Tendo lido a excelente reportagem de Isabel Lucas sobre a polémica em torno da tradução da poesia de Amanda Gorman,
várias dúvidas me assaltaram:
1ª – porque é que Amanda Gorman e os
seus agentes levantaram objecções a que a sua poesia fosse traduzida para
catalão por um branco, Victor Obiols, mas não objectaram a que fosse traduzido para espanhol por uma branca, Nuria
Barrios, dita «sem historial activista»?
2ª – porque é que só agora, à boleia desta nova polémica, é que Grada
Kilomba vem questionar e criticar a tradução para português do seu livro, Memórias da Plantação, feita por um
homem branco, Nuno Quintas, e nada disse nem objectou quando essa tradução foi
feita, em 2019?
3ª – alguns, como Inocência Mata,
argumentam que a poesia de Amanda Gorman tem características específicas – spoken word – e por isso, só por isso,
deve ser traduzida por um negro; para outros, como Grada Kilomba ou o tradutor
Paulo Faria, não apenas a spoken word mas muitas outras obras (Oreo, de Fran
Ross, ou Memórias da Plantação, da própria Grada Kilomba) devem ser traduzidas
por negros. Que obras? Todas as assinadas por autores negros? Só algumas? Quais, então?
4ª – que características de um
determinado autor devem ser valorizadas na escolha do seu tradutor? No caso de
Amanda Gorman, vemos apontadas as seguintes características: «jovem», «mulher»,
«negra», «filha de mãe solteira». Dessas, qual a decisiva na
escolha do tradutor? Apenas uma, a etnia? Todas? Porque não o facto de ser
mulher? Ou jovem? Ou filha de mãe solteira? Com que legitimidade se erige a etnia em detrimento do género, por exemplo?
5ª – se escolhemos a etnia como ponto
decisivo do «lugar da fala», isto significa que apenas negros podem traduzir
negros e brancos podem traduzir brancos? Se sim, porquê? Se não, porquê?
6ª – Porque é que a etnia de um
tradutor lhe confere especiais qualificações para o seu ofício? Isso não será racismo, no fim de contas?
7ª – Mais relevante não é, não parece
ser, saber porque é que há em Portugal tão poucos tradutores (e, já agora, escritores,
cineastas, pintores, etc.) de etnia negra?
8ª – E para sabermos se há «poucos» ou
«muitos» tradutores negros não teria sido importante, fundamental, que os
Censos de 2021 incluíssem perguntas, de resposta anonimizada e facultativa, que
permitissem um retrato fidedigno da composição étnico-racial da população
portuguesa?
9ª – Sendo essa, ao que parece, a
questão mais decisiva (sobretudo, decisiva para a população negra mais
discriminada e desfavorecida), porque é que um jornal de referência como o
Público dedicou várias páginas a discutir a tradução de Amanda Gorman e não
abriu espaço idêntico, em devido tempo, para debater a não inclusão, nos actuais Censos, de perguntas
sobre características étnico-raciais?
10º - Não estará o debate
anti-discriminatório a ser ofuscado, comprometido e sufocado por discussões
laterais e menores, que apenas interessam a intelectuais e académicos já
estabelecidos no «sistema»?
11ª – Quem pode traduzir Amanda
Gorman? Uma homem de meia-idade pode fazê-lo? Ou apenas Amanda Gorman pode
traduzir-se a si própria? Um homem pode traduzir literatura feminista? Um heterossexual
pode traduzir escritos gay? Um agnóstico pode dar voz à Bíblia? E quem pode
traduzir os clássicos, Aristóteles ou Platão, Joyce ou T. S. Eliot? Um judeu não pode traduzir Mein Kampf? Ou, pelo contrário, só um judeu pode fazê-lo? Não haverá
aqui o risco, mais do que evidente, de se criarem novos casulos e barreiras, contrariando
a essência própria, universalista, dialogante, do acto de traduzir?
12ª – por fim, mas não por último:
como é possível conciliar este debate com o propósito de união anunciado no
discurso da tomada de posse de Joe Biden, sem o qual poucos saberiam sequer quem é Amanda Gorman? E, já agora, qual o real valor literário
da sua poesia? A obra de Gorman justifica assim tanta discussão e tanto clamor? Ou tudo não passou de uma polémica efémera e estéril – mais uma – lançada nas redes sociais para entreter durante alguns dias os intelectuais do hemisfério norte do planeta, nos
seus lugares da academia e nas páginas de revistas ou jornais «de referência»?
António Araújo
Concordo absolutamente consigo; se estivesse na pele da escritora holandesa eu traduziria, quer fosse branco, amarelo ou negro; depois os críticos que se pronunciassem!
ResponderEliminarO século XX conheceu ditaduras para todos os gostos. Já o século XXI irá ficar para a História futura, como o século da Ditadura do Politicamente Correcto, que assim substitui a tristemente "famosa" Ditadura do Proletariado do século passado.
