sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Simenon, Maigret e o judiciário.





 
Simenon, Maigret e o Judiciário: Uma Relação Persistente [1]


 
 
 
 

Tenho que começar com uma confissão, que poderá, pelo menos, servir de atenuante: escrever sobre este tema, é um sonho concretizado porquanto há muitos anos sou leitor compulsivo dos livros de Simenon. Assim, tive hipótese de passar ao papel alguma modesta reflexão produzida em seu redor e de exorcizar a sua presença e influência, neste tema, agora mais agiornatto, pela comemoração do centenário do nascimento de Georges Simenon(1903-1989) [2].

Esgotar no espaço de uma conferência uma temática como esta é uma tentativa impossível. Daí que a par de alguma informação geral pretendamos transmitir, a quem não o tem já, o gosto por uma das obras mais vastas e singulares da literatura do século XX, tanto mais que se trata de uma obra, como vamos ver, com um interesse muito particular para a polícia e para o universo judiciário.

 
 





A-) O Estilo e o Ambiente Simenon: sua concretização em Maigret

 

Nascido em Liège, na Bélgica, a 12 de Fevereiro de 1903, Georges Simenon representa e integra, para a grande maioria dos seus leitores, a literatura francesa. Fenómeno de apropriação duvidoso, uma vez que Simenon recusou formalmente a nacionalidade francesa pois não se considerava de nenhuma nacionalidade. Dizia ele: “Vivo na Suíça com um passaporte belga. A minha mãe é meia holandesa, meia alemã, meu pai meio francês, meio valão. Que serei eu?”[3]. Aliás, Simenon só viveu vinte cinco anos em França dos seus oitenta e seis de vida. Os outros foram passados dezanove na Bélgica, dez nos Estados Unidos e trinta e três na Suiça onde veio a falecer.

Escritor de raro sucesso, com 550 milhões de exemplares, traduzidos em 55 línguas, Simenon produziu, a um ritmo verdadeiramente vertiginoso, todo o género de romances, do policial ao sentimental passando pelas aventuras. Os seus escritos de juventude estimam-se em cerca de 200 romances, um milhar de contos e novelas, escritos sob 27 pseudónimos diferentes, entre 1924 e 1934. A eles se somam 212 volumes (romances ou novelas) editados entre 1931 e 1972, contendo 84 com Maigret[4].

Dizer que existe um estilo Simenon é uma pura evidência. Defini-lo não é, porém, fácil. De feitura rápida e pouco corrigida (o primeiro capítulo é escrito em três horas, os seguintes em duas, à razão de um capítulo por dia) os seus romances aproximam-se do formato reportagem que praticou durante os largos anos de jornalismo. Rejeitando os artifícios da grande literatura, Simenon procurava a fluidez e o despojamento, de forma a poder entrar mais facilmente nos seus personagens principais. Achava que para escrever um romance precisava de entrar na pele do seu personagem central. Depois, escreve-o quase com o subconsciente, como um verdadeiro médium,  não sabendo onde o personagem o vai conduzir, até à consumação da história, no último capítulo, num estado de tensão crescente que lhe provocava enorme fatiga física e perder até cinco quilos por romance[5].

A quem lhe perguntava quem eram as personagens dos seus romances respondia, com Balzac[6], que era “qualquer pessoa da rua, mas que vai até às profundezas do seu ser”. A perturbação que salta dos seus heróis, ou melhor dos seus anti-heróis, é a terrível sensação que podíamos ser nós e que, no fundo, todos somos relativamente parecidos. As paixões e os sentimentos são-nos comuns, em maior ou menor grau, sendo pouca coisa, ou o acaso, que nos precipita num sentido ou no sentido contrário.

A sua profunda curiosidade pelo homem leva-o a procurar mostrá-lo tal como ele é verdadeiramente, sem artifícios, com as suas vulnerabilidades patentes, perante a vida.

