício escolar propriamente dito. No tempo em que minha mãe frequentou a escola, e em que, mais tarde, os meus irmãos e eu a frequentamos também, entre a segunda década do século XX e os princípios da década de 50, a tal sala de aula a que me refiro atrás ficava no primeiro andar de uma casa arrendada ao Tio Domingos Pires, vulgarmente conhecido por Domingos Tapado, um dos ricaços da aldeia. Informo também que esse edifício ficava em frente da casa de meus pais, do outro lado da rua, portanto, o que quer dizer que, para pena nossa, nem os meus irmãos nem eu podíamos dar-nos ao luxo de fazer a gazeta da praxe, sem que os pais soubessem.
Dito o quê, passemos a referir a maneira como minha mãe conseguiu frequentar uma escola reservada, por lei, só a rapazes. Filha única, morgadinha, a viver ao lado da escola, minha mãe sentiu um grande desejo de aprender oficialmente a ler, contar e escrever, como então soía dizer-se. Digo “oficialmente”, pois, na realidade, ela, com a ajuda do pai e de uma senhora amiga da família, professora da escola primária de Seara Velha, aldeia da freguesia de Calvão, a uns catorze ou quinze ou quilómetros de Soutelinho, ia aprendendo privadamente essas coisas. (Esclarece-se, entre parêntesis, que essa professora da escola primária de Seara Velha era a mãe do escritor Reis Ventura que em 1934 ganhou, em paridade com Fernando Pessoa, o prémio de poesia Antero de Quental do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional), com o livro A Romaria, publicado nesse ano, com o pseudónimo de Vasco Reis).
Pela vida fora, minha mãe lembrava-nos, com justificado orgulho, que tinha aprendido as primeiras letras com a mãe do escritor Reis Ventura. E, por ironia do destino, após a independência de Angola, em 1975, sendo eu professor de Espanhol e Português na Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, recebo um dia uma carta de um senhor chamado Manuel Joaquim Reis Ventura, na qual me pedia o favor de lhe proporcionar a emigração para os Estados Unidos, invocando a velha amizade que o ligava a minha mãe. É que Reis Ventura fora viver para Angola nos anos 30, depois de ter abandonado a ordem franciscana e a vida sacerdotal.
Feita esta longa digressão, chegou o momento de reiterar que o desejo de minha mãe de frequentar a escola da sua terra natal foi tão intenso, que se encheu de coragem e foi bater à porta da professora oficial, a Dona Marquinhas, que morava perto de nós, numa casa enorme, quase senhorial, juntamente com a sua irmã mais nova, a Dona Aninhas, viúva, e com os dois filhos desta irmã - o Rubens e o Fernandinho -, e pediu-lhe que a deixasse entrar para a escola. Segundo minha mãe nos contava muitas vezes, a Dona Marquinhas respondeu-lhe mais ou menos nestes termos:
- Ó minha menina, quem me dera a mim poder satisfazer o teu pedido!
          Mas a verdade é que isso está proibido por lei. Se te deixasse entrar para a sala de aula e viesse o inspector escolar, como às vezes acontece, fazer uma inspecção, mandava fechar imeditamente a escola. E o resultado era ficarem todos os alunos impossibilitados de poder frequentá-la: tu e os rapazes que andam nela. E tu não queres que isso aconteça, pois não, minha filha?
         Esclarecida, mas não convencida, minha mãe despediu-se da Dona Marquinhas e voltou muito triste para casa.
         Porém, no dia seguinte a Dona Marquinhas mandou chamar a minha mãe a casa, por uma criada, e falou-lhe mais ou menos assim:
         - Olha minha filha, pensei muito no pedido que me fizeste ontem e cheguei à seguinte conclusão: como sabes, eu tenho uma braseira debaixo da minha secretária, para me aquecer. E como sabes também, para a braseira não se apagar, é preciso mexer as brasas de vez em quando. Ora como é preciso que alguém me mexa as brasas da braseira, tu sentas-te muito quietinha num banquinho junto da minha secretária e mexes as brasas quando for necessário. E se vier o inspector, eu explico-lhe – o que é verdade – que tu não és uma aluna da escola, mas a filha de uma vizinha minha – o que é verdade também – que me ajuda a manter a braseira sempre acesa.
       E a partir desse mesmo dia, minha mãe – menininha – passou a ser a única rapariga daquela aldeia arraiana a frequentar a escola, só destinada ao sexo masculino, segundo a lei.
         Mas a história não acaba aqui. Contava-nos minha mãe que, por casualidade – bendita casualidade! (apetece dizer) –, ainda antes do final desse ano lectivo saiu uma lei do Estado que criava as escolas mistas nas pequenas aldeias de Portugal. E mais contava minha mãe também (facto que era muito fácil de comprovar numa aldeia tão pequena, em que toda a gente se conhecia e em que as portas de casa raramente se fechavam à chave) que, por muitos anos, ela não só foi a primeira rapariga de Soutelinho da Raia a frequentar a escola, mas foi também a única com a quarta classe. Daí vir eu a compreender, mais tarde, a razão por que minha mãe lia e escrevia tanta carta a tanta gente da terra que tinha filhos na tropa e família nas colónias, no Brasil e na América, e por que ela, a pesar de ser mãe de cinco filhos, acompanhava tantas pessoas ao Porto, quando se tratava de arranjar os papéis para embarcar para essas terras longínquas, e a razão por que minha mãe acompanhava tantas pessoas de Soutelinho da Raia a Verín, na Galiza, ou a Chaves, sede do concelho, quando necessitavam de consultar médicos.
 
 
António Cirurgião


 
PS.  Tratando-se de uma questão importante, como é o da educação, no tempo da primeira República, fiz várias diligências para determinar a data precisa em que o governo promulgou a lei que autorizava a criação de escolas mistas nas aldeias do Portugal profundo, em que se vivia como no tempo dos afonsinos, no tempo de minha mãe menina. como era o caso de Soutelinho da Raia, um dos três “coutos promíscuos” existentes entre Espanha e Portugal, até à celebração do Tratado de Lisboa, de 1864, mas todas as tentativas foram em balde. Semianalfabeto em cibernética, e a viver do outro lado do Atlântico, ainda pedi a duas pessoas conhecidas, a trabalhar actualmente no Ministério da Educação, que vissem se me podiam fazer esse favor, mas até à data ainda não tive qualquer resposta. Se houver uma alma generosa que me possa dar esse esclarecimento, ficar-lhe-ei muito grato. 


 

 

 

 

 

 

 

 

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