terça-feira, 23 de julho de 2019

As minhas desventuras na República das Bananas.

 
 


Fernando Botero, Bananos, 1990.
 

 
Diz-se por aí, no submundo das vielas e das casas de pasto onde os turistas não ousam entrar, que dois cidadãos portugueses foram avistados a receber passaportes fresquinhos das mãos de uma funcionária do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Santarém, no passado mês de Junho. Nesta fase há várias questões que se impõem: quem serão os afortunados? Como terão conseguido levar a cabo tal proeza? E quantos meses terão demorado a gizar um plano tão audaz?
A verdade é que os últimos tempos têm sido particularmente duros. Consta que esta prodigiosa República das Bananas a que continuamos a chamar Portugal, mais por conveniência do que por convicção, tem emitido menos passaportes do que a RDA nos meses subsequentes à construção do muro de Berlim. Os especialistas em geopolítica começam, inclusivamente, a colocar a hipótese de Portugal vir a ser ultrapassado pela Coreia Norte no que respeita à emissão de passaportes, a breve trecho. Por outro lado, há quem insinue que esta coisa da livre circulação de pessoas é capaz de ser um tanto sobrevalorizada. A título de exemplo, a minha avó visitou Badajoz nos idos de 1973 e, ao que parece, não ficou particularmente impressionada com “o estrangeiro”.
Mas é tempo de expor a verdade! Depois de ter passado várias semanas trancado na semicave de uns parentes de uma tia minha, para fugir ao estrelato, estou finalmente em condições de afirmar que fui, de facto, um dos felizardos que obtiveram o valiosíssimo passaporte da República das Bananas, um espécime raro que pode ser adquirido no mercado negro por uns míseros 500.000€, sob o nome de código golden visa, ou à troca de três rins.
              Esta saga começou em Abril de 2019. Reservei as minhas férias para o final de Julho e – diligente como só eu – apressei-me a agendar a renovação do meu passaporte. Apesar das notícias que davam conta dos atrasos na atribuição desse singelo documento de identificação, fiquei surpreso quando percebi que já só existiam vagas para meados de Julho, escassos dias antes da ambicionada viagem para bem longe daqui. Ainda assim, agendei a dita renovação para evitar as enchentes habituais, dada a minha farta misantropia. Semanas mais tarde constatei que o referido agendamento de pouco serviria, uma vez que a entrega dos passaportes estava a demorar algumas semanas, de acordo com os testemunhos de inúmeros veteranos das doravante denominadas guerras da identidade.
         Vi-me então forçado a deslocar-me, sem marcação prévia, a um dos serviços de atribuição de passaporte que, alegadamente, servem a cidade de Lisboa. Consultada a internet optei por apresentar-me no Campus de Justiça, por ser a menos central das repartições, crente que isso me escudaria da presença – sempre incomodativa – de pessoas. A maldita rede não ajudou muito. O horário de abertura estava mal indicado e, ao apresentar-me no sumptuoso Campus pelas 08h50, logo descobri que afinal a secção indicada abria às 08h30 e não às 09h00. Resultado: as senhas do dia estavam atribuídas, ali e nas demais dependências da cidade de Lisboa, com excepção da repartição do aeroporto, onde, segundo me foi dito por uma profissional, já não sobravam muitas.
Perante este cenário dantesco, os meus companheiros de luta lançaram-se numa corrida desabrida em direcção aos respectivos automóveis, e eu, ainda traumatizado pelos míseros resultados que obtive no afamado mega sprint da minha Escola Secundária, optei por desistir sem suar a camisa. Ainda pensei ir de metro e antecipar-me aos competidores que ficassem retidos no trânsito, mas depois lembrei-me que durante a hora de ponta é impossível apanhar um comboio em menos de 25 minutos. Sentei-me num banco de jardim do Campus de Justiça a matutar nas minhas opções e acabei por decretar que esta coisa de converter condomínios de luxo em órgãos de soberania parece ser o epítome de um Estado falhado.
Depois de uns minutos de profunda reflexão sobre as misérias do novo socratismo decidi dirigir-me a outro concelho. Por certo que num município menos populoso não encontraria aquelas enchentes. Escolhi a bonita vila de Alenquer, pela relativa proximidade da zona Oriental de Lisboa, e pelo facto de, recentemente, ter lá passado bons momentos no casamento de um amigo de infância. É fundamental conservar uma boa dose de improvisação e capricho quando se lida com o Leviatã todo-poderoso, a bem da sanidade mental.
Cheguei ao Registo Civil de Alenquer perto das 10h00. A sala exígua deveria ter umas 50 pessoas à espera, sendo que só existiam lugares sentados para cerca de 30. Passados uns 20 minutos resolvi perguntar se atribuíam passaportes, visto que a senha correspondente não passara do zero. Um funcionário educado, com ar cansado, explicou-me que a máquina que produz os passaportes também é responsável pela feitura dos cartões de cidadão. Dado que a repartição em causa só dispõe de uma máquina, ainda teria de esperar que as 35 pessoas que aguardavam vez para renovar o cartão de cidadão fossem atendidas. Apressei-me a fazer contas: se numa hora a máquina só tinha dado vazão a 7 pessoas, antes das 14h00 não me livraria daquele suplício.
Fui desdenhar a minha sorte para a margem do rio Alenquer e, ao contemplar a escassez do caudal, apercebi-me do erro crasso que cometera. Como previra, havia pouquíssimas pessoas a renovar o passaporte em Alenquer, mas não fora capaz de antecipar que o Estado dotara uma população de 10.000 habitantes com uma única maquineta daquelas que nos atribui a identidade. Impregnado da soberba típica dos yuppies da capital, esquecera-me que o Estado Português nutre um especial desdém pelos incautos que residem a mais de 10 km do Terreiro do Paço.  
