segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Maximiliano I de Habsburgo e o facebook do século XVI.


 
Na sua recente viagem pela Europa central, em que centenas de São Cristóvãos parecem ter-se reunido para saudar a sua passagem, o nosso amigo José Liberato visitou o magnífico Cenotáfio do Imperador Maximiliano I na Hofkirche de Innsbruck. Para os apreciadores de arte que, como eu, ainda não conhecem este extraordinário monumento, as fotografias que o nosso amigo aceitou partilhar com os leitores do Malomil são um poderoso incentivo a uma próxima visita à capital do Tirol.
Além do gosto pela arte, o que aqui nos traz a mostrar este dramático conjunto é, como em ocasiões passadas, a memória de Portugal que ali se encontra. Antes disso, um brevíssimo enquadramento.
Os Habsburgo são vistos ainda hoje como a dinastia imperial por excelência. Antes de serem ‘apenas’ imperadores da Áustria-Hungria, foram imperadores do Sacro-Império Romano-Germânico durante mais de 350 anos, até ao desmembramento desse império às mãos de Napoleão em 1806.
 
O Cenotáfio do Imperador Maximiliano I na Hofkirche de Innsbruck (Fotografia: José Liberato, Agosto 2019)
 
O intrincadíssimo quadro dinástico e territorial da família e dos reinos e domínios imperiais impede uma explicação resumida que seja, em simultâneo, historicamente fiel. Para a nossa história será suficiente saber que os Habsburgo inventaram em 1358 o título de “Arquiduque da Áustria”, forjando um documento fundamental que lhes permitiu recuperar, em meados do século XV, o trono que fora seu, de forma breve, no final do século XIII.
O primeiro Habsburgo a ser coroado Rei dos Romanos (título que antecedia a coroação como Imperador do Sacro-Império, feita necessariamente pelo Papa) fora Rodolfo I, em 1273. Era então, Conde de Habsburgo, um nobre com uma importância territorial significativa e com algumas alianças relevantes, mas ainda assim ‘um mero conde’ como os detractores da dinastia fariam questão de recordar aos seus sucessores.
E se as angústias de hoje são o número de likes no facebook e no instagram ou de interacções no twitter, nas cortes do século XV era a qualidade do sangue, medida em gerações de primogenitura, que guiava e inquietava os espíritos. E os meios para que a rede social de ontem parecesse melhor ou mais atraente não parecem ser muito diferentes dos que hoje se usam.
 
 A Hofkirche de Innsbruck, construída no reinado de Fernando I de Habsburgo para albergar o cenotáfio do Imperador Maximiliano I mas alvo de posteriores remodelações (Fotografia: José Liberato, Agosto 2019)
 
Frederico III de Habsburgo foi eleito em 1440 como Rei dos Romanos. Era o quarto Habsburgo a consegui-lo mas não mais o título deixaria de corresponder à sucessão familiar. É nas várias frentes da operação que Frederico e os seus sucessores montaram para conseguir perpetuar-se à frente do império que se enquadra a construção, muitas décadas depois, do majestoso cenotáfio de Innsbruck, um dos mais importantes conjuntos de escultura do século XVI.
Frederico viajou para Roma em 1452, 12 anos depois da sua eleição, para se casar e ser coroado. A imperatriz escolhida foi a filha do Rei D. Duarte e irmã do então Rei D. Afonso V, a Infanta D. Leonor de Portugal. O encontro entre o Imperador e a Infanta teve lugar em Siena e está imortalizado na Biblioteca Piccolomini do inigualável Duomo daquela cidade, assim como num vitral da Igreja de São Lourenço de Nuremberga. O Papa casou-os e coroou-os depois em Roma. A aliança matrimonial, além de um generoso dote, deu ao Imperador a ligação a uma dinastia em ascensão, que haveria em breve de dominar o além-mar.
Desta união nasceria Maximiliano I, que viria a reinar como imperador e que mudaria a face da Europa pela sua política matrimonial – o seu filho seria simultaneamente herdeiro das Casas de Habsburgo e de Borgonha e o seu neto herdaria, além destas, as Casas de Trastâmara (Castela) e de Aragão. Além de garantir o futuro da sua dinastia, Maximiliano procurou garantir que o passado dos Habsburgo era digno do título imperial. Grande mecenas das artes, empreendeu grandiosos projectos artísticos com vista à glorificação do seu reinado e da sua família. Um dos mais impressionantes foi o arco triunfal que encomendou a Dürer e a outros artistas e de que o António Araújo nos falou há uns meses.
 
