Memória de Elefante, Os Cus de Judas e Conhecimento do Inferno
aparecem como uma trilogia, a primeira grande viagem de um escritor à volta de
amores perdidos, das recordações familiares, da vivência de um tenente-médico
na guerra colonial e a experiência do psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda,
um antes, um durante e um depois rememorados em puzzle, em pungentes monólogos,
em viagens aturdidas, numa duríssima crítica a certa prática psiquiátrica:
mesmo no inferno dos loucos a África da guerra colonial é omnipresente, é termo
de comparação, é sempre um grito de revolta.
O autor, neste ciclo da
sua vida, aparece acampado em Angola. Logo uma descrição do país dos Luchazes,
no arranque de Conhecimento do Inferno: “O país dos Luchazes é um
planalto vermelho, mil e duzentos metros acima do mar, em que o pó cor de
tijolo atravessa a roupa para nos aderir à pele, se nos enredar nos cabelos,
nos obstruir as narinas do seu odor da terra, próximo do odor ácido e seco dos
mortos. O país dos Luchazes, quase despovoado de árvores, é um país de leprosos
e trevas, um país de vultos inquietos, de rumorosos fantasmas, de gigantescas
borboletas emergindo dos seus casulos do escuro para cambalearem, em busca das
lâmpadas. É o país onde os defuntos assistem sentados aos batuques. É um país
magro de mandioca e de caça”. A guerra está ali bem próxima, é incontornável
entre o presente e o futuro: “Em 1973, eu regressava da guerra e sabia de
feridos, do latir de gemidos na picada, de explosões, de tiros, de minas, de
ventres esquartejados pela explosão das armadilhas, sabia de prisioneiros e de
bebés assassinados, sabia do sangue derramado e da saudade, mas fora-me poupado
o conhecimento do inferno”.
Dentro da carpintaria do
romance, tudo se passa ao volante numa viagem entre o Algarve e a Praia das
Maçãs. É nesta longa e tortuosa deambulação que vamos enfrentar o local onde
funciona o inferno dos loucos: “O Hospital Miguel Bombarda, ex-convento,
ex-colégio militar, ex-Manicómio Rilhafoles do Marechal Saldanha, é um velho
edifício decrépito perto do Campo Santana, das árvores escuras e dos cisnes de
plástico do Campo Santana, perto do casarão húmido da Morgue, onde, em
estudante, retalhara ventres em mesas de pedra num nojo imenso”.
A memória viaja em
ziguezague, há um recuo até ao tempo em que num Alentejo de calor insuportável,
o médico veio examinar os mancebos apresentados nas sortes, isto passava-se num
ginásio, em que desfilavam os ditos mancebos “que o Exército convocara,
arregimentara para defenderem em África os fazendeiros do café, as prostitutas
e os negociantes de explosivos, os que mandavam no país em nome de ideais
confusos de opressão, sentado à secretária, desfilarem diante de mim os rapazes
de Elvas no ginásio fechado, que o fedor das virilhas, do excesso de pessoas e
das roupas abandonadas no chão empestava como o de um curro trágico e triste”.
Há como que um remorso permanente para este ofício de médico-psiquiatra
obrigado, de acordo com o diagnóstico, enjaular certos pacientes: “Crescia em
mim uma espécie de vergonha, ou de aflição, ou de remorso, sempre que preenchia
um boletim de internamento e aferrolhava no manicómio as íris surpreendidas e
tímidas que me fitavam. Ninguém tem culpa e eu preciso de comer, obtive este
emprego do Estado, procedi a exames, concursos, testes de cruzinhas, provas
públicas, pago renda de casa e justifico os vinte contos que ganho aprisionando
pessoas no asilo, escutando desatento as suas inquietações e as suas queixas”.
Em dado passo, ouvimos psicanalistas conversarem entre si, falam no seio
materno, na pré-genitalidade, no desejo consciente de união com a mãe, mamilo
ameaçador, a fúria do escritor não tem limites, não sei se alguma vez alguém
desancou nestes profissionais de saúde como o faz Lobo Antunes: “De todos os
médicos que conheci os psicanalistas, congregação de padres laicos com bíblia,
ofícios e fiéis, formam a mais sinistra, a mais ridícula, a mais doentia das
espécies. Enquanto os psiquiatras da pílula são pessoas simples, sem veredas,
meros carrascos ingénuos reduzidos à guilhotina esquemática do eletrochoque, os
outros surgem armados de uma religião complexa com divãs por altares, uma
religião rigidamente hierarquizada, com os seus cardeais, os seus bispos, os
seus cónegos, os seus seminaristas já precocemente graves e velhos, ensaiando
nos conventos dos institutos um latim canhestro de aprendizes”.