Irritado com a minha própria ingenuidade fiz-me à estrada, a caminho de Santarém. O raciocínio era simples: deslocar-me até ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras mais próximo, na expectativa que poucas pessoas soubessem que é possível obter um passaporte naquele serviço. Cheguei ao destino perto das 11h30 e o plano deu certo. O edifício decrépito albergava dezenas e dezenas de imigrantes, de várias proveniências, que aguardavam pacientemente a sua vez, sendo que nenhum deles tinha direito ao ambicionado passaporte português. Felizmente, só havia uma concidadã à minha frente na fila apropriada e não tive de esperar mais de 10 minutos.
Quando me aproximei da máquina infernal não poderia estar mais assustado. Por um lado, sabia que a dita geringonça tem o hábito irritante de produzir retratos disformes, o que inevitavelmente confunde os fiscais do aeroporto, devido à minha extrema beleza física. Por outro lado, temia que o maléfico engenho avariasse só para me estragar o dia, que até aí estava a correr lindamente.   
A meio do processo perguntei à funcionária quando acederia ao almejado livrete cor de vinho. Respondeu-me que não sabia dizer, na medida em que poderia ser convocada uma nova greve a qualquer momento. Se há coisa que eu aprecio na República das Bananas é a previsibilidade das relações que os cidadãos, também conhecidos como servos da gleba, estabelecem com o Estado, também conhecido por Soberano ou Tirano, consoante as traduções. Tal como no Antigo Regime, o Estado põe e dispõe, e os cidadãos encolhem os ombros, sorriem a medo, e dão graças pela misericórdia dos poderosos.  
Se eu fosse um mancebo corajoso, com tiques de revolucionário, poderia ter feito um escabeche e procurado uma refrega ao estilo David contra Golias. Acontece que a coragem, tal como a velocidade, é um predicado que eu não possuo, pelo que me limitei a encolher os ombros e a compactuar com mais uma vilanagem. Optei por adquirir o serviço urgente, o que me custou 30€ adicionais, apesar de só ter viagem marcada para o final de Julho, não fosse a impressão demorar mais de 45 dias.
Enquanto fazia o pagamento perguntei à funcionária como saberia quando deveria deslocar-me a Santarém para levantar o passaporte (um detalhe menor para quem vive em Lisboa). A senhora sorriu com ar comprometido e respondeu-me que tinha de ir passando por lá para saber. Não tendo energia suficiente para retorquir, agradeci e saí. Na República das Bananas é assim. Os cidadãos pagam impostos diligentemente e em troca recebem filas intermináveis, serviços degradados, e total incerteza. A sensação que fica é que somos escravos de um Estado sedento e discricionário, que alimentamos e mimamos, a troco de migalhas.
Vejamos. Se um cidadão português quiser sair do espaço europeu é forçado a escolher uma de duas hipóteses: ou acorda às cinco da manhã para aguardar pela sua vez numa fila a céu aberto, correndo o risco de ser vilipendiado por membros do governo pelo seu egoísmo desprezível, ou desloca-se umas centenas de quilómetros em busca de um serviço mais desanuviado que faça o favor de conceder-lhe o passaporte. Se esse mesmo indivíduo, vai-se lá perceber porquê, insistir em continuar a residir em Portugal depois desta encantadora experiência, terá de enfrentar o mesmíssimo dilema para obter o cartão de cidadão. O Estado conhece e compila a morada de toda a gente, mas não consegue estimar o número de utentes que, em média, acorrerá num dia normal a um determinado serviço público, e, menos ainda, de dotá-lo dos meios que os contribuintes (e os funcionários) merecem.
Partidos políticos há que gostariam de alterar a designação do cartão de cidadão para torná-la mais inclusiva, quiçá recorrendo a uma novilíngua sensaborona que contribua para branquear iniquidades mais profundas. Não desfazendo, preferia que se centrassem em tornar os serviços públicos mais eficientes e acessíveis para as velhotas de Alenquer, para os imigrantes de todo o distrito de Santarém, e, se não for pedir muito, para os pequeno-burgueses das Avenidas Novas, entre os quais me incluo, penitente.  
À saída do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras passei junto às dilacerantes ruínas do Teatro Rosa Damasceno, ardido em 2007. A recuperação dessa sala icónica, remodelada nos anos 1930 ao estilo Art Déco, está por tratar desde 2009, tendo dado origem a um processo em tribunal, entre a Câmara Municipal de Santarém e um empreiteiro. Na República das Bananas a vida corre devagar. Os cidadãos são forçados a perder um dia de trabalho para renovar o passaporte, a esperar meses por uma simples consulta de rotina, e a aguardar mais de 10 anos para resolver uma disputa judicial a propósito de uma permuta de terrenos.
Cheguei ao carro revoltado com tudo o que me acontecera na manhã daquela segunda-feira. Durante uns minutos entretive seriamente a possibilidade de aproveitar o novo passaporte para votar com os pés, em protesto. De certo que num país desenvolvido não seria tratado com o menosprezo a que nos fomos habituando por cá! Eis senão quando, ao passar à porta da pastelaria Bijou, fui acometido pelo cheiro convidativo dos Pampilhos, e não resisti a entrar.
A pausa repleta de açúcar diluiu o fel que me consumia e atenuou a minha vontade de partir. Quem sabe se ao longo das minhas incontáveis desventuras nesta República das Bananas a que chamamos Portugal, não terei desenvolvido uma dose irreparável de Síndrome de Estocolmo. Decidi ficar, para desgosto dos meus detratores, na esperança que um dia a bendita República se digne a tratar os indivíduos que a compõem como seres livres e iguais e não como meros verbos-de-encher.
 