O crime, descrito por Simenon, podia ter sido cometido pelo leitor ou por alguém por este facilmente identificável na vida de todos os dias. A sua concretização dá-se através da passagem de uma linha invisível que todos temos e que o autor se vai encarregar de mostrar[7]. O que fascina nos livros de Simenon “é a sua implacável descrição do «plano inclinado» das existências, a passagem insensível da normalidade satisfeita à ruína, à impotência, à derrota”[8].

Uma palavra está estreitamente ligada ao estilo Simenon e essa palavra é atmosfera. Na verdade, muito rapidamente, somos transportados para um universo tão particular quanto real porque ligado às pessoas que vemos todos os dias na rua. O lado oculto, o lado cinzento de cada indivíduo é o espaço onde a sua escrita entra. Por isso, nos seus romances, chove. Chove muito, uma chuva triste “como uma viuvez”[9], que cai sabendo que não volta e que molha, traduzindo, nas palavras de Jean d’ Ormesson[10], “não somente um clima mas uma desagregação” numa verdadeira “descida, num mergulho nas fissuras de um mundo que se desfaz”.

 A solidão, a marginalidade, a culpa, a evasão, a rejeição são tudo temas simoneanos, fazendo com que a sua obra “longe de ser um tratado de virtudes, seja antes uma espécie de tratado de vícios”. 

         O polícia, para Simenon, é um verdadeiro perscrutador da alma das pessoas com quem lida. Para isso tem que proceder á sua própria transfiguração, deixar para trás o seu mundo para entrar no mundo particular onde o crime ocorreu, penetrando na pele e na cabeça dos intervenientes.

Pode dizer-se que Maigret representa uma concretização perfeita do estilo e do ambiente Simenon. Com Maigret, nascido em 1931, inaugura-se um novo género policial[11]. Vai interessar menos a identidade do culpado do que saber como é o culpado e quem é verdadeiramente o culpado. Aliás, Maigret não acredita propriamente em culpados. Na sua perspectiva, o ser humano está tão mal armado para enfrentar a vida que supô-lo culpado é fazer dele um super-homem. Assim, a verdadeira parada dos seus livros não é o enigma policial propriamente dito mas as pessoas que o envolvem. O criminoso interessa-lhe mais que o crime.
 
 
 
 


De fundo republicano, a nação é todo o mundo, Maigret vai afastar-se do mecanismo de observação/dedução que caracteriza um Sherlock Holmes[12] ou da rudeza de Sam Spade não se fazendo notar pela sua superioridade de classe ou acção. Não é um privado mas sim um funcionário do Estado, com uma relação algo ambivalente com o seu patrão, na qual o leitor se reconhece com facilidade. Maigret é um verdadeiro anti-Poirot, se quisermos fazer um contraponto com o célebre detective belga, celebrizado por Agatha Christie ao longo de mais de trinta de livros. Na verdade, Poirot acha que para descobrir um culpado é suficiente sentar-se num sofá e reflectir utilizando as célebres células cinzentas do seu cérebro. O seu método é orientado pelo amor da ordem, da simetria e das linhas direitas que o fazem detectar qualquer irregularidade no todo coerente. Usa a técnica do puzzle agrupando os detalhes e os pequenos factos. A «ordem» e o «método» eram os deuses de Poirot[13], ordenar os factos com clareza e precisão, “o seu génio residia na capacidade de ver aquilo que todos tinham visto e formular novos padrões e ligações”[14].       

         Maigret tem outra maneira de trabalhar. Tem um método mas, curiosamente, proclama a sua ausência de método[15].

         Desconfia das deduções brilhantes e da psicologia livresca. Confia basicamente no seu instinto e na sua capacidade de entrar nos ambientes, na sua capacidade de os cheirar. E quando esse método vivencial é acompanhado de fricassé de vitela ou linguiça em puré, convenientemente regados com cerveja ou beaujolais, é impossível não ficarmos seduzidos e maravilhados.  

A actividade policial é para Maigret a actividade de conhecer, de sentir as pessoas, de lhes entrar na cabeça[16].

O seu modus faciendi pode ser dividido em dois momentos.

