Justice for Hedgehogs (trad. portuguesa: Justiça para Ouriços, Almedina, 2012) é o
mais recente livro de Ronald Dworkin e também o livro que pretende reunir num
todo coerente a sua filosofia política, moral e jurídica [1].
Nessa medida, pode sem dúvida considerar-se o seu opus magnum. A atestá-lo está, desde logo, a circunstância de Justice for Hedgehogs ter sido objecto
de uma conferência, ocorrida antes mesmo da publicação da obra, em que
participaram importantes constitucionalistas e filósofos como Frank Michelman, Frances Kamm, Thomas Scanlon e Jeremy
Waldron, entre muitos outros [2].
O
propósito de Dworkin em Justice for
Hedgehogs consiste, como o próprio afirma, em defender «uma ampla e antiga tese filosófica: a unidade
do valor» (p. 1). O título do livro tem na sua base um fragmento do poeta
grego Arquíloco, retomado por Isaiah Berlin, segundo o qual «a raposa sabe
muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa». Segundo Berlin, apesar das
divergências sobre a interpretação correcta destas palavras, as mesmas podem
significar simplesmente que a raposa, com toda a sua manha, é vencida pela
defesa única do ouriço. Mas, prossegue Berlin, tomada figurativamente, a
diferença entre a raposa e o porco-espinho pode exprimir uma das mais profundas
diferenças entre pensadores e, até, os seres humanos em geral. Trata-se da
diferença entre aqueles que «relacionam tudo com uma única visão central, um
sistema, mais ou menos coerente ou articulado, em termos do qual tudo compreendem,
pensam e sentem – um princípio organizativo único, universal apenas em função
do qual tudo o que são e dizem tem significado – e, por outro lado, aqueles que
perseguem muitos fins, muitas vezes não relacionados e até contraditórios» [3].
Pois
bem, ao contrário da desconfiança de Berlin em relação à ideia de unidade de
valor, Dworkin abraça-a como motor central do seu projecto filosófico. Segundo
ele, a ideia de que os valores éticos e morais dependem uns dos outros
apresenta-se como uma crença, a proposta de uma forma de vida, mas é também uma
complexa teoria filosófica.
Na
Parte I do livro, Dworkin começa por defender a ideia de que existe verdade na
moral, quer contra aqueles que perfilham aquilo que designa como cepticismo
interno, isto é, o cepticismo inerente a juízos morais substantivos, e quer
contra aqueles que perfilham o cepticismo externo, que se baseia em afirmações
externas, de «segunda-ordem», sobre a moral. Os cépticos internos fundam-se na
moral para denegrir a moral, afirmando por exemplo que, se Deus não existe,
desaparece qualquer base para a moral, ou que a moral é vazia porque todo o
comportamento humano é determinado causalmente por acontecimentos que escapam
ao controlo de qualquer pessoa; os externos julgam a moral a partir de fora e
rejeitam qualquer possibilidade de conhecimento moral, afirmando, por exemplo,
que os juízos morais não são verdadeiros nem falsos, mas a simples expressão de
sentimentos (pp. 31-34). A Parte II é dedicada à demonstração da natureza «interpretativa»
do raciocínio moral. Nas Partes III e IV, respectivamente, Dworkin desenvolve
os conteúdos da ética e da moral, conceitos que distingue da seguinte forma:
«os padrões da moral determinam como devemos tratar os outros; os padrões da
ética, como devemos nós próprios viver» (pp. 13 e 191). Finalmente, na Parte V,
em que são abordados a política e o direito, a análise deixa de se ocupar das
ideias de responsabilidade (ética) e obrigações (morais), para se centrar na
ideia de direitos.
Se é
este o plano geral da obra, Dworkin inicia-a com um «Baedeker» (um guia de
viagem) em que expõe resumidamente as suas principais ideias no sentido precisamente
inverso àquele, atrás mencionado, em que surgem ordenadas no livro. O seu
propósito é o de dotar as pessoas particularmente interessadas na política da
compreensão de como «as discussões filosóficas mais abstractas do livro são
passos necessários para chegar àquilo que mais lhes diz respeito». Já para
aqueles mais orientados para as questões filosóficas, a mesma estratégia serve
para os encorajar a «encontrar importância prática naquilo que poderão ser
tentados a acreditar serem matérias filosóficas abstrusas» (p. 2).