É neste fundo dos
fundos, a dar consultas ou a visitar enfermarias que o assaltam recordações
devastadoras, as passadas em África: “Recebeu o estetoscópio do enfermeiro,
introduziu as olivas nos ouvidos, experimentou o diafragma raspando-o com a unha
do indicador, e ao aplicá-lo no peito do doente veio-lhe de súbito à memória o
dia 13 de Outubro de 1972, em Marimba, na Baixa do Cassanje, Angola, quando os
oficiais empurraram os três negros para o posto de socorros e os obrigaram a
estender-se no chão. Eram os três negros que roubavam a roupa, o dinheiro, os
objetos pessoais dos alferes ao longo desse comprido segundo ano de guerra. Os
relâmpagos estalavam de contínuo num fedor acre de enxofre. Os três negros
levavam porrada desde há horas por roubarem a roupa, o dinheiro, os objetos
pessoais dos alferes, murros, chibatadas, insultos da companhia inteira,
exausta por muitos meses de guerra, dos soldados a quem se haviam tirado as
armas para que se não assassinassem uns aos outros na caserna, depois das
últimas cervejas. Faltava dinheiro, faltavam calças, faltavam camisas,
apodrecíamos de parasitas, de paludismo, de água choca, de medo, e os três
negros, com as feições irreconhecíveis pelos inchaços das pauladas, eram os
culpados dos tiros, da angústia, da estupidez da guerra, e como tal desatámos a
deixar tombar sobre os seus peitos, sobre os ventres, sobre as coxas, pontas
acesas de cigarro, fósforos a arder, morrões de cinza, que pregueavam a pele de
bolhas translúcidas que se elevavam e estalavam”.
Quando a viagem caminha
para o fim, outra memória traiçoeira o assalta, desta vez o quartel de
Mangando:
“- Porque é que as
pessoas se matam? – perguntou o alferes.
Estávamos no quartel de
Mangando, junto à fronteira com o Congo: mais alguns quilómetros e via-se sobre
o rio o acampamento do MPLA do outro lado. Mangando é uma pequena povoação sem
importância, tão sem importância que nenhum mapa, nenhuma carta a refere,
composta por uma sanzala miserável, um renque de palmeiras desdentadas e
calvas, a casa onde o chefe de posto escondia a sua amante negra, e o círculo
de arame-farpado em torno das barracas de madeira da tropa, onde um pelotão
seminu, trémulo de sezões, apodrecia. Eram cinco horas da manhã e o suicida
acabara de morrer depois de muito de desesperadas convulsões diante dos nossos
olhos espantados. O suicida acabara de morrer e jazia, tapado com um lençol,
num cubículo vizinho”. Mas havia mais lugares de desespero naquela latitude de
Angola, como ele recorda: “Eu conhecia o Mussuma, a dez quilómetros da Zâmbia.
Fora lá muitas vezes, de avioneta, levar comida fresca e medicamentos a um
grupo de homens maltrapilhos, de espingarda, metidos num buraco como ratos. De
longe, os telhados de zinco cintilavam ao sol: era uma cova de caixão do
tamanho de um corpo inerte, de um corpo fatigado. Entrava-se no arame e a boca
enchia-se de terra como a dos defuntos, que se mastigam a si próprios no
silêncio de mogno dos caixões”. É uma das recordações mais dramáticas e mais
pungentes, à volta de um suicídio de quem não se conhecem os porquês. É assim o
espanto da vida, da profissão de médico, dos sulcos vincados que perduram no
ex-combatente, que viajam até no conhecimento do inferno.
São estes os primeiros
livros de António Lobo Antunes, um dos maiores escritores portugueses de todos
os tempos. Recordações inextinguíveis nalgumas das melhores páginas da
literatura da guerra colonial.
Mário Beja Santos
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