ResponderEliminarConfesso o meu cansaço com estas discussões criadas artificialmente, por uma esquerda caviar, para promover autores. Abomino as ditaduras e adoro ler, escutar e ver o que me apetece, dispenso estes "intelectuais" e subscrevo na totalidade este magnifico post.
Desejo-lhe uma boa semana!
Muito bom dia!
Rui Luís Lima
Um livro tem de ser traduzido por quem melhor o saiba fazer, ponto final. Calhando ser este o Adolf Hitler, publique-se então a tradução de Adolf Hitler, sem a mais pequena hesitação.
ResponderEliminarDito isto, temo que a polémica comentada misture o bom senso com considerações comercialo-editoriais que, muito infelizmente, não têm rigorosamente nada a ver com literatura, ou com poesia.
Acontece no entanto que, neste capitulo, temos entre as mãos uma arma que vale todas as polémicas, e que de certa maneira as dispensa : não comprar porcaria com a unica justificação da moda, e não deixar de comprar boa literatura/poesia com pretextos idiotas. Isto não impede que haja maus autores/tradutores a enriquecer à custa da ignorânca e da pesporrência ? Pois não. Mas não se preocupem em demasia que a literatura e a poesia hão-de sobreviver. Ja sobreviveram a muito pior.
Boas
Disclaimer : sou (ocasionalmente) tradutor e (profissionalmente) advogado com pratica não desprezivel do direito das discriminações
Só mais umas achas: https://lishbuna.blogspot.com/2021/03/blog-post_26.html
ResponderEliminarPor acaso, o Público é provavelmente o único jornal que tem dado espaço ao debate sobre a não inclusão, nos actuais Censos, de perguntas sobre características étnico-raciais... Uma decisão nada consensual.
ResponderEliminaruma polémica pateta, a competência não tem cor e o racismo parece que também não...
ResponderEliminarBravo, António.
ResponderEliminar" 3ª – alguns, como Inocência Mata, argumentam que a poesia de Amanda Gorman tem características específicas – spoken word – e por isso, só por isso, deve ser traduzida por um negro;"
ResponderEliminarComo diz o José Diogo Quintela, esta poesia nem se destina então a ser lida por brancos, já que se por não serem negros, não conseguem entender para traduzir correctamente, também o público não conseguirá entender quando ler!
Contributo para a conversa: https://www.publico.pt/2021/03/11/culturaipsilon/cronica/preto-cabeleira-loura-branco-carapinha-1953819
ResponderEliminarTraduza quem quiser, depois comparem-se as traduções. The proof of the pudding is in the eating, como dizem os amerloques.
ResponderEliminarThere's an epsilon for every delta (Tom Lehrer):
There's a delta for every epsilon,
It's a fact that you can always count upon.
There's a delta for every epsilon
And now and again,
There's also an N.
But one condition I must give:
The epsilon must be positive
A lonely life all the others live,
In no theorem
A delta for them.
How sad, how cruel, how tragic,
How pitiful, and other adjec-
tives that I might mention.
The matter merits our attention.
If an epsilon is a hero,
Just because it is greater than zero,
It must be mighty discouragin'
To lie to the left of the origin.
This rank discrimination is not for us,
We must fight for an enlightened calculus,
Where epsilons all, both minus and plus,
Have deltas
To call their own.
Acrescentando ao que disse atrás, a literatura não é a tradução dos sentimentos e das emoções de forma a que possam ser entendidas precisamente por quem as não viveu?
ResponderEliminarMuito bem!
ResponderEliminarse me permite lançar mais alguma coisa para a discussão, não me parece que "etnia negra" tenha algum sentido... assim como "África não é um país", negro pode ser, em primeiro lugar, uma hetero-classificação assente num tom de pele que pretende englobar uma enorme variedade de povos e culturas numa visão "essencialista" de muitos grupos humanos, pode até compreender-se que se tenha desenvolvido estrategicamente, num contexto histórico e político próprio, como uma auto-classificação de resistência e rebeldia à atribuição desse lugar subalterno, mas dificilmente se pode aceitar como designado uma etnia.
ResponderEliminarou estaremos a acabar por dar razão a todo este enorme equívoco.
carlos
Bravo, bravo, bravo!
ResponderEliminarO debate sobre a discriminação - em especial nos domínios do racismo, feminismo e dos temas LGBT- foi capturado por académicos activistas que vão criando estas questões para manterem a sua relevância, o seu poder nas instituições (basta ver o pluralismo e diversidade de ideias que grassa nas Universidades) e, muito importante, poderem influenciar ou moldar as políticas públicas nestas áreas. E conseguem-no, sendo convidados como "peritos" disto e daquilo para os cinquenta mil grupos de trabalhos e comissões interministeriais disto e daquilo. Note-se que a discriminação é o ganha pão desta troupe, que é formatada para ver o mundo como sistemicamente problemático, a tradução é só a mais recente "descoberta" destas almas. A traição de que fala já tem pelo menos 40 anos...
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