Na
impossibilidade, por manifesta falta de espaço, de explorar as ideias de
Dworkin tal como desenvolvidas ao longo da obra, vale a pena seguir aqui o
«guia» introdutório proposto pelo autor. Sob a epígrafe «Justiça», encarada
como justiça distributiva, Dworkin começa por expor as suas ideias sobre a
igualdade, a liberdade, a democracia e o direito.
.
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No que
diz respeito à igualdade, Dworkin parte daqueles que designa como os «dois
princípios reinantes» que devem ser adoptados por qualquer poder político
legítimo (p. 2): o respeito pelo valor igual de cada pessoa a esse poder
submetida; o respeito pela responsabilidade e direito de cada pessoa a decidir
por si mesma como fazer algo valioso com a sua vida. Toda a distribuição de
recursos deve ser justificada em face destes dois princípios. Nesta sequência,
será de rejeitar uma economia política baseada no laissez faire, uma vez que,
ao aceitar sem restrições todos os resultados do funcionamento do mercado, não
respeita o valor igual de cada um, designadamente o daqueles que, sem qualquer
responsabilidade, se encontram numa posição que é, à partida, desfavorável.
Será também de rejeitar uma distribuição igualitária de recursos segundo a
ideia de bem-estar, agora pela circunstância de esta não valorizar devidamente
o princípio da responsabilidade de cada um pela sua própria vida. Se eu decidir
passar a minha vida em divertimento ou num trabalho menos produtivo, devo
assumir a responsabilidade pelo custo que esta escolha impõe: «devo ter menos
em consequência» (p. 3).
Dworkin
propõe a sua teoria de justiça distributiva, baseada na igualdade de recursos.
Dworkin toma como ponto de partida um mercado imaginário em que todos os
recursos disponíveis são objecto de um leilão, que apenas cessa quando ninguém
inveja o feixe de recursos atribuído a qualquer outro. Deste modo, respeita-se
o princípio do igual valor de cada um. Para além disso, são também objecto de
leilão apólices de seguro que visam minorar as consequências da boa ou má sorte
dos participantes. Assim, respeita-se também o princípio da responsabilidade
individual. Dworkin imagina depois que se concebam sistemas de impostos segundo
o modelo dos mercados imaginários, isto é, sistemas de impostos progressivos
concebidos como sucedâneos dos prémios que seria razoável assumir que as
pessoas estivessem dispostas a pagar no mercado de seguros hipotético.
No que
diz respeito à liberdade, e contra a tese de I. Berlin da inevitabilidade do
conflito entre esta e a igualdade, Dworkin procura uma teoria da liberdade que
elimine tal conflito. Para o efeito, distingue entre liberdade total, que é
simplesmente a capacidade de fazer o que se quiser sem restrições do poder
político, e liberdade substancial, que consiste naquela parte da liberdade
total que o poder político não tem fundamento para restringir. Com base nesta
distinção, Dworkin nega um direito geral de liberdade e sustenta a existência
de diferentes direitos de liberdade: o direito à independência ética, que
decorre do princípio da responsabilidade individual; a liberdade de expressão,
igualmente resultante do princípio da responsabilidade individual; o direito ao
devido processo legal e o direito de propriedade, resultantes do princípio do
igual valor de cada pessoa. Neste esquema de liberdades desaparece o conflito
com a igualdade, no sentido em que não é possível determinar o que é exigido
pela liberdade sem, do mesmo passo, decidir qual a distribuição da propriedade
e da oportunidade que satisfaz a exigência de igual respeito por todos. Neste
sentido, é falsa a pretensão de que os impostos limitariam a liberdade das
pessoas, desde que os rendimentos subtraídos pelos impostos tenham uma
justificação moral, isto é, não nos subtraiam mais do que aquilo que temos
direito a reter.
Dworkin
nega também a existência de qualquer conflito entre a liberdade e a igualdade,
por um lado, e o princípio democrático ou liberdade positiva, por outro. Para o
efeito, distingue entre uma concepção estatística, ou maioritária, da
democracia e uma concepção societária. De acordo com esta última, cada cidadão
participa numa comunidade genuinamente democrática enquanto parceiro igual, o
que significa mais do que ter o mesmo voto igual. Significa, na verdade, que a
própria democracia exige a protecção dos direitos à igualdade e liberdade
negativa que é muitas vezes acusada de ameaçar.
Dworkin
nega, por último, a existência de qualquer conflito entre a justiça e o
direito, que surge apresentado como um ramo da moral política, por sua vez
considerada um ramo da moral pessoal, sendo esta encarada como um ramo de uma
teoria geral do que é viver bem. Não se julgue que as concepções políticas
defendidas pelo autor se integram por via de um ajustamento à medida. Pelo
contrário, Dworkin sustenta que «na moral política, a integração é uma condição
necessária da verdade» (pp. 5-6).
