Acaba
de ser publicada a edição comemorativa dos 40 anos da 1ª edição de O
Papagaio de Flaubert, por Julian Barnes, Quetzal. Perguntará o leitor o que
há assim de tão intricado para definir uma obra com discurso pulverizado entre
literatura e escritores, histórias familiares do genial Gustave Flaubert, a sua
correspondência, o desvendar da sua vida íntima e até a sua delapidação de
património, ainda por cima havendo o pretexto de um médico inglês ter passado o
Canal da Mancha dirigindo-se a Ruão, e com um objetivo que nos pode deixar
atónitos: ver o papagaio embalsamado que serviu de modelo ao autor de Madame
Bovary durante a escrita de um dos seus livros. E mais ainda, Julian Barnes
publicou este livro em 1984, e a obra começa exatamente nesse ano com uma
viagem do escritor inglês na chamada França profunda. Logo começam as
observações que contribuem para que o leitor galope freneticamente na
imaginação de uma escrita sagaz, do tipo: um escritor precisa de três coisas
para ter êxito: talento, trabalho árduo e sorte, conta histórias alusivas à
publicação de O Papagaio de Flaubert, e dirá mais adiante que aprendeu a
lição que não vale a pena imaginar quem e qual pode ser o universo dos seus
leitores.
Agora
sim, o inglês Geoffrey Braithwaite está em Ruão, especado frente à estátua de
Flaubert, ficamos a saber que a estátua não é original, os alemães levaram-na,
a idealidade de Ruão aprovou o projeto de uma nova estátua, o escritor
interroga-se, é como se dissesse ao leitor aqui vai o meu aviso à navegação.
“Porque é que a escrita nos faz procurar o escritor? Porque é que não o
deixamos em paz? Porque é que os livros não bastam? Flaubert queria que fosse
assim: poucos escritores acreditaram mais na objetividade do texto escrito e na
insignificância da personalidade do escritor; mas mesmo assim desobedecemos e
continuamos.”
Atenção,
o escritor vestiu a pele do tal médico reformado, procura saber mais sobre o
romancista que tornou Emma Bovary uma estrela mundial. Viu o papagaio, Flaubert
tinha pedido ao Museu de Ruão essa ave empalhada enquanto escrevia Un Cœur
Simple, o que podia parecer uma vulgaridade abre uma trajetória para
conhecer o processo narrativo do romance e graças ao papagaio; para que tudo se
torne mais palpável e para que o leitor participe claramente na intrusão da
vida e obra de Flaubert vamos ler, deliciados, a cronologia, mete família, o
que publicou, as amizades e os amores, desvelam-se os seus pensamentos: “À
medida que envelhecemos, o coração deixa cair as folhas como uma árvore. Nada
resiste contra certos ventos. Cada dia arranca umas folhas mais; e depois há as
tempestades, que de uma só vez partem vários ramos. E enquanto o verde da
natureza cresce na primavera seguinte, o do coração não volta a crescer.”
Vamos
penetrar na vida amorosa deste solteirão empedernido, a sua esplêndida
correspondência, assim chegamos a formas de tratamento que podemos considerar
um bestiário, em família e nos amores há ursos, ratazanas, ouriços, lagartos,
mas é de facto o urso que impera, e assim chegamos a esse papagaio, o do
intrigante título desta obra, mas que tanto seduziu o romancista francês,
talvez porque o papagaio é capaz de imitar a voz humana. Mas é a convocação de
pensamentos que dá a grude que nos vai inteiriçando de um assunto para outro,
empolga-nos, a propósito de não apreciar os críticos quanto às referências à
cor dos olhos de Emma Bovary, aparecem colorações diferentes, tanto podem ser
castanhos como negros, e lá vamos sendo imiscuídos em considerações que do
trivial, ou quase, ganham proporções de um quase êxtase, é o caso da história
de adultério da sedução de Emma numa carruagem em andamento, que tanta
indignação deu a gente pudibunda e levou Flaubert ao tribunal; ficamos
igualmente a saber a relação que o escritor manteve com os caminhos de ferro, e
temos o impacto dos dados biográficos:
“Nunca
casou e nunca aprendeu a dançar. Resistia de tal maneira à dança que nos seus
romances a maioria das personagens masculinas partilham desta atitude e também
se refusam a dançar.
Em
vez de aprender a dançar, o que é que aprendeu? Aprendeu que a vida não é uma
escolha entre matar para chegar ao trono ou passar pela lama da pocilga; que há
rei porcinos e porcos dignos de um trono; que o rei pode invejar o porco; e que
as possibilidades da não-vida hão de sempre mudar angustiantemente para se
encaixarem nos problemas da vida vivida.”
É
aliciante, esta quase descida aos infernos da sua história amorosa com Louise
Colet, é como se fosse um relato a várias vozes, deste modo:
“Não
quero ser dura, mas logo quando o vi pela primeira vez reconheci o género: o
provinciano grande e desajeitado, tão ansioso e feliz por finalmente se ver nos
círculos artísticos. Gustave tinha 24 anos. Para mim, a idade não conta; o que
conta é o amor. Não precisava de ter Gustave na minha vida. Se andasse à
procura do meu amante – admito que a fortuna do meu marido não estava num ponto
brilhante e a minha amizade com o filósofo estava nessa altura um pouco
tumultuosa -, não teria escolhido Gustave (…) Era impetuoso, o meu Gustave.
Deus sabe que nunca era fácil convencê-lo a encontrar-se comigo; mas quando lá
estava… Fossem quais fossem as batalhas que existiram entre nós, nenhuma delas
foi travada no reino da noite. Aí beijávamo-nos à luz dos relâmpagos; aí a
violência ligava-se à brincadeira terna. Tinha, naturalmente, a eterna ilusão
dos jovens fortes, a de que as mulheres medem a paixão pelo número de vezes que
o assalto é renovado no decurso de uma mesma noite.” É, seguramente, uma das
mais belas páginas, e no tal grau de confusão sobre o género literário em que
se pode classificar esta obra-prima, onde não faltam máximas, arremedos de
páginas de diário, um completo labirinto entre a arte e a vida, que Julian
Barnes logo aproveita para ser claramente opinativo: “Para alguns, a Vida é
rica e cremosa, feita segundo uma antiga receita caseira e só com produtos
naturais, enquanto a Arte é um pálido produto comercial que consiste
basicamente em corantes e sabores artificiais. Para outros, a Arte é a mais verdadeira
das coisas, plena, movimentada e emocionalmente satisfatória, enquanto a Vida é
pior que o pior dos romances: falha de enredo, povoada de maçadores e de
velhacos, parca de espírito, envolta em incidentes desagradáveis e conducente a
um desenlace doloroso e previsível.” E no final da obra, como que por milagre,
não sabemos se estivemos sempre a conversar com um romancista consagrado e
premiado ou com um médico reformado e viúvo.
Obra esplendorosa, em boa hora reeditada com muito cuidado gráfico.
Mário Beja
Santos
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