sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Nem reportagem, nem biografia e duvidosamente um romance, é uma obra-prima consumada.

 


 

Acaba de ser publicada a edição comemorativa dos 40 anos da 1ª edição de O Papagaio de Flaubert, por Julian Barnes, Quetzal. Perguntará o leitor o que há assim de tão intricado para definir uma obra com discurso pulverizado entre literatura e escritores, histórias familiares do genial Gustave Flaubert, a sua correspondência, o desvendar da sua vida íntima e até a sua delapidação de património, ainda por cima havendo o pretexto de um médico inglês ter passado o Canal da Mancha dirigindo-se a Ruão, e com um objetivo que nos pode deixar atónitos: ver o papagaio embalsamado que serviu de modelo ao autor de Madame Bovary durante a escrita de um dos seus livros. E mais ainda, Julian Barnes publicou este livro em 1984, e a obra começa exatamente nesse ano com uma viagem do escritor inglês na chamada França profunda. Logo começam as observações que contribuem para que o leitor galope freneticamente na imaginação de uma escrita sagaz, do tipo: um escritor precisa de três coisas para ter êxito: talento, trabalho árduo e sorte, conta histórias alusivas à publicação de O Papagaio de Flaubert, e dirá mais adiante que aprendeu a lição que não vale a pena imaginar quem e qual pode ser o universo dos seus leitores.

Agora sim, o inglês Geoffrey Braithwaite está em Ruão, especado frente à estátua de Flaubert, ficamos a saber que a estátua não é original, os alemães levaram-na, a idealidade de Ruão aprovou o projeto de uma nova estátua, o escritor interroga-se, é como se dissesse ao leitor aqui vai o meu aviso à navegação. “Porque é que a escrita nos faz procurar o escritor? Porque é que não o deixamos em paz? Porque é que os livros não bastam? Flaubert queria que fosse assim: poucos escritores acreditaram mais na objetividade do texto escrito e na insignificância da personalidade do escritor; mas mesmo assim desobedecemos e continuamos.”

Atenção, o escritor vestiu a pele do tal médico reformado, procura saber mais sobre o romancista que tornou Emma Bovary uma estrela mundial. Viu o papagaio, Flaubert tinha pedido ao Museu de Ruão essa ave empalhada enquanto escrevia Un Cœur Simple, o que podia parecer uma vulgaridade abre uma trajetória para conhecer o processo narrativo do romance e graças ao papagaio; para que tudo se torne mais palpável e para que o leitor participe claramente na intrusão da vida e obra de Flaubert vamos ler, deliciados, a cronologia, mete família, o que publicou, as amizades e os amores, desvelam-se os seus pensamentos: “À medida que envelhecemos, o coração deixa cair as folhas como uma árvore. Nada resiste contra certos ventos. Cada dia arranca umas folhas mais; e depois há as tempestades, que de uma só vez partem vários ramos. E enquanto o verde da natureza cresce na primavera seguinte, o do coração não volta a crescer.”

Vamos penetrar na vida amorosa deste solteirão empedernido, a sua esplêndida correspondência, assim chegamos a formas de tratamento que podemos considerar um bestiário, em família e nos amores há ursos, ratazanas, ouriços, lagartos, mas é de facto o urso que impera, e assim chegamos a esse papagaio, o do intrigante título desta obra, mas que tanto seduziu o romancista francês, talvez porque o papagaio é capaz de imitar a voz humana. Mas é a convocação de pensamentos que dá a grude que nos vai inteiriçando de um assunto para outro, empolga-nos, a propósito de não apreciar os críticos quanto às referências à cor dos olhos de Emma Bovary, aparecem colorações diferentes, tanto podem ser castanhos como negros, e lá vamos sendo imiscuídos em considerações que do trivial, ou quase, ganham proporções de um quase êxtase, é o caso da história de adultério da sedução de Emma numa carruagem em andamento, que tanta indignação deu a gente pudibunda e levou Flaubert ao tribunal; ficamos igualmente a saber a relação que o escritor manteve com os caminhos de ferro, e temos o impacto dos dados biográficos:

“Nunca casou e nunca aprendeu a dançar. Resistia de tal maneira à dança que nos seus romances a maioria das personagens masculinas partilham desta atitude e também se refusam a dançar.

Em vez de aprender a dançar, o que é que aprendeu? Aprendeu que a vida não é uma escolha entre matar para chegar ao trono ou passar pela lama da pocilga; que há rei porcinos e porcos dignos de um trono; que o rei pode invejar o porco; e que as possibilidades da não-vida hão de sempre mudar angustiantemente para se encaixarem nos problemas da vida vivida.”

É aliciante, esta quase descida aos infernos da sua história amorosa com Louise Colet, é como se fosse um relato a várias vozes, deste modo:

“Não quero ser dura, mas logo quando o vi pela primeira vez reconheci o género: o provinciano grande e desajeitado, tão ansioso e feliz por finalmente se ver nos círculos artísticos. Gustave tinha 24 anos. Para mim, a idade não conta; o que conta é o amor. Não precisava de ter Gustave na minha vida. Se andasse à procura do meu amante – admito que a fortuna do meu marido não estava num ponto brilhante e a minha amizade com o filósofo estava nessa altura um pouco tumultuosa -, não teria escolhido Gustave (…) Era impetuoso, o meu Gustave. Deus sabe que nunca era fácil convencê-lo a encontrar-se comigo; mas quando lá estava… Fossem quais fossem as batalhas que existiram entre nós, nenhuma delas foi travada no reino da noite. Aí beijávamo-nos à luz dos relâmpagos; aí a violência ligava-se à brincadeira terna. Tinha, naturalmente, a eterna ilusão dos jovens fortes, a de que as mulheres medem a paixão pelo número de vezes que o assalto é renovado no decurso de uma mesma noite.” É, seguramente, uma das mais belas páginas, e no tal grau de confusão sobre o género literário em que se pode classificar esta obra-prima, onde não faltam máximas, arremedos de páginas de diário, um completo labirinto entre a arte e a vida, que Julian Barnes logo aproveita para ser claramente opinativo: “Para alguns, a Vida é rica e cremosa, feita segundo uma antiga receita caseira e só com produtos naturais, enquanto a Arte é um pálido produto comercial que consiste basicamente em corantes e sabores artificiais. Para outros, a Arte é a mais verdadeira das coisas, plena, movimentada e emocionalmente satisfatória, enquanto a Vida é pior que o pior dos romances: falha de enredo, povoada de maçadores e de velhacos, parca de espírito, envolta em incidentes desagradáveis e conducente a um desenlace doloroso e previsível.” E no final da obra, como que por milagre, não sabemos se estivemos sempre a conversar com um romancista consagrado e premiado ou com um médico reformado e viúvo.

Obra esplendorosa, em boa hora reeditada com muito cuidado gráfico. 


                                                                        Mário Beja Santos

 

 

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