quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Seja bem-vindo, Karla, o senhor todo-poderoso da Décima Terceira Diretoria volta a matar.

 

 


 

É um romance de arromba, ultrapassa qualquer nostalgia desses livros fundamentais que John le Carré escreveu sobre a Guerra Fria, a começar pelo inesquecível O Espião Que Saiu do Frio. Um dos filhos deste inesquecível romancista, Nick Harkaway, ressuscitou o mundo da Guerra Fria e a galeria de personagens forjadas pelo pai. Voltamos ao universo asfixiante e aos espiões peripatéticos do Circus, todos comandados pelo Controlo; em Moscovo, trava-se uma luta surda para conquistar o poder na sede da tenebrosa Décima Terceira Diretoria, os serviços secretos soviéticos, conhecidos pelo nome Centro de Moscovo, a espionagem britânica ainda não se tinha apercebido do poder ascensional que estava a ganhar Karla, que aqui aparece assim identificado: “Não dava a ideia de ser político nem parecia que quisesse saber das pequenas formalidades de submissão. Parecia vulgar e falava baixo, mas o seu tom assumia de tal modo uma nítida autoridade que se podia duvidar que tivesse sido de alguma maneira adquirida.” A Escolha de Karla, Publicações Dom Quixote, 2025, não vem só satisfazer os saudosos desses bem-elaborados enredos de John le Carré, se bem que este seu filho não esconda a satisfação em trazer de volta o indiscutível cérebro operacional do Circus, George Smiley e o seu temível adversário, Karla, assim definido: “a opacidade do regime autoritário, da sua caprichosa violência, da sua ubiquidade, do seu peso; ele só se torna menos assustador à medida que o vemos muitas vezes de perto”; Nick Harkaway acaba por ser fulgurante na escolha do tempo e do lugar desta trama a Guerra Fria mudou de estatuto, o Muro já não está em Berlim, a espionagem ganhou um outro formato, mas neste universo distópico os espiões não estão no desemprego, como é por demais sabido, Harkaway é mestre a mexer estes cordelinhos.

Comecemos pelo tempo e o lugar, uma boa escolha, Mundt, o chefe dos serviços secretos da RDA, continua incólume, depois de tudo o que aconteceu nessa obra-prima que dá pelo nome O Espião Que Saiu do Frio, e ainda não foi capturado esse inconfessável traidor britânico, figura de eleição dentro do Circus, que dominará o romance A Toupeira. Estamos na primavera de 1963, aparece de supetão um matador soviético que vai pôr o Circus em polvorosa; entregou-se às autoridades britânicas e confessa que viera assassinar um homem de origem húngara, tudo parecia que Mr. Bánáti era um editor independente, desapareceu, a sua colaboradora é interrogada, aparentemente não há uma pista para um homem que parece estar em fuga, o Circus entra em estado febril.

Interroga-se o desertor, parece não haver pontas por onde se pegar. É então que o Controlo manda chamar o reformado Smiley, apura-se que houvera uma ordem de um apagado funcionário dentro da Décima Terceira Diretoria para liquidar esse imigrante húngaro que era supostamente um contrarrevolucionário e que se dedicava placidamente à edição em Londres. As investigações procedem até se descobrir que Bánáti é um nome forjado para alguém que ganhara notoriedade no mundo comunista, Ferenc Róka, e o autor abre uma pontinha sobre o funcionamento dos serviços secretos soviéticos desde os anos 20 e 30.

Como dando satisfação ao desenho que John le Carré dera de Smiley, desvela-se a sua vida conjugal, instável e inquietante, voltaremos a ouvir falar das infidelidades da mulher e como esta se revela manifestamente indisposta com o regresso de Smiley ao Circus. Já está tudo em movimento. O espião desertor recebe a missão de falar com o chefe da espionagem em Londres, um funcionário diplomático. E começam as viagens, as conversas de Smiley com velhos agentes do Circus, a caça ao homem vai estender-se por meio continente, mas estranhamente Karla anda sempre dois passos adiante, o Centro de Moscovo parece ter uma fantástica previsão. A temperatura vai subindo, a vida pessoal de Róka vai sendo desmontada, as diferentes secções do Circus trabalham afanosamente, a começar pelas Tias Más, umas senhoras de meia-idade que são autênticas enciclopédias.