A fim
de fundamentar esta importante conclusão, Dworkin começa por efectuar uma
precisão sobre a natureza dos conceitos que estão em causa quando discutimos a
igualdade, a liberdade, a democracia e o direito. Não se trata de conceitos de que
partilhemos na exacta medida em que estamos de acordo sobre os critérios a que
recorremos para identificar exemplos dos mesmos. Nalguns casos, com efeito, o
nosso desacordo sobre os conceitos resulta de usarmos diferentes critérios na
identificação dos exemplos com que ilustramos os conceitos. Em tais casos, não
existe propriamente desacordo sobre os conceitos. Mas, relativamente a alguns
conceitos existe desacordo sobre os conceitos para além do desacordo sobre os
critérios. Trata-se dos conceitos que descrevem valores e em que o nosso
desacordo diz respeito aos próprios valores e ao modo como devem ser expressos.
A raiz do nosso desacordo reside aqui em interpretarmos as práticas em que
figuram tais conceitos de modos diversos. Estamos assim perante desacordos de
valor e não desacordos de facto ou desacordos relativos a significados
convencionados.
Neste
sentido, a moral política depende da interpretação, tal como esta assenta no
valor. Não pode defender-se uma teoria da justiça sem se ser também levado a
defender uma teoria da objectividade moral (p. 8). Dworkin defende «a
independência metafísica do valor» (p. 9). Isto não significa que aceite a
existência, para além das pretensões morais, de propriedades morais
metafísicas, que designa como «morons». Não existe qualquer distinção
significativa entre questões morais – como saber se a justiça exige um serviço
de saúde universal – e questões sobre moral – tendentes a determinar se a
pretensão de que a justiça exige um serviço de saúde universal é verdadeira ou
apenas exprime uma atitude (p. 10).
Se não
existem questões morais de «segundo grau», chamemos-lhes assim, a independência
do valor estrutura-se sobre a interconexão entre os seus diferentes conceitos e
departamentos. Isso acontece, desde logo, porque os conceitos de valor não se
encontram «aí fora», à espera de ser encontrados, como os factos em bruto, mas
antes existem em práticas sociais que carecem de ser interpretadas.
Dworkin
sustenta que nenhuma abordagem filosófica catalogada se ajusta ao seu modo de
ver, porque nenhuma prescinde do falso pressuposto de que «existem importantes questões
sobre valores que não devem ser respondidas através de juízos de valor» (p.
11). Os nossos juízos morais são interpretações de conceitos morais básicos e
testamos essas interpretações ao colocá-las em quadros de valor mais amplos, de
modo a apurar se se ajustam em conjunto e sustentam as melhores concepções dos
conceitos envolvidos.
.
.
Com
estes pressupostos, Dworkin desenvolve os dois princípios do individualismo
ético, que qualifica noutros contextos, designadamente na sua teoria da
justiça, como princípios políticos. O primeiro é um princípio de auto-respeito,
de acordo com o qual cada pessoa deve levar a sua vida a sério, aceitando ser
importante que essa vida seja um sucesso, em vez de uma oportunidade desperdiçada.
O segundo é o princípio da autenticidade: cada pessoa tem uma responsabilidade
pessoal na identificação daquilo que vale como sucesso na sua própria vida (pp.
203-204). Dworkin discute estes princípios no contexto da ética, relativa ao
estudo do viver bem, defendendo ainda uma visão «compatibilista» do
determinismo e do livre arbítrio (pp. 219 e ss.). Seguidamente, passa à moral,
respeitante ao estudo de como devemos tratar as outras pessoas, em que trata,
reconhecendo uma inspiração kantiana, os temas das condições em que é lícito
causar um prejuízo a outrem, das promessas e obrigações, etc. Por último,
fechando o círculo, Dworkin desenvolve uma teoria da justiça, cujos principais
traços foram já expostos.
