Sobre isto, sabe-se pouco,
mas haveria muito a dizer. Andava aqui há meses para contar-lhe a história mas,
num dia aziago, varreu-se-me tudo do espírito e fiquei no mato. Recentemente, acho que na
semana passada, reapareceu-me outra vez tudo à frente e, graças a essa epifania
internética, agora já posso escrever, não muito, sobre The Throne of the Third Heaven of the Nations’ Millenium General
Assembly. É uma obra de arte que nos esmaga o fôlego só de lhe dizermos o título.
Aliás, nem sequer há a certeza de que tenha sido concebida como obra de arte. Muito
provavelmente, não. Agora explique, quem puder ou souber, o que leva um homem
solitário, sem dizer a ninguém, a alugar uma garagem e a passar todas as noites,
cinco a seis horas, durante catorze anos, a fazer isto pela calada. Pouco se
sabe do autor desta obra, ou desta coisa, hoje exposta no Smithsonian.
James Hampton nasceu em 1909, numa terreola da Carolina do Sul. O seu pai cantava gospel e era pregador, daqueles que vão pregar para fora e passam meses a pregar, a pregar, a pregar, deixando mulher e quatro filhos à espera em casa, com a mesa posta. Aos dezanove anos, Hampton Jr. saiu de casa de seus pais e foi viver para Washington, D.C. Andou aos biscates, foi cozinheiro em vários cafés e candidatou-se à função pública. Na ficha de candidatura, e como é próprio dos grandes artistas, parece que exagerou um bocadito nas habilitações literárias. Incorporado nas Forças Armadas aquando da 2ª Guerra, Hampton serviu no Texas, em Seattle, no Havai e nas selvas de Saipan e Guam. Como seu pai, também pregou, mas na modalidade de carpinteiro. Na tropa, de facto, foi carpinteiro, o que certamente lhe terá sido útil para mais tarde manufacturar The Throne of the Third Heaven of the Nations’ Millenium General Assembly. Terminado o serviço militar, empregou-se como porteiro da General Services Administration, que é uma agência independente do governo federal que vê, com independência, como é que as outras agências do governo se estão a governar. Manteve esse emprego até à morte, a qual ocorreu de cancro. Entretanto, no dia 2 de Novembro 1950, apareceu-lhe a Virgem Maria, acompanhada da Estrela de Belém. Não era a primeira vez que tinha visitas de cerimónia: em 1931, já Moisés lhe tinha aparecido à frente, descendo sobre Washington, D.C. Inspirado por conhecer gente tão importante, James Hampton começou a pensar em fazer uma coisa em grande. Saíram 180 peças. Em folha de prata e alumínio, vidros de lâmpadas, cartão prensado, madeira e outros materiais, muitos dos quais apanhados no lixo. Várias peças têm versos bíblicos, uma ostenta a inscrição «Feita em Guam, em 14 de Abril de 1945», o que significa que talvez ainda Hampton estivesse no meio da selva, a carpintar no mato, e já andasse encrençado em fazer The Throne of the Third Heaven of the Nations’ Millenium General Assembly. Era homem de poucas falas, mas chegou a dizer que gostava de ter uma «mulher santa» para o ajudar neste projecto. Não se sabe a quem terá dito isto, uma vez que não lhe conheceram amigos e morreu solteiro. Em 1950, alugou uma garagem e iniciou a obra. Saía da portaria do serviço por volta da meia-noite e metia-se ali, na garagem. Todas as noites, cinco a seis horas. Isto durante catorze anos. Não os passou propriamente sozinho, já que, segundo parece, Deus visitava-o de vez em quando, para vistoriar os trabalhos. Pelo menos, Hampton acreditava que sim. Uma senhora, que lhe levava comida à garagem, ficou maravilhada com a obra e contactou um jornal. Os repórteres foram lá, viram aquilo, riram daquilo, e por ali ficaram. Hampton morreu em 1964. A irmã, que veio da Carolina do Sul para reclamar o corpo, viu então The Throne pela primeira vez, e também ficou maravilhada. O senhorio propôs-lhe que ficasse com as 180 peças. Ela não tinha casa para guardar aquilo tudo. O The Throne, ainda vá. Mas era demais levar de volta o conjuntinho das 180 peças de The Throne of the Third Heaven of the Nations’ Millenium General Assembly O senhorio queria desamparar a garagem, mas, à semelhança do comendador Joe Berardo, era um homem muito consciencioso e sensível às artes. Achou que aquilo valia a pena ser visto. Chamou um repórter e este, ao contrário dos colegas que já lá tinham ido, não só não gozou com a naiveté da obra como escreveu sobre ela. Depois, por uma coincidência incrível, arrendou o espaço a um fotógrafo (ou escultor, noutras versões) que deu o devido valor àquilo e convocou pessoas entendidas, da National Collection of Fine Arts.