Na primeira parte dos inquéritos, Maigret mergulha nos ambientes, regista a informação e interioriza-a[17]. Precisa, para isso, de entrar no seu novo meio com os sentidos completamente abertos, com as inerentes resistências em ir a casa e levar a sua vida normal. Nesse processo, o seu cérebro é uma esponja destinada a absorver tudo o que envolveu o crime, nomeadamente, compreender a linguagem e a mentalidade dos seus protagonistas.

Na segunda parte, os personagens passam a viver consigo deixando de ser entidades para passarem a ser homens e a, dessa forma, fazerem sentido. E é nessa fase, quando começa a ver por dentro, que, com um pequeno esforço, tudo adquire contornos definidos e a verdade surge quase por si própria. Para Maigret, no fundo, a verdade é sempre óbvia. Nós é que não vemos, ou raramente vemos, o óbvio porque andamos sempre envoltos em mantos de obscuridade. Portanto, para descobrir, há apenas que ganhar a perspectiva correcta...

        Talvez já se tenham apercebido que Maigret não é um investigador completamente normal. Na verdade, não lhe chega identificar um culpado, a sua meta é a sua compreensão integral.

Esta ambição percebe-se melhor se pensarmos na sua ambição profissional, quando jovem: ser um “consertador de destinos”, «racomodeur de destinées». E curiosamente, como ele diz, “na sua carreira de polícia, tinha-lhe acontecido várias vezes recolocar no seu verdadeiro lugar pessoas que os azares da vida tinham encarreirado na direcção errada”. Na sua figura de polícia intersectam-se o médico, o padre e o advogado, ou seja, o que trata, o que ouve e o que aconselha.

Podemos perceber que, com este entendimento, as relações do comissário Maigret com o Poder Judicial, que especialmente nos interessam, nem sempre tenham sido fáceis.                

 É o que vamos analisar de seguida.


 

 

B-) Simenon, Maigret e o Poder Judicial

 

         Diz-se que Balzac, mais uma vez, descreveu, na totalidade da sua obra, cinquenta e oito magistrados. Da mesma forma, Simenon pinta ao longo dos seus livros uma galeria vasta e diversificada de figuras integrantes do Poder Judicial. Algumas surgem através duma breve pincelada, outras são personagens centrais de um romance particular e outras ainda surgem duma forma constante, a merecer referências particulares e detidas.

Das primeiras podemos dar como exemplo Clairfontaine de Lagny “um juiz que passava por um dos magistrados mais desagradáveis d’Epernay” e que “seguro das suas partículas, limpava as suas lunetas,...”[18].

Das segundas podemos analisar o caso de Xavier Lhomond no fascinante livro que é Les Témoins, de 1954. Trata-se de um presidente de colectivo (cour d’assises) que vai julgar um homem de trinta e dois anos acusado de matar a mulher. É um juiz engripado e fatigado (cá está o clima) que vai presidir ao julgamento onde, a pouco e pouco, a sua própria vida vai intersectar-se com o crime em discussão. Com uma vida pessoal marcada pela incomunicabilidade total com a sua mulher, depois de uma arrebatadora paixão desta por um estudante de direito muito mais novo, Lhomond apercebe-se, a pouco e pouco, que poderia estar no lugar do acusado. Assistimos então a um processo de extraordinária humanização e fragilização humana do julgador que em vez de julgar passa a compreender e a abordar o processo pelo prisma da sua própria vida[19]. Inevitavelmente o juiz que, como todos os seus colegas, gostava de casos nítidos, passa a colocar-se no lugar do réu levando, com a sua condução da audiência, à sua absolvição.