Inevitavelmente, haverá uma passagem por Berlim, o autor descreve luminosamente aquele tempo: “Berlim era uma ilha no mar da Alemanha de Leste e apenas metade dela era acessível. Uma pessoa chocava contra os seus limites com surpreendente frequência. A segunda coisa era a cor. A zona ocidental era quase berrante: conscientemente ou não, os habitantes realçavam a sua roupa de trabalho com explosões de escarlate e azul-celeste; falavam alto e professavam opiniões convincentes, como que para levar a sua avante face aos outos de lado de lá do Muro.” Como será indispensável regressar a Budapeste, mas antes entrará em cena, e com intenso brilhantismo Hans-Dieter Mundt, também ele está surpreendido com o interesse de Moscovo quanto ao paradeiro do filho de Róka. Em Budapeste vive o amor de Róka, ela é procurada por um agente britânico, e é nesse contexto que o romance ganha uma energia avassaladora, a rede de espionagem britânica em vários países prepara a exfiltração desse amor de Róka e mãe desse jovem estranhamente desaparecido em Berlim, Smiley a conduzir um Trabant, passam da Hungria para a Checoslováquia e daí para o Ocidente, operação que terá uma perda para os serviços britânicos.

Várias vezes ao longo da obra se falará de Lisboa, com uma certa fantasia de criar um porto em Almada, Smiley viaja para aqui, “Portugal era um país anticomunista, mas estrategicamente não alinhado. Aqui as regras eram diferentes, e assim era desde os anos 30: os serviços de informações estrangeiros tinham liberdade de agir com moderação desde que fossem escrupulosos em operar totalmente afastados do Estado português.” Smiley vai desembarcar no cais de Almada, o vento superava fresco do mar, ele vem à procura de alguém que Karla de há muito conhece e que pode seriamente comprometê-lo. A pessoa que Smiley procura vivia no quinto piso de um atarracado prédio de apartamentos com vista para o Tejo, ele senta-se num café à beira-rio com chapéus de sol em pesados pedestais de cimento e toalhas de papel presas com cinzeiros. Pouco depois, chegarão sinais de que algo acontecera, virá a polícia, o agente português chama-se Caçador, Karla antecipara-se, aquele homem que tivera a capacidade de pôr o leitor açodado à espera de um desfecho invulgar e catalisador (como é timbre deste subgénero literário) estava morto e bem morto, tinham-se apagado pistas que pudessem levar ao comprometimento de Karla. O Controlo está satisfeito e di-lo a quem convocou retirando-o da reforma:

“- Eu pedi-lhe para me mostrar o estilo Smiley e você mostrou-o, ofereceu ao Karla a oportunidade de pôr termo a tudo aquilo. Sem estratagemas, só a coisa em si. Acha que ele percebeu isso?

- Sim, penso que sim.

- E em resposta não deu quartel. Pois bem: pelo menos sei o que ele é. Um verdadeiro crente. É assim que a coisa acaba.

Smiley olhou em redor à procura de Leamas (personagem do romance O Espião Que Saiu do Frio, morto em pleno muro de Berlim), mas não o encontrou.

- Não – disse -, não, acabar não acaba. Ainda não.”

Fica aberto o caminho para que Nick Harkaway nos venha a brindar com mais surpresas, já que trata tão magistralmente o legado de le Carré.

De leitura obrigatória, goste-se ou não desse mundo embrenhado e perigoso de sórdidas batalhas que parecem ter regressado, é certo que com outro estilo, ao continente europeu.

 

                                                            Mário Beja Santos




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