João Tiago Gaspar
 
 
 
 

3 comentários:

  1. "Impregnado da soberba típica dos yuppies da capital, esquecera-me que o Estado Português nutre um especial desdém pelos incautos que residem a mais de 10 km do Terreiro do Paço."

    Muito bem!

    "Por um lado, sabia que a dita geringonça tem o hábito irritante de produzir retratos disformes, o que inevitavelmente confunde os fiscais do aeroporto, devido à minha extrema beleza física."

    Muito bem. Não obstante os verdes, as ovelhinhas, o cheiro do cozido e do eucalipto a explodir em estio, sabemos de que geringonças escreve.

    "Acontece que a coragem, tal como a velocidade, é um predicado que eu não possuo, pelo que me limitei a encolher os ombros e a compactuar com mais uma vilanagem.
    Não tendo energia suficiente para retorquir, agradeci e saí."

    Muito bem. Por mim, sem mais demoras, outorgava-lhe já cartão de cidadão "como deve ser" sem qualquer sobretaxa.



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  2. Isso e supermercados bem-feitores com os seus altifalantes a debitar estudos a falar sobre o estado das coisas que não inibe o estado de tudo pela fuga aos impostos dos principais contribuintes, sem esquecer o todo por cada uma das suas partes. Na república das bananas, não só como o descrito, também é assim: de tendência em tendência, sofre o cidadão pelas falhas e pelos interesses dos que se governam, a nível estatal ou empresarial, mas sem contudo deixar de ser político, que ninguém se esqueça ou adormeça.

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  3. Na república das bananas, país dos consumidores, também se criam falsas necessidades de consumo, muitas das vezes pouco saudáveis - física e mentalmente falando - entope-se com isso os hospitais, ou, claro, demoniza-se o estado, e procura-se fazer da saúde uma oportunidade de negócio, e o resto já se sabe: abre-se fundações à custa do consumidor, chupado até à medula, quando não são também os produtores, e acredita-se na fábula da gente muito boazinha que afinal era mais suína do que burra, tentacular e comedora até ao tutano.

    Numa república como esta, entre o estado e o psicótico privado, venha o Diabo e escolha.

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