 


Pormenor da genealogia dos Habsburgo no Arco Triunfal, mostrando em baixo Frederico III de Habsburgo e Leonor de Portugal, e o filho do Imperador Maximiliano, Filipe o Belo, Duque da Borgonha e Rei de Castela, ao centro, rodeado pelos seus próprios filhos. O Imperador é representado na secção acima. (Arco di trionfo di Massimiliano I, Bibl. Naz. Braidense)
 
Melancólico, soturno e obcecado com a morte, Maximiliano comissionou e orientou o desenho do seu túmulo, que viria na realidade a ser um cenotáfio por se ter revelado impraticável construí-lo na igreja onde acabaria por ser sepultado em 1519 – há 500 anos. Foi o seu neto Fernando I que ordenou a construção da Hofkirche com o expresso propósito de receber o monumento. A construção do templo teve lugar entre 1553 e 1563.
O projecto de Maximiliano era de uma grandiosidade ímpar e requereu o envolvimento de variadíssimos artistas, vários dos quais acabaram por ser afastados pela falta de qualidade das suas produções. O imperador, com atenção meticulosa aos pormenores, acompanhou de perto a concepção e execução do projecto que concebeu como um grande cortejo fúnebre, que terminaria com o seu túmulo. Abrindo o cortejo estariam os seus heróis e os seus antepassados, uns segurando ceptros, outros segurando velas.
Uma parte dos muitos elementos que compõem o cenotáfio foi executada ainda em vida do Imperador, designadamente os painéis de mármore com cenas da vida de Maximiliano esculpidas em baixo relevo e que ornamentam a arca tumular. A inspiração foram os desenhos de Dürer para o Arco Triunfal.
Mas é claramente a estatuária em bronze – executada em parte nos reinados dos seus netos Carlos V e Fernando I – que impressiona e que marca a história da arte do Renascimento. Pela qualidade, pela singularidade do conjunto e pela poderosa mensagem que transmite, de glorificação dinástica. São 28 figuras, entre ascendentes, descendentes e heróis – uma espécie de facebook da época para mostrar o que valia. Em Innsbruck são conhecidos como os “homens negros”, embora na ideia inicial do Imperador talvez viessem a ser coloridas. Como veremos, o resultado ficou bastante aquém da ideia inicial.
Da visita guiada resultaram a José Liberato duas questões que procurámos investigar. Primeira, o facto de junto a uma imagem identificada pelo guia oficial como Isabel de Gorizia (mulher de Alberto I, o segundo Habsburgo a ser eleito Rei dos Romanos) se encontrar o escudo das armas portuguesas com a cruz de Avis. Segunda, o facto de uma misteriosa figura, o único dos homens que não tem cara mas armadura com elmo fechado, estar identificado como o Rei D. Fernando I de Portugal – que nem sequer era antepassado do Imperador – ou o Rei D. João I (bisavô do Imperador), apesar de nem a inscrição na base da estátua nem o escudo de armas terem algo que ver com Portugal.
 
 
Identificação das estátuas da Hofkirche. (Guia oficial em inglês, destaque nosso)
 
O escudo de armas de Portugal com a cruz de Avis, junto a uma das estátuas da Hofkirche (Fotografia: José Liberato, Agosto 2019)
 
Para adensar o mistério, numa fotografia do século XIX o escudo com as armas portuguesas aparece junto à estátua de Maria de Borgonha (primeira mulher do Imperador), ao lado da que actualmente o ostenta. Por sua vez, nessa mesma fotografia o escudo com as armas da Casa de Borgonha (que poderia corresponder a Maria de Borgonha e está hoje junto à estátua do seu avô, Filipe, o Bom) está junto a uma terceira estátua. Donde retiramos, pelo menos, que os escudos mudaram de sítio ao longo dos tempos.
Nos postais da mesma época, nunca a identificação fernandina é tentada para a exótica figura com elmo fechado, sendo referida apenas a inscrição que consta na base.
 