Nesta segunda vertente, temos igualmente o presidente das assises Bernerie, noutro notável romance sobre o poder judicial, intitulado Maigret aux assises, de 1960. Simenon descreve Bernerie como um juiz magro “com ar de santo de vitral”, possuindo um caracter minucioso e detalhado  que o fazia estudar os dossiers em casa até às duas da manhã, sendo  “talvez o mais apaixonado na procura da verdade”. Maigret e Bernerie conheciam-se bem, de algumas conversas de corredor, mas também “de trinta interrogatórios a que um tinha sujeitado o outro. Desse conhecimento não resultava, porém, nenhuma amizade ou traço pois “cada um desempenhava o seu papel como se fossem desconhecidos, oficiantes de uma cerimónia tão antiga e ritual como a missa”. Pertencente “à minoria de magistrados que aplicava o código de processo penal à letra” Bernerie “não era daqueles juizes que tomavam notas ou que, no decorrer da audiência, faziam o correio. Também não dormitava e o seu olhar ia sem cessar da testemunha ao acusado, com, por vezes, uma breve vista de olhos pelos jurados”. Nesta impressionante descrição, Simenon dá-nos, pelo retrato da minoria, uma cruel imagem da maioria... Mas, não nos iludamos, mesmo Bernerie vivia numa ilha à parte, na teoria, “num universo despersonalizado, onde as palavras de todos os dias não parecem contar, onde os factos mais quotidianos se traduzem por fórmulas herméticas” por isso “sabia que não dava, da realidade senão um reflexo sem vida, esquemático. Tudo o que acabava de dizer era verdade, mas ele não tinha feito sentir o peso das coisas, a sua densidade, o seu estremecimento, o seu cheiro.”[20]

Neste livro pressente-se com nitidez a visão que Simenon transmite do judiciário: um universo angustiante onde os seres humanos se vêem reduzidos a caricaturas de si próprios, seres esquematizados, submergidos pelas formalidades e pelos regulamentos.               

Neste quadro, a relação entre o intuitivo Maigret e o judicial não podia ser obviamente pacifica. Maigret prefere compreender a julgar e Simenon considerava o homem como um ser desarmado para resistir aos condicionalismos do seu meio, da sua família ou das suas predisposições genéticas. Pensava, em consonância, que os juizes deviam abdicar a favor de psiquiatras, os únicos em posição de julgar. 

Com um lugar central na galeria de juizes simonianos está o juiz de instrução Ernest Coméliau. Com presença forte ou episódica em dezenas de romances, Coméliau é a antítese de Maigret servindo para mostrar a diferença entre aquilo que Simenon acha ser a polícia e o judicial.

            De feitio nervoso e agressivo mas conformista e avesso a complicações, Coméliau pertence a uma burguesia instalada (filho e neto de magistrado) com relações com o poder (o irmão da mulher foi duas ou três vezes ministro e o seu tio embaixador na Finlândia) com o qual mantêm uma relação de preservação de imagem e subserviência.

Maigret não o considera “um mau homem” apesar de o terem chamado o seu “inimigo intimo”. Aplicador “à letra da lei”, curiosa expressão, Maigret critica-lhe sobretudo o facto de não ter dúvidas: “Penso que ele nunca conheceu a dúvida. Serenamente, ele separa os bons dos maus, incapaz de imaginar que as pessoas se possam encontrar entre os dois campos”. Maigret, pelo contrário, dúvida de tudo e não vira as costas a nenhuma hipótese. A sua dúvida é de tal forma existencial que, quando lhe perguntam, passados vinte anos, se um executado criminoso era culpado, Maigret tem esta resposta peremptoriamente céptica: “Há vinte anos, quando ainda era novo na profissão, talvez tivesse respondido sim sem hesitar. Depois aprendi que tudo era possível, mesmo o inverosímil”[21].  

Coméliau, em contrapartida, é um homem de princípios rígidos e tabus sagrados, achando-o Maigret incapaz de aplicar a sua inteligência a certas realidades porquanto “não se conseguia impedir de tudo julgar em virtude dos seus princípios e dos seus tabus”. Com esta maneira de ser, Coméliau não pode ser um apreciador dos métodos de Maigret “tendo-o sempre debaixo de olho, preparado para lhe assacar a responsabilidade pelo menor erro ou a menor imprudência”.

A relação entre os dois é de permanente tensão física e intelectual. Exemplo desse desafio físico é o facto do comissário Maigret ser a única pessoa que se permite fumar no gabinete de Coméliau obrigando este a ir abrir ostensivamente a janela. Exemplo de tensão na relação de trabalho temos a constante necessidade de Maigret se subalternizar, de forma astuciosa, quando quer obter algum efeito na investigação: “Carrego sozinho a necessidade do que possa acontecer. Sou apenas um polícia. Vós sois um magistrado”. Tendo-se a si próprio em alta consideração, as palavras do comissário “deram prazer a Coméliau que, de repente, foi mais cuidadoso com a sua atitude”.