Diz-se que o senhorio só deu com a
obra um mês depois de Hampton morrer, quando apareceu na garagem para reclamar
da renda em atraso, 50 dólares mensais, e rebentou com o cadeado, ficando ofuscado com tanto brilho lá dentro. Talvez esteja certo, mas no melhor texto que li na Internet sobre o The
Throne, afirma-se que Hampton terá dito ao senhorio: «That’s my life. I’ll
finish before I die» (ver também este).
É provável, portanto, que o senhorio tenha dado uma espreitadela naquilo que o
seu inquilino andava a fazer. Quando, depois da morte de Hampton, pensava no destino a dar ao The Throne, o senhorio disse coisas de
grande sabedoria bíblica: «You
can’t just destroy something a man devoted himself to for 14 years». Mais certeiro ainda: «It
seems to be an example of the futility of life.»
Ao que parece, a obra não chegou a
ser acabada, pois os peritos descobriram na garagem mais uns acrescentos que
Hampton queria acrescentar, mas entretanto morreu. Por outro lado, parece haver
algo de mítico no meio desta mitologia toda, pois a ideia de um Hampton recluso
e solitário parece exagerada, sobretudo se tivermos em conta que existem
fotografias que o mostram ao lado do trono, algumas das quais até bastante
monárquicas, com o artista de coroa na cabeça. Apesar de tímido, Hampton não
era meigo quanto aos títulos e, à falta de habilitações literárias, chamava-se
a si próprio «St. James, Director for Special Projects for the State of
Eternity». Assim, sem mais.
A obra salvou-se, hoje repousa no
Smithsonian American Art Museum, devido a uma doação anónima feita em 1970.
Quanto à estrutura, é densa e complexa, sobretudo muito rica, apesar de o seu criador ser pobre e
ensimesmado, recolhendo grande parte das matérias-primas nas ruas da capital
dos Estados Unidos ou comprando garafas de cerveja vazias aos vagabundos bêbados de Washington D.C. para depois lhes retirar os rótulos, de ouro e prata.
Quando o The Throne foi descoberto, um corrupio de gente importante foi lá
vê-lo, em êxtase. Artistas, congressistas, embaixadores, um mar de gente. Mas foi
preciso uma curadora de arte dizer que aquilo era arte, e da boa, para darem valor ao trabalho
do rapaz. Até aí, em vida, gozaram com o
kitsch. James Hampton não se deve ter importado muito com a troça, pois não
queria fama ou proveito, queria apenas fazer aquilo. Para ele, era fazer aquilo e escrever,
tendo deixado um manuscrito de 108 páginas, numa linguagem cifrada, que está disponível aqui, e tem
sido estudada por muitos criptanalistas.
Há aqui um texto a esse propósito que é mais intrincado do que tudo o
que Hampton possa ter escrito.
Não percebi nadinha.
Apesar de a sua obra ser muito
religiosa e mística, Hampton não frequentava a igreja. Acreditava que, se havia
um só Deus, as diferentes religiões eram desnecessárias. De vez em quanto, passava pela igreja, e parece que foi um encontro com um pastor, que se queixava de não existir uma estátua a Cristo na capital federal, que o conduziu a fazer o The Throne. Mas, uma vez mais, pouco se sabe.
O
conjunto, muito rendilhado, foi alvo de restauro recente e está agora
disponível à vista desarmada. Para quem morar longe, pode viajar aqui com zoom pelas variadas peças.
A obra tem sido alvo de várias leituras e há gente que se dedica a interpretar
as inscrições e as múltiplas e múltiplas alusões, cifras e charadas neo e veterotestamentárias
que The Throne contém. Exalta-se o
seu carácter de arte popular e espontânea, a espiritualidade que lhe subjaz,
muito afro-american. Mas, talvez mais
do que a obra de 180 peças, e toda a espiritualidade que as envolve numa aura
reluzente de ouro e prata, interessa a história do homem solitário que a
concebeu e construiu. Noite após noite, durante catorze anos. Sem almejar fama ou dinheiro, sem ter a certeza que concluiria a obra que estava a fazer. Sem saber que destino teria tanto trabalho após a sua morte. Hoje está no Smithsonian, mas bem poderia ter acabado no lixo. É esse o ponto, a chave de tudo: a coragem solitária de um homem com a teima e a crença de fazer uma coisa. Fazer uma coisa, só isso, não mais do que isso. A peça central é o Trono. Não por acaso, encimado por duas palavras apenas: Fear Not.
António Araújo
Recordo-me de haver visto uma coisa assim na National Portrait Gallery de Washington no início da década de 1970. Parece ser a mesma. Havia sido posta em exposição há pouco tempo. Era muito curiosa, mas a minha memória não guardou detalhes.
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