 
Postal do século XIX. Ao centro, a figura masculina hoje identificada como o Rei D. Fernando ou D. João I e então legendada como “Theodebert Herzog v. Burgund”. (gallica.bnf.fr)
 
As listas recentes que dão nome às estátuas são relativamente unânimes. Mas estarão certas? Ou estarão, pelo contrário, a contribuir para alterar a história que Maximiliano I quis contar?
Se recuarmos aos guias ‘turísticos’ do século XIX, veremos que a dama hoje identificada como Isabel de Gorizia é identificada como sendo a mãe do Imperador, D. Leonor de Portugal (como suspeitou José Liberato). Ao lado está Maria de Borgonha – que durante algum tempo terá ostentado as armas portuguesas.
Assim, no livro Handbuch für reisende in Deutschland, de 1859, lá aparece, entre Maria de Borgonha (primeira mulher do imperador) e Cunegunda (irmã do imperador), Leonor, mãe do imperador. Mais, no livro Denkmähler der Kunst und des Alterthums in der Kirche zum heiligen Kreuz zu Innsbruck, de 1812, aparece identificada Leonor de Portugal como número IV., entre as mesmas senhoras. Também no referido postal do século XIX em que os escudos estão trocados, a senhora é identificada como a mãe do imperador.
 
 
Postal do século XIX. Apesar dos escudos trocados, a terceira figura aparece identificada como “Eleonore, Prinzessin v Portugal, Mutter Maximilians 1482”. O brasão em primeiro plano é o da Casa de Borgonha (que poderia corresponder a Maria de Borgonha e que actualmente está junto às estátuas de Filipe, o Bom, e do seu filho, Carlos, o Temerário, Duques de Borgonha e respectivamente avô e pai de Maria) e o terceiro é o brasão da filha de Maximiliano, Margarida. (gallica.bnf.fr)
 
 
Estátuas de Isabel do Luxemburgo (mulher do Imperador Alberto II), Maria de Borgonha (primeira mulher do Imperador Maximiliano), Isabel de Gorizia ou Leonor de Portugal (mãe do Imperador Maximiliano) (?) e Cunegunda da Áustria (irmã do Imperador Maximiliano). Ao fundo, as estátuas de Fernando II de Aragão, o Católico, e de Joana I de Castela, a Louca (Fotografia: José Liberato, Agosto 2019)
 
Se considerarmos a identificação como Leonor de Portugal, com excepção de Isabel do Luxemburgo, mulher do Imperador Alberto II (ela própria detentora de direitos dinásticos relevantes), todas as figuras femininas representadas são parentes próximas do Imperador Maximiliano – a exótica avó Cymburgis, duas das suas mulheres, a primeira, Maria de Borgonha, e a terceira, Bianca Maria Sforza (o segundo casamento do Imperador foi anulado), a filha Margarida com direito a uma belíssima estátua, a irmã Cunegunda da Baviera e a nora Joana de Castela, a Louca.
Como terá surgido a identificação como “Isabel de Gorizia”, já no século XX, retirando a mãe do Imperador painel de ilustres? Sabemos que o plano original de Maximiliano para o seu cortejo fúnebre previa 40 estátuas, mais do que as 28 que estão na Hofkirche. Muito embora haja divergências entre as fontes quanto às estátuas que eram pretendidas pelo emperador, sabemos de fonte segura que entre elas estava a de Isabel de Gorizia (ou de Caríntia e Gorizia-Tirol).
Isabel está entre as 39 figuras pintadas no extraordinário pergaminho “Die Ahnen Kaiser Maximilians I.” (Os Antepassados de Maximiliano I), de 1512, do ilustrador Jörg Kölderer. A maioria das personagens está representada nas estátuas e várias delas com semelhanças estilísticas com o resultado final no cenotáfio. Não é, contudo, o caso do desenho de Isabel de Gorizia, que é muito diferente da estátua hoje identificada como ela. Também lá está Leonor de Portugal, mas também neste caso não há correspondência de estilo com a estátua.
 