Simenon apresenta Coméliau como um escravo dos seus preconceitos de classe “era um homem do seu mundo, escravo dos seus costumes, das suas regras de vida e da sua linguagem. Poderia acreditar-se que a sua experiencia quotidiana, no Palácio da Justiça, lhe daria uma concepção diferente da humanidade, mas isso não acontecia, era invariavelmente o ponto de vista do seu meio que acabava por o transportar”.

Como se vê tudo, ou quase tudo, opõe estes dois homens e estes dois universos que têm de trabalhar juntos: “Os homens da P.J. vivem por assim dizer na intimidade permanente e quase física com o crime, avaliando por instinto”, os magistrados “o seu género de vida, depois de estudos puramente teóricos, não os põe em contacto, senão no seu gabinete, com aqueles que devem perseguir em nome da sociedade”[22]. Ao distanciamento técnico e social de Coméliau, Maigret contrapõe a aproximação e a visão por dentro dos intervenientes de forma a poder absorver-lhes os humores, o modo de vida e a mentalidade.

Curiosamente esta perspectiva geral de Coméliau é matizada noutro livro de Simenon, intitulado Lettre à mon juge, de 1946. Neste romance um respeitável médico mata a sua amante, num ambiente de confinamento da vida social na província, conjugado com os simonianos temas do medo e do ciúme. O livro é uma longa carta dirigida ao juiz Coméliau, pouco depois da condenação, e que começa desta forma surpreendente:

“Meu juiz

Queria que um homem, um só, me compreendesse. E gostava que esse homem fosseis vós.

Passámos longas horas juntos durante as semanas de instrução. Mas então era muito cedo. Vós éreis um juiz, vós fostes o meu juiz, e eu teria o ar de me estar a tentar justificar. Sabeis que agora não é disso que se trata, não sabeis?”[23].

Através da identificação social, a que Coméliau é particularmente receptivo, vamos assistir nessa longa carta-despedida a diversos sinais do inusitado interesse que o juiz/homem Coméliau votou a este réu. Estabelece-se, nesse processo, uma verdadeira comunicação entre o instrutor e o réu, de tal forma, que este refere, a dado passo da sua carta, “ter ainda a ilusão de ter um amigo e esse amigo, por estranho que possa parecer, sois vós”.

       Através do reflexo do réu, Simenon dá aqui o outro lado do arrogante e seguro juiz de instrução, lançando-nos numa dúvida pertinente: não terá ele facetas escondidas da sua vida que lhe facilitam essa estranha identificação?

      Mas o olhar de Simenon sobre o poder judicial não se ficou por aqui. Observador atentíssimo da realidade, o nosso escritor deu-se conta de algumas mudanças nos perfis judiciais produzidas pela criação da Escola Nacional da Magistratura, em França, no ano de 1959.

       Aparecem, assim, jovens juízes, de “uma juventude insultuosa” e “muito novos para a função” na apreciação de Maigret.







       Assim, em 1965, sai o livro La Patience de Maigret com a criação do juiz de instrução Ancelin. Este é um jovem juiz, de modesta condição económica (conduz um velho carro em ruínas, vive nos subúrbios de Paris e veste roupa pouco cuidada)[24].

        Representa a antítese de Coméliau. Na verdade, o contacto deste petit juge com Maigret vai ser surpreendente. Manifestando desde o princípio a sua alegria por trabalhar com Maigret, pedindo-lhe inclusivamente para o tratar pelo nome, Ancelin vai surpreender pela positiva um Maigret habituado ao formalismo e à contenção social de Coméliau. Aparece-nos, assim, “um juiz de instrução alegre, optimista, apreciando fatia de vitela com lentilhas numa taberna como se a frequentasse desde sempre”.