O
«Baedeker» apresentado pelo autor, bem como o epílogo, fornecem ainda
esclarecimentos sobre o lugar da argumentação desenvolvida pelo autor na
história intelectual. Depois de afirmar que a moral quer dos filósofos antigos,
quer dos filósofos embriagados de Deus da Idade Média, era uma moral da
auto-afirmação, Dworkin sustenta que «o novo regime epistemológico» das Luzes
colocou um problema novo às convicções sobre o valor: desde então, «não temos
direito a pensar que as nossas convicções morais são verdadeiras a menos que
consideremos tais convicções uma exigência da razão pura ou um produto de algo
“lá fora” no mundo» (p. 16). Pois bem, é contra este «novo regime
epistemológico» que Dworkin propõe a sua leitura da lei de Hume: da posição por
este assumida de que de nenhuma proposição sobre o que é se pode seguir uma
proposição sobre o que deve ser, não devem retirar-se consequências cépticas
sobre o conhecimento moral, mas as consequências precisamente opostas, isto é,
«a independência da moral como um departamento separado do conhecimento, com os
seus próprios padrões de inquérito e justificação». Ao contrário do que se
poderia pensar, e pensou, a lei, ou princípio, de Hume «exige-nos que rejeitemos
o código epistemológico do Iluminismo para o domínio moral» (p. 17).
Se Hume
é assim reinterpretado como o fundador da independência da moral em face dos
demais domínios do conhecimento, Kant surge como o unificador da ética e da
moral, ainda que essa unificação tenha de ser salva do horizonte metafísico em
que a encerrou. Aquele a que Dworkin chama o «princípio de Kant», isto é, o
princípio de que «uma pessoa apenas pode alcançar a dignidade e auto-respeito
indispensáveis a uma vida de sucesso se mostrar respeito pela humanidade em
todas as suas formas» é assumido como «um molde para a unificação da ética e da
moral» (p. 19). Essa unificação visa retomar o ideal da Grécia clássica,
aparentemente abandonado pela filosofia moral moderna, segundo o qual a
dimensão ética do viver bem é mais do que satisfazer o desejo de cada um e a
dimensão moral da preocupação com as vidas dos outros é mais do que uma
perspectiva instrumental.
O
projecto de Dworkin abrange dois objectivos: estabelecer a independência do valor,
mas também encontrar um «molde» para a unidade do valor. A ambição do primeiro
objectivo é bem demonstrada pelo modo como Dworkin o encara: a revolução de
Galileu «fez o mundo do valor seguro para a ciência», ainda que cedendo à
tentação de tornar o método da física uma metafísica totalitária; do que se
trata agora é de saber como «pode fazer-se o mundo da ciência seguro para o
valor» (p. 417). Por outras palavras, o projecto de Dworkin é encarado como uma
libertação: «a ética e a moral são independentes da física e dos seus
parceiros: o valor é do mesmo modo auto-sustentado» (p. 418). Quanto ao segundo
objectivo, Dworkin não deixa de ter consciência da diferença entre os dois
ideais éticos: viver bem – isto é, com o mesmo respeito pela importância da
vida dos outros e da sua responsabilidade ética que atribuímos à nossa própria
vida – e ter uma vida boa (p. 419). Podemos viver bem, respeitando a nossa
dignidade e a daqueles que nos rodeiam, sem ter uma vida boa, em virtude da má
sorte, grande pobreza, injustiça, doença grave ou morte prematura. Aliás, uma
riqueza injusta pode ser também um entrave a viver bem, na medida em que obriga
a um maior envolvimento na vida política da comunidade, através do empenho em
assegurar justiça para os seus restantes membros (pp. 421-422). Uma vida boa,
por seu turno, é uma vida não trivial, não desperdiçada. Para além da distinção
entre os parâmetros que permitem a cada um escolher uma vida boa – a sua
cultura, meio social, talentos e gostos – e as limitações – doenças,
deficiências físicas ou mentais, injustiça na distribuição de recursos – que
impedem que se conduza uma vida segundo aqueles parâmetros, é da natureza do
projecto de Dworkin que pouco mais possa ser dito sobre o conteúdo de uma vida
boa (pp. 195 e ss.). Na realidade, os princípios do individualismo ético
prendem-se sobretudo com o viver bem. Isso não exclui, porventura, a
possibilidade de alguém levar uma vida boa sem vivê-la bem…
Miguel
Nogueira de Brito
[1] Justice
for Hedgehogs, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge,
Massachusetts, e Londres, 2011. Este texto foi publicado como recensão na Revista
Regulação & Concorrência, Ano 2, n.º 7/8, Julho-Dezembro de 2011.
[3] Cf. Isaiah Berlin, “The Hedgehog and
the Fox: An Essay on Tolstoy’s View of History”, in The Proper Study of Mankind: An Anthology of Essays, organizado por
Henry Hardy e Roger Hausheer, Chatto &
Windus, Londres, 1997, p. 436.
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