 
Leonor de Portugal e Isabel de Gorizia no Pergaminho “Die Ahnen Kaiser Maximilians I.” (Os Antepassados de Maximiliano I), de 1512, do ilustrador Jörg Kölderer. (Kunsthistorisches Museum Wien, Kunstkammer, 5333, 1512/14)
 
Pelo contrário, no álbum de desenhos do mesmo Jörg Kölderer que é posterior (1522-1523) e que representa com bastante maior fidelidade as estátuas que estavam já concluídas ou que vieram a ser executadas, o problema é o inverso, com semelhanças estilísticas entre os desenhos de Leonor de Portugal e de Isabel de Gorizia, mas com vantagem da tirolesa.
De facto, nestes desenhos de Kölderer quer uma, quer outra aparecem coroadas (uma como Imperatriz, outra como Rainha dos Romanos), o que não acontece com a estátua na Hofkirche. Ambas ostentam um livro na mão esquerda, que a estátua tem. E ambas tem o mesmo estilo de vestido, com mangas largas, semelhante ao que enverga a estátua. E é precisamente nos pormenores do vestido que a tirolesa desenhada ganha vantagem, assim como na posição corporal e nas longas tranças.
 
 
Desenhos de Leonor de Portugal e de Isabel de Gorizia no álbum de desenhos de Jörg Kölderer para as estátuas da Hofkirche. (Figuren für das Grabmal Maximilians I., 1522-1523, Österreichische Nationalbibliothek)
 
Desenhos de Leonor de Portugal e de Isabel de Gorizia no Austriacae gentis imaginum, de 1569, data posterior à conclusão de todas as estátuas que se encontram na Hofkirche. (Austriacae gentis imaginum, 1569, Rijksmuseum)
 
Uma outra gravura, no Austriacae gentis imaginum, da segunda metade do século XVI (1569), reforça esta ideia, ao reproduzir a estátua com enorme semelhança: Isabel de Gorizia aparece representada tal qual a estátua (embora, um vez mais, coroada), enquanto Leonor de Portugal surge com uma representação que parece resultar mais do desenho atribuído a Hans Burgkmair do que propriamente do desenho de Kölderer.
Mistério, portanto, resolvido? Talvez não.
Não podem restar dúvidas de que se pretendia que aquela estátua, ao ser executada, representasse Isabel de Gorizia. Contudo, nem todas as 30 estátuas desenhadas por Kölderer vieram a figurar na Hofkirche. Sabemos, de resto, que várias foram rejeitadas pela fraca qualidade da execução. Quais? As de Leonor de Portugal, de Teoberto da Borgonha e de Ladislau da Hungria. Estas complicações no projecto, que se arrastaram em vida de Maximiliano e mais ainda depois da sua morte, podem aliás ser a causa da mudança dos nomes das estátuas e da confusão da sua identificação.
Vejamos, a propósito, o que pode ter acontecido com a figura sem rosto identificada hoje como o Rei D. Fernando ou, em alternativa mais plausível, o Rei D. João I.
A imagem é tão excêntrica que poderia indicar uma figura algo mítica – tal como o vizinho Rei Artur. A inscrição que tem por baixo diz-nos que seria um tal Teoberto, Rei da Provença, Duque da Borgonha e Conde de Habsburgo. Assim o identifica o site da Royal Collection Trust britânica (que faz referência ao facto de actualmente a figura ser identificada como o nosso Rei D. Fernando). Problema? É uma personagem que, com estes títulos, não existiu. Existiram vários Teobertos, vários deles reis dos vários reinos francos, mas não um Duque da Borgonha e muito menos Rei da Provença.  
 