      Descrito como um magistrado consciencioso, capaz de sacrificar a noite para estudar os seus processos, Ancelin inveja Maigret por este ser um homem da agitação e do terreno “enquanto ele mesmo, num gabinete poeirento, se concentrava em dossiers abstractos, de fórmulas monótonas”.

    Neste retrato favorável da geração judicial prenunciadora do sindicato da magistratura e das convulsões de Maio de 68, Simenon expulsa um pouco a má imagem geral que transmite do poder judicial. Quando o seu inspector lhe pergunta se o juiz de instrução não lhe partiu as pernas na investigação, Maigret responde: “Pelo contrário. Até já começo a gostar, deste homem”.

      Esta tirada é um bom mote para concluirmos.

      Espero que vos tenha aberto o apetite para a obra de Georges Simenon, certo de só ter aflorado a superfície do objecto a que me propunha, deixando-lhes a desconfiança de que o melhor ficou por dizer e, certamente, por ler.

 

 

Luís Eloy Azevedo

 

                         

                

 

       

               


[1] O presente texto corresponde à versão escrita da conferência efectuada, a 5 de Junho de 2003, no Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais, ao 37.º Curso de Formação de Inspectores Estagiários e foi publicado na revista Polícia e Justiça Revista do Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais, n.º 2 (2003).
[2] Em França, estas comemorações incluem numerosas iniciativas, como reedições da sua obra, exposições, debates, documentários e circuitos pelos lugares da vida e obra do escritor e do próprio Maigret. A revista magazine littéraire consagrou-lhe um número, em Fevereiro de 2003, intitulado Sur les traces de Simenon.  
[3] Francis Lacassin, Conversations avec Simenon, Monaco, Ed. Du Rocher, 2002, p. 115.
[4] Contam-se inúmeras histórias sobre a sua enorme capacidade de escrita. Célebre é aquela que relata o telefonema de Hitchock para sua casa. Ao ser atendido pela governanta que informou estar o Sr. Simenon a escrever um romance, o cineasta respondeu: «Não faz mal. Eu espero.» Ou o episódio do desafio (verdadeiro) que lhe foi lançado para escrever um romance numa cela de vidro, sob o olhar do público e que apesar de nunca concretizado entrou na sua lenda.     
[5] Esse estado de hipertensão levava Simenon a dizer que nunca escreveria um grande romance e que os seus livros teriam “sempre nove ou dez capítulos, escritos em nove ou dez dias, pois sou incapaz de aguentar o golpe mais tempo", Entrevista ao Paris Match, de 26 de Novembro de 1955, em www.trussel.com/maig/match55f.htm
[6] Simenon era um grande admirador de Balzac a quem atribuía a criação do romance moderno e a quem foi buscar o interesse pelo universo do little people e da marginalidade social. Curiosamente, Marcel Aymé descreveu precisamente a escrita de Simenon como “um Balzac sem as partes longas”. 
[7] Explicando o motivo porque o homem comete um crime, Maigret refere: “Por ciúme, por cupidez, ódio, inveja...mais raramente por necessidade. Resumindo, é movido por qualquer das paixões humanas. Ora, essas todos as temos em maior ou menor grau. Por exemplo, eu odeio o meu vizinho que todas as manhãs abre a janela para tocar trompa de caça...” Maigret e a jovem estrangulada, Livros do Brasil, p. 132.    
[8]Jacqueline Risset, na introdução ao livro de correspondência entre Fellini e Simenon, intitulado Carissimo Simenon Mon Cher Fellini, Paris, Cahiers du Cinéma, 1997. A correspondência Fellini-Simenon estende-se por um período de vinte anos, 1969-1989, revelando a forte amizade que unia esses dois grandes criadores, com estilos e vidas muito diferentes. Fellini era um grande admirador da obra de Simenon dizendo que todos os seus romances eram “a história de um desaire”. E acrescentava “quando se fecha um dos seus livros, mesmo se acaba mal, e, em geral, acaba mal, estamos carregados de uma energia nova. Creio que a arte é  isso, a capacidade de transformar os desaires em vitórias, a tristeza em alegria. A arte, é o milagre...”.
[9] “De manhã, ainda chovia: uma chuva doce, triste, resignada como uma viuvez. Não se viam cair as gotas de água, não se sentiam e, contudo, tudo cobriam de uma laca fria e, no Sena, viam-se biliões de pequenos círculos animados.” Maigret e a jovem cit. p. 129.   
[10] Une autre histoire de la littérature française, Paris, NIL, 1997, p. 308.
[11] Com os inquéritos do comissário Maigret podemos dizer, com Jacques Dubois, que se “desenrola a autoridade de um nome e de uma imagem” e que com ele designamos “mais que um personagem, todo um universo ficcional e um modo narrativo”, Le roman policier ou la modernité, Paris, Nathan, 1992, p. 171.   
[12] Numa das suas tiradas típicas, Sherlock Holmes dizia que “O crime é vulgar. A lógica é rara. Por isso é na lógica e não no crime que devemos insistir.” The Sherlock Holmes Companion, London, Senate, 1988, p.156.
[13] “«Ordem» e «Método» eram os seus deuses. Ele tinha um certo desdém por provas circunstanciais, como pegadas e cinza de cigarro, e mantinha que, por si sós, nunca seriam capazes de ajudar um detective a resolver um problema. Então, daria pancadinhas na sua cabeça em forma de ovo com uma complacência absurda e observaria com uma grande satisfação, «o verdadeiro trabalho é feito cá dentro. As célulazinhas cinzentas- nunca se esqueça das célulazinhas cinzentas, mon ami!”, Poirot, o Golfe e o Crime.
[14] Anne Hart, A vida e a época de Hercule Poirot, Lisboa, Pergaminho, 2000, p. 250.
[15] “Fatalmente, colocou-se a questão do seu método, o que o impacientava sempre pois, como costumava repetir sem conseguir destruir a lenda, ele nunca tinha tido método.” Les scrupules de Maigret, Le livre de poche, p. 20.  Ver, a esse respeito, Michel Lemoine, La méthode d’enquête selon Maigret: une absence de methode méthodique? em www.trussel.com/maig/lemoinef.htm
[16] “Em todos os casos, de forma aproximada, o processo é o mesmo. Trata-se de conhecer. Conhecer o meio onde o crime é cometido, conhecer o seu estilo de vida, os seus hábitos, os seus costumes, as reacções das pessoas envolvidas, vítimas, culpados e simples testemunhas. Entrar no seu mundo com os pés nus, e falar naturalmente a sua linguagem.” Les mémoires de Maigret, Le livre de poche, p.175.  
[17] “Era assim que o comissário tinha tido sucesso na maior parte dos inquéritos: subindo escadas, cheirando os cantos, conversando à esquerda e à direita, colocando questões aparentemente fúteis, passando horas em bares por vezes pouco recomendáveis.” La patiente de Maigret, Le livre de poche, p. 65.
[18] Le Charretier de La Providence, Le livre de poche, p. 96.
[19] “Não se tinha ele identificado a pouco e pouco com o acusado? (...) Pela primeira vez na sua carreira, estava sentado em pensamento no lugar ocupado pelo acusado.” Les Témoins, Presses de la Cité, p. 165.
[20] Maigret aux assises, Le livre de poche, p. 37.
[21] Une confidence de Maigret, Le livre de poche, p.155. A respeito deste livro ver o interessante texto de Waclaw Rapak, Une lecture existentielle d’ Une Confidence de Maigret de Georges Simenon em www.trussel.com/maig/waclawf.htm
[22] Les scrupules de Maigret, Le livre de poche, p. 78.
[23] Lettre à mon juge, Le livre de poche, p. 5.
[24] “O seu porte era negligenciado, o seu casaco muito estreito, as suas calças muito largas, com bolsos nos joelhos, e os seus sapatos precisavam de uma escovadela.” La patiente de Maigret, Le livre de poche, p. 21.  

1 comentário:

  1. A análise é excelente mas precisa de mais dois capítulos: a gastronomia e a moralidade.

    Helena Matos

    ResponderEliminar