 
Imagem da estátua identificada como o Rei D. Fernando ou o Rei D. João I de Portugal. (Fotografia: Instagram)
 
Foi, de acordo com o guia oficial e outras fontes, a primeira estátua a ser executada, em 1509. Mas como se identifica uma figura com uma inscrição clara que diz que é Teoberto e um escudo obscuro sem ligação a Portugal com o Rei D. Fernando ou o seu irmão, o Rei D. João?
A tentação – em que naturalmente incorremos – é dizer que é um engano. Mas é demasiado óbvio para passar despercebido. Vejamos, em primeiro lugar, quem seria este Teoberto.
Maximiliano I não se angustiava apenas com a morte. Outra das suas preocupações era a da legitimação da sua dinastia. Não queria apenas ser imperador – queria que o seu direito a ser imperador fosse inquestionável. Pôs, por isso, vários genealogistas a encontrar aquilo que fazia falta para esse objectivo: uma ascendência digna de imperador, que o colocasse como o herdeiro do Rei Clóvis, com a carga simbólica que isso comportava. Não ‘um herdeiro’, mas ‘o verdadeiro herdeiro’ dos reis merovíngios, numa linha de primogenitura sem quebras.
A ascendência fabricada dos Habsburgo está vertida no corpo central do Arco Triunfal e foi alvo de contestação logo na época, com correcções feitas para atenuar as críticas. Foi também objecto dos mais variados estudos e ilustrações, entre os quais o Genealogia Maximiliani I. caesaris, de Hans Burgkmair. No essencial, foi na sucessão do Rei Clóvis que o Imperador Maximiliano quis fixar a sua ascendência – Clóvis tem direito a uma das estátuas de bronze na Hofkirche. Coroado e com o escudo das flores de lis próprio dos reis dos francos, Clóvis é a primeira personagem da árvore dos Habsburgo no Arco Triunfal. Seguem-se três outras personagens com armas de flores de lis, com o pormenor de que 2 estão coroadas e a quarta não está coroada.
 
Parte central do Arco Triunfal, com a genealogia dos Habsburgo (Arco di trionfo di Massimiliano I, Bibl. Naz. Braidense)
 


Pormenor da genealogia dos Habsburgo no Arco Triunfal (Arco di trionfo di Massimiliano I, Bibl. Naz. Braidense)
 
Temos, pois, da direita para a esquerda os Reis Clóvis, Clotário e Chilperico (ou Quilperico) e o primeiro filho deste, que não reinou, e se chamava Thibert ou Teoberto. Morreu em batalha. E é nessa sucessão altamente incerta mas possível – porque nada impede que Teoberto tenha tido tenha tido filhos, incluindo um tal Otoberto, figura criada pelos genealogistas do imperador para entroncar, uma gerações mais tarde, com os condes de Nordgau, de quem efectivamente descendem os Habsburgo – que se parece basear a teoria da linhagem ininterrupta que fazia dos Habsburgo os legítimos herdeiros do trono imperial. Maximiliano encomendou inclusivamente a Dürer uma representação deste Otoberto, figura que representava a sua herança merovíngia.
Voltemos aos desenhos de Kölderer, para tentar solucionar as diferentes questões: é D. Fernando? É D. João I? Ou é Teoberto?
No Pergaminho de 1512 – posterior, recorde-se, à conclusão da estátua – está representado o Rei. D. João I de Portugal, bisavô do Imperador. A armadura que ostenta tem semelhanças evidentes com a da estátua, embora o exemplar na Hofkirche falhe nos pormenores que, no desenho, remetem para Portugal: os castelos. Além disso, o D. João I que ali está representado tem o elmo aberto e tem a cara desenhada.
Já no álbum de 1522-23, a estátua é representada com total fidelidade mas aparece surpreendentemente descrita como “Rei Fernando de Portugal. Antepassado do Imperador Maximiliano”. Aos seus pés, está desenhado o escudo com as armas de Portugal e a cruz de Avis, que naturalmente D. Fernando não usava. Ora, o Rei D. Fernando não era antepassado do Imperador e não era um rei de boa memória. Que motivo haveria para o incluir ali? Nenhum se nos afigura como credível.
Mas há mais um pormenor muito curioso neste desenho da estátua: o papel onde está aposta a inscrição “Rei Fernando de Portugal. Antepassado do Imperador Maximiliano” em duas partes (uma a cada lado do elmo) é uma adulteração do papel original, como um remendo ou um restauro, o que não acontece em nenhum dos outros desenhos no álbum. Além disso, no canto superior direito está uma curiosa inscrição, com duas abreviaturas que não conseguimos decifrar e o nome “Eduardus”. Eduardus é tradução para latim de Duarte.
 
 
À esquerda, ilustração representando o Rei D. João I no Pergaminho “Die Ahnen Kaiser Maximilians I.” (Os Antepassados de Maximiliano I), de 1512, do ilustrador Jörg Kölderer. (Kunsthistorisches Museum Wien, Kunstkammer, 5333, 1512/14). À direita, ilustração da mesma estátua, identificada como “Rei Fernando de Portugal. Antepassado do Imperador Maximiliano” no álbum de desenhos de Jörg Kölderer para as estátuas da Hofkirche. (Figuren für das Grabmal Maximilians I., 1522-1523, Österreichische Nationalbibliothek)
 
 
Pormenor da ilustração com a inscrição “Rei Fernando de Portugal. Antepassado do Imperador Maximiliano”, um remendo no papel original. (Figuren für das Grabmal Maximilians I., 1522-1523, Österreichische Nationalbibliothek)
 
 
Inscrição, no canto do remendo, onde se lê claramente “Eduardus”, possivelmente referência à inscrição que constava anteriormente. (Figuren für das Grabmal Maximilians I., 1522-1523, Österreichische Nationalbibliothek)
 
Esta referência a “Eduardus” nesta inscrição no remendo – seja ela uma emenda ao que está actualmente escrito, seja, como acreditamos mais provável, uma referência ao que estava originalmente inscrito – traz para a nossa já longa e complexa história uma outra possibilidade, mais plausível do que a fernandina, que é a de uma escolha bastante mais óbvia para figurar entre os antepassados do Imperador: o Rei D. Duarte I de Portugal. Pai da Imperatriz Leonor, era o único dos avôs de Maximiliano que era rei (o outro avô, Ernesto da Áustria, está entre as figuras da Hofkirche). Seria portanto natural que o Imperador quisesse que o seu régio avô figurasse no cortejo que idealizou.
Dito isto, salvo esta emenda e uma dedução lógica, nada mais há que nos indique no sentido de se tratar do Rei D. Duarte. Mas permite-nos ter mais convicção de que a referência ao Rei D. Fernando – que é a mais comummente citada hoje na identificação da estátua – foi fruto de um erro de identificação, num momento posterior à morte do Imperador, mas também posterior à feitura da estátua e da ilustração no álbum de Kölderer.
Ficamos, pois, com a hipótese joanina como a mais forte. Esta é reforçada pela presença de D. João I não apenas no estudo original de Kölderer em 1512, mas também em outras obras de arte encomendadas pelo Imperador Maximiliano, como o Cortejo Triunfal.
 
Pormenor de um dos painéis do Cortejo Triunfal do Imperador Maximiliano, mostrando uma das carruagens dos antepassados (feito a partir de xilogravura). Ao centro, o Rei D. João I de Portugal. (Triumphzug Kaiser Maximilians I. Österreichische Nationalbibliothek)
 
Fica, contudo, uma questão essencial por resolver, inversa à da estátua de Leonor de Portugal/Isabel de Gorizia: como é que uma estátua pensada para ser um rei português acaba associada a um escudo de armas totalmente distinto e com uma inscrição que diz que se trata de Teoberto de Borgonha?
Como já referimos, sabemos que a estátua de Teoberto foi uma das produzidas e rejeitadas pela sua fraca qualidade. Sabemos igualmente que Teoberto não estava entre os antepassados desenhados inicialmente por Kölderer, mas já constava no álbum de 28 desenhos, precisamente com o escudo de armas que surge aos pés da estátua pensada para ser o rei português.
Embora estejamos no domínio da conjectura, há alguns dados que nos permitem ter pistas sobre o que poderá ter acontecido no longo processo que mediou entre a concepção do projecto pelo Imperador Maximiliano e a sua efectiva instalação, muitas décadas depois, na Hofkirche de Innsbruck. E, embora móveis, os escudos de armas são um bom guia para tentar desatar este nó.
 
 
Ilustração da estátua de “Teoberto de Borgonha, Conde de Habsburgo” no álbum de desenhos de Jörg Kölderer para as estátuas da Hofkirche. A estátua de Teoberto foi uma das rejeitadas por fraca qualidade. (Figuren für das Grabmal Maximilians I., 1522-1523, Österreichische Nationalbibliothek)
 
O escudo português que a estátua de Isabel de Gorizia ostenta foi, quase de certeza, o escudo feito para adornar a estátua de D. João I. Que esteja ali junto à estátua da senhora pode não ser fruto de um erro. Isto porque, por outro lado, o escudo de Teoberto é único – precisamente por ser fictício. Ou seja, não podia ser aproveitado para nenhuma outra figura. Mas podia ser aproveitado para outra estátua. No momento da instalação das estátuas, parece ter sido decidido renomear a estátua pensada para ser o rei português mas que não tinha qualquer elemento distintivo, tendo-lhe sido atribuída o escudo de Teoberto de Borgonha e a inscrição que atesta essa intenção. E a partir daquela decisão e para os séculos vindouros, aquela estátua foi a de Teoberto – até há muito pouco tempo.
Ora, se o escudo de Portugal foi colocado junto a outra estátua, não podemos devemos retirar daí também uma intenção? No elenco da Hofkirche, reduzido em relação ao plano original de Maximiliano, faltava uma pessoa essencial – a sua mãe, Leonor de Portugal. E as semelhanças estilísticas entre as duas estátuas podem ter levado o Imperador Fernando e quem orientou a instalação do cenotáfio a renomear também aquela estátua. A inventariação da estátua como representando a mãe do imperador, em diversas fontes e em diversos momentos, parece corroborar este entendimento.
É verdade que o escudo pensado para Leonor de Portugal não era aquele. No pergaminho e no álbum de Kölderer, as armas de Leonor de Portugal, de Maria de Borgonha e de Bianca Maria Sforza são partidas, com as armas imperiais a um lado e as armas pessoais de cada uma delas ao outro. Esse escudo partido não chegou à Hofkirche, provavelmente porque havia já um escudo de Portugal disponível, além de que a “nova” imperatriz não seria representada como tal, coroada, mas como Infanta de Portugal.
São, no essencial, hipóteses e suposições. Porventura poderão ser esclarecidas com acesso a documentação sobre as encomendas e as diferentes fases de concepção e instalação do cenotáfio. O que parece pouco óbvio é que o guia oficial se limite a identificar estátuas em clara contradição com as armas que lhes estão atribuídas, obliterando a história que durante 400 anos aquelas estátuas contaram. Seja como for, na forma de uma estátua que foi e deixou de ser ou de outra que não era e se converteu, a memória de Portugal está presente nesta gesta imperial que Maximiliano I, preocupado em imortalizar a glória do seu tempo e do seu nome, quis deixar aos vindouros.
 
 
Ademar Vala Marques
 
 
 

2 comentários:

  1. Parabéns a José Liberato pelas fotos e Ademar Vila Marques pelo texto. Embora o meu gosto esteja mais voltado para a arte, foi interessante verificar, como as fotos de São Cristóvão, desencadearam esta bela narrativa histórica.

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  2. Parabéns pelo excelente arrazoado sobre fontes iconográficas fundamentais, que prima pela clareza, objectividade e não abre mão de análise e proposição de hipóteses, sempre muito pertinentes. Muito